Romano Guardini: El Universo Religioso de Dostoievski
Emecé Editores, Buenos Aires, 1954. 306 págs.
A recente Encíclica do Papa Francisco, Dilexit-nos, que me fascinou por muitos motivos, dedica uma primeira parte para falar do coração humano. E foi ai, onde encontrei a referência a esta obra de Guardini. Consegui um exemplar em espanhol, e me aventurei na leitura. Toda uma empreitada.
Não é um livro de leitura fácil, por várias razoes entre as que vale citar duas: o leitor deve ter familiaridade com as obras do escritor russo, para conseguir acompanhar os raciocínios. Obviamente Guardini leu -certamente releu várias vezes- toda a obra de Dostoievski. E, depois, é preciso entender que o autor não é um crítico literário mas um notável teólogo. Deste modo não me parece que seja um livro de divulgação. Assim anoto aqui alguns destaques que, embora, nem de longe resumam o pensamento de Guardini, é possível que animem o leitor a aproximar-se do clássico russo. Eu mesmo fiquei espicaçado a reler algumas das obras comentadas.
No apêndice, Guardini , diz qual foi o objetivo deste estudo: “Não me propus a fazer uma exposição filológica de cunho científico do pensamento de Dostoievski, mas sim, neste caso, um encontro, digamos, com o filósofo russo, escritor, de uma conversa com ele sobre a existência do homem e entendendo que a conversa, seja ela qual for, constitui uma realização da vida espiritual. Apresentar o resultado de tal encontro, de tal conversa e de coisas que nos tocam a todos, e assim contribuir para o conhecimento dos aspectos humanos e espirituais da Europa, o que, em última análise, significa conhecimento do espírito e do coração humanos”. Esse é pois o objetivo de Guardini: uma leitura teológica da obra do escritor russo. Uma aventura para poucos, e muito qualificados, como o autor, que além de ser um teólogo de renome, foi professor, entre outros, de Ratzinger.
Logo de cara, surge uma afirmação contundente que justifica o estudo: “De fato, não há figura marcante em sua obra, não há acontecimento de importância na estrutura geral de suas criações que não seja informado, direta ou indiretamente, por um significado religioso claro e pleno. Em última análise, todos os personagens de Dostoiévski são determinados por forças e elementos religiosos dos quais dependem as decisões que tomam. Além disso, o mundo de Dostoiévski como universo, o conjunto conectado de realidades e valores, a própria atmosfera na qual suas criaturas se movem — tudo é, no fundo, de natureza religiosa”.
E para evitar equívocos, Guardini aponta desde o inicio a diferença entre a mentalidade oriental -do Russo- e a nosso modo de pensar ocidental. Isso também encaixa na atmosfera religiosa que envolve a obra do escritor. “Conclusões significativas emergiram então da questão relativa à estrutura da pessoa humana em Dostoiévski, especialmente se compararmos a sua constituição com aquela que nos é familiar no Ocidente, da relação entre pessoa e pessoa e da relação do indivíduo com o outro, da totalidade do ser humano. Entendi – com grandeza e espanto- quão vasto e rico é o conceito de pessoa humana em Dostoiévski, quão elástico, instável, flutuante e sempre renovado. Com ele ganhei um ponto de vista importante que me permitiu compreender plenamente, por um lado, as obras do próprio autor eslavo, mas sobretudo o problema da constituição da pessoa e das forças e riscos aos quais ela está exposta (…) Cada elemento do mundo de Dostoiévski, por mais superficial que possa parecer à primeira vista, pareceu-me totalmente imbuído de significado religioso assim que o considerei em seu significado mais profundo; e isto era tanto mais verdadeiro e claro quanto mais próximos estavam das formas elementares do ser, de modo que realidades elementares, como o sol, a terra, a árvore e o animal, fatos da existência como a alegria, a doença, a dor , a vida em si e o ser e até mesmo o que é marginal e estranho a eles, como a morte e o nada, são inteiramente religiosos por natureza”.
Outro destaque importante na obra do escritor russo é o conceito do que é o povo: “Em Dostoiévski, o conceito de povo é a expressão profunda e autêntica do que é verdadeiramente humano. Para Dostoiévski, como para todos os grandes românticos, a palavra povo desperta ressonâncias de veneração, nobre anseio, piedade e consolação. É o povo, apesar das suas misérias e pecados, que é autenticamente humano e, apesar de toda a sua baixeza, substancial e saudável, porque tem as suas raízes na estrutura essencial do ser; por outro lado, o culto, o ocidental, se torna uma entidade inconsistente, artificial e doente”
Como explicar que esse povo transpira religiosidade, apesar dos seus defeitos, limitações e misérias? Anota Guardini: ·“Seus instintos ainda não foram enganados, tem um senso seguro de direção e distinção. É claro que o mal também existe, e em grande medida, entre as pessoas. No meio da alegria infantil e inocente e da mais profunda bondade, pode surgir de repente, como um relâmpago, uma explosão de paixão que imediatamente se transforma em fúria tola. Todos eles. paixões ruins, fúria selvagem, perfídia, ataques imprevisíveis de destruição, crueldade sem limites, abandono a uma vida licenciosa e ao álcool, corrupção, todas as forças do mal podem tomar conta dele, mas com tudo isso, apesar disso, o povo é bom como crianças”
E continua com a explicação: “Em última análise, para Dostoiévski, como para todo romântico, o povo é um ser de existência mítica. O povo que Dostoiévski concebe é constituído por homens individuais da vida quotidiana, mas por detrás deles existe outra esfera à qual também pertencem, a esfera própria e primordial do humano, e é através da sua inclusão nela que os homens adquirem o carácter do povo. E as pessoas assim concebidas estão próximas de Deus. Então é o povo na sua ignorância e a. apesar dela, a receptora da palavra divina mais próxima de Deus. ‘Sem a palavra de Deus o povo perece, porque está ansioso pela Sua Palavra e por receber toda a Beleza.’ Nesta afirmação percebe-se claramente a relação que liga a criação à Revelação; parentesco apenas perturbado pelo pecado, mas nunca anulado. ‘Beleza’, diz Dostoiévski, e recordemos que a palavra que em grego designa graça, charis, significa também encanto, e encanto é para a consciência cristã a realização última e perfeita do homem”.
Não é uma visão ingênua, ou romântica, como faz questão de explicar o autor: “Usei a palavra romântico várias vezes para me referir a Dostoiévski, e ele foi certamente um dos maiores. Seu povo, no entanto, não é um produto romântico no sentido superficial e vulgar. Independentemente de seu conceito de povo conter elementos fundamentais da concepção cristã do mundo, esse povo não é de forma alguma idealizado nas obras de Dostoiévski, mas, pelo contrário, ele o trata com um critério extremamente realista, se o realismo for entendido como a expressão de uma realidade nua. O povo de Dostoiévski é apresentado em toda a sua imundície, com todos os seus vícios, em sua depravação e ignorância, pesado, ganancioso, degradado, sobretudo por sua irresistível inclinação à bebida. . . Mas com tudo isso é o povo de Deus”.
Outro grande capítulo, é o que poderíamos chamar As Mulheres Piedosas, um prato cheio para esta análise teológica das personagens do escritor Russo. “Ao longo da obra de Dostoiévski, a vida do povo é percebida como uma multidão anônima e, às vezes, mal nomeada. Dessa massa, porém, destacam-se algumas figuras, recortadas individualmente, mas que permanecem entrelaçadas no conjunto gigantesco. Tais figuras podem ser encontradas em todos os romances”.
São algumas mulheres que destacam, como as duas Sônias (a de Crime e Castigo, e a do Adolescente). São muitas as considerações de Guardini a este respeito. Vale a pena mostrar algumas a modo de exemplo. “Há tanta entrega nessa atitude, tanta simplicidade, tanta energia e tanta profundidade de sentimento, que Sonia silenciosamente se eleva a uma esfera mais elevada. Aceita e sofre o que a vida lhe impõe não de forma superficial, mas com profundo sentimento (…) Sônia nunca se pergunta se Deus existe, porque sabe que Deus existe; nunca questiona se Deus é santo e odeia o pecado infinitamente, porque sabe que esse é o caso. Ela nunca questiona se Deus é amor, amor abrangente, porque sabe que Ele é. Nunca se pergunta se tudo o que acontece vem Dele e se Ele está por trás de tudo, porque sabe que é assim. E tudo isso é incompreensível”.
A dualidade de vida em ambas as mulheres -em estado de mal moral, mas conservando a pureza de intenção- é uma das audazes propostas deste estudo. “Sonia suporta toda essa incompreensibilidade em sua vida. Nosso pensamento ético ocidental resiste a desenvolver um conceito positivo do caso por medo de, assim, destruir o caráter absoluto do nosso conceito de mal. Sonia vivencia tudo isso, mas jamais permitiria que isso fosse expresso em conceitos que tendessem a justificá-lo, pois isso levaria tudo ao abismo. E em sua vontade de salvar a si mesma, nunca tentaria negar o julgamento claro, porque o fato de que essa declaração permaneça intacta é a condição de sua vida. Assim que alguém tentasse estabelecer uma teoria de justificação, atacaria nada menos que a clara distinção entre o bem e o mal e imediatamente começaria o engano demoníaco ao qual Raskólnikov sucumbe e no qual Ivan Karamazov constrói sua filosofia da rebelião”
E a seguir outra afirmação atrevida: “Sônia é a mais pura e gentil das figuras femininas de Dostoiévski. Nela encontramos expressão do mistério de que o reino de Deus se abre para as crianças, os pequenos e os humildes e não para os grandes e sábios; para os publicanos e prostitutas e não para os respeitáveis e ricos. Sonia é, portanto, uma filha de Deus em quem os desígnios incompreensíveis da providência divina se cumprem. Ela se encontra neste mundo no mais extremo desamparo, mas ainda assim protegida pelo amor infinito de. Deus. Nela se manifesta um realismo claro e enérgico, de modo que nos encontramos diante do paradoxo de que, nesta mulher, a recusa em se defender advém, justamente, de sua força. É claro que também há culpa na sua vida. Impulsionada por outros, ela se vendeu e certamente não deveria ter sido assim. Mas acreditava que tinha o dever de fazê-lo. Ela é, portanto, no fundo, uma mulher pura e sua pureza reside no fato de que ela não quer nada para si mesma, mas sim sua atitude para com a vida consiste em suportar o que lhe é dado. Tal atitude só é possível para alguém que está segura e profundamente enraizado nos elementos essenciais do ser. Em Sonia parece que o que está acontecendo expressa as palavras de São Paulo: “Não combatais o mal, mas vencei-o com o bem”.
A demonstração desta proposta Guardini torna-se transparente quando reproduz os diálogos entre Sonia e Raskólnikov. “A seus pés, de joelhos: -O que você fez, o que você fez a si mesmo?- ela gritou desolada, e se levantando e se jogando em seu pescoço, o abraçou com força, com envolvendo-o com suas mãos. Raskólnikov deu um passo para trás e olhou para ela tristemente.-Você é tão estranha, Sonia! Você me abraça e me beija quando eu acabei de te dizer isso! Você não me entende.-Não, não; você agora é mais infeliz do que qualquer outra pessoa no mundo- , ela exclamou, como se estivesse fora de si, sem prestar atenção às observações dele (…) Ele rapidamente se abaixou e, ajoelhando-se no chão, beijou os pés dela. Sonia, assustada, recuou como se ele fosse um louco. E, de fato, Raskólnikov tinha toda a aparência de um louco. -O que você está fazendo, o que você está fazendo na minha frente? – ela gaguejou depois de ficar pálida. E de repente seu coração afundou dolorosamente. Ele levantou-se imediatamente. ~Eu não me prostrei diante de você, mas diante de toda dor humana-, disse ele em um tom estranho, recuando para a janela”.
Explica o autor no meio dos diálogos de Crime e Castigo “Em um diálogo intenso, recurso literário ao qual Dostoiévski tanto gostava, Raskólnikov mostra claramente a Sônia toda a vileza e desolação de sua condição. Então ele pergunta a ela: · -Você reza muito a Deus, Sonia?- Sonia permaneceu em silêncio; ele ficou ao lado dela e esperou sua resposta. -O que seria de mim sem Deus? – ela gaguejou rápida e energicamente; fixou seus olhos brilhantes nele por um momento, pegando sua mão e apertando-a firmemente entre as dela. -Mas, o que Deus faz por você? – perguntou Raskólnikov. Sonia permaneceu em silêncio por um longo tempo, como se não pudesse responder. Seu peito fraco subia e descia com emoção: -Cale a boca! Não me pergunte! Você não é digno! .. – gritou ela dando-lhe um olhar severo e raivoso. -Ele faz tudo- murmurou ela rapidamente, baixando os olhos novamente (…) E acrescentou olhando para ele: -Aceite a dor; é isso que você tem que fazer e assim você será salvo: então venha a mim e eu também carregarei sua cruz e então rezaremos e caminharemos juntos-.”
E conclui com a consideração teológica que a passagem lhe proporciona: “A própria Sonia não tentaria entender isso. O seu espírito cristão reside precisamente no facto de não querer compreender para se justificar (porque compreender já seria justificar-se) e de continuar a viver convencida da sua culpa, atenta a uma indicação no seu caminho, pronta à expiação e com uma confiança interior que nunca ousaria expressar aberta e publicamente”.
O livro continua analisando outras muitas personagens das obras do escritor russo: Um adolescente, Os Demônios, Os Irmãos Karamazov. Todas brindam oportunidades, através dos diálogos onde as personagens tornam-se transparentes. Os destaques correm por conta de Ivan Karamazov e a lenda do Grande Inquisidor, do Stariets Zósima, de Aliocha, “que é de uma sinceridade e honestidade que somente encontramos na figura do príncipe Mischkin (O Idiota)”.
E também de Stavroguin, uma das personagens dos Demônios, que foi a isca que me pegou quando li a encíclica do Papa, citada no início: um homem mau, porque não tinha coração. Eis a descrição arrepiante desta personagem, que o escritor reproduz integralmente, e aqui copiamos somente alguns traços: “A impressão de que o interior desse homem é vazio está se tornando cada vez mais clara. Possui uma inteligência afiada e clara, grande força física e uma tremenda vontade, mas seu coração é um deserto. A vida ali parece ter congelado. Não consegue sentir nem alegria nem dor, mas apenas formas frias e bastardas de sentimento: o prazer físico e o tormento de contemplar claramente, em desespero, seu próprio modo de ser. Stavroguin não está vivo. A rigor, ele não vive. O coração é de fato o que faz a vida viver (…) Somente pelo coração. o espírito se torna alma e a matéria se torna corpo e somente através dele a vida do homem existe como tal, com suas alegrias e tristezas, seu trabalho e lutas, miseráveis e grandes. ao mesmo tempo. Stavroguin, porém, não tem coração e portanto seu espírito é um tanto frio e sem conteúdo e seu corpo está envenenado pela inércia e. em sensualidade bestial. Desta forma, não pode alcançar outros homens e nenhum deles pode verdadeiramente alcançá-lo porque, na verdade, é o coração que cria as possibilidades de união (…) Está distante de todos, não consegue alcançar outro homem (…)Não possui a si mesmo, assim como não pode se dar aos outros nem pode receber a oferta dos outros. Todos estão ao redor dele, mas ninguém o alcança. Sua distância dos homens é irremediável. Ninguém pode alcançá-lo, ninguém pode entrar nele, ninguém pode comungar com ele, porque tudo é externo, exterior, fechado mesmo que não haja nada dentro que precise ser guardado. É inatingível. Não pode ser dado a ninguém ou pertencer a ninguém ou pode receber qualquer oferta que lhe seja dada. Stavroguin é pobre como gelo e se revela com um caráter aterrorizante. A existência deste homem é algo vazio, não porque ele não possua nada ou porque nada aconteça em sua vida; o vazio nasce da própria realização da vida. Um bocejo surge constantemente em seu coração”.
Guardini faz uma comparação original que ajuda a entender as personagens de Dostoievski na sua dimensão moral. “Lembremos, no campo da arte ocidental, por exemplo, a diferença entre o modo de compor de Rembrandt e o de qualquer um dos mestres italianos do Renascimento. No primeiro não há um ponto central de referência para toda a composição, como no último, porque toda a composição é difusa, assim como sua luz. Assim, em toda personagem de Dostoiévski, há pensamentos, tendências e forças mentais que coexistem de tal forma que não seriam possíveis na estrutura de um personagem ocidental”.
A consciência da própria miséria -patente e reconhecida de modo habitual- aproxima as personagens da compreensão dos outros, e do perdão divino: “Acredite que Deus te ama de maneira que você mesmo não pode imaginar; apesar do seu pecado e com o seu pecado e tudo; te ama. Se eu, que sou pecador como você, fiquei comovido e tive pena de você, o que Deus não fará?”
Guardini, como bom teólogo, também apresenta suas discordâncias -su sed contra, que diriam os escolásticos- a esse universo religioso do escritor russo: “Mas como é possível concordar com Dostoiévski e esquecer que a existência do homem é direcionada para cima e para baixo, em direção ao sublime e ao abjeto, mas estabelecido em um meio termo a partir do qual pode ser projetado em uma direção ou outra? A vida, portanto, só pode existir em aquela esfera intermediária e, a partir daí, é claro, responder às exigências que vêm de cima ou de baixo. Uma vida em que esta está ausente a esfera do meio é algo fantástico porque é a esfera das realizações, o campo e a oficina da existência mesma. Este é o plano em que elas acontecem, as decisões que guiarão o homem para cima ou para baixo e o plano, igualmente, com o qual estas são legitimadas. No sentido mais estrito, esta esfera é o terreno da realização. É lá que tudo o que é chamado acontece: possibilidade, medida, disciplina; saúde, ordem, tradição, consolidação (…) Talvez a objeção mais séria que pode ser feita à imagem da existência humana de Dostoiévski seja esta. Que em seu mundo precisamente esse meio termo está faltando… E isso de repente se torna cristalino a pouco notar que as criaturas em seus romances fazem tudo, exceto uma coisa: trabalhar. O trabalho, porém, é o que preenche toda essa esfera da vida cotidiana com toda a sua miséria e toda a sua dignidade. Esta esfera média também abrange a realidade histórica. aquele campo em que o homem não só luta e sofre, mas também em que se funda a existência humana”.
O teólogo nos brinda nas paginas finais a análise do protagonista de O Idiota, obra que reli recentemente por conta de uma das tertúlias literárias que coordeno. Diz Guardini: “Qualquer consideração sobre o mundo religioso de Dostoiévski deve necessariamente levar à questão de que significado tem seu romance O Idiota, a mais profundamente religiosa de suas obras. Pretendo dar uma resposta a essa pergunta e, para isso, talvez mais do que seria legítimo, devo partir das minhas próprias experiências pessoais e do meu contato direto com o livro. O que se segue, portanto, e aqui está minha justificativa, nada mais é do que uma hipótese”.
E a hipótese do escritor é que, talvez até inconscientemente, Dostoievsky construiu uma personagem que se aproxima humanamente da figura de Jesus Cristo. Assim escreve Guardini: “O príncipe é o homem Lev Nikolaevich Mischkin. Sua existência é de caráter inteiramente humano. Há nele corpo e alma, alegrias e misérias, pobreza e fortuna, pontos culminantes e ruína. Mas a partir disso, da sua existência inteiramente humana emerge claramente a imagem de outro que não é humano, a de Deus feito homem. Já falamos dessa arte tão típica de Dostoiévski, pela qual, por meio de uma personagem humana, a imagem de uma figura extra-humana aparece diante de nossos olhos. No caso presente, parece que se tentou fazer o mais tremendo empreendimento e não sei até que ponto o próprio Dostoiévski reparou no que estava empreendendo, isto é, descobrir, e não de forma direta, a existência de Jesus Cristo; através de uma personalidade humana emerge a figura de Deus. Mas agora vale a pena perguntar: é possível representar e traduzir o sentido da vida de Deus feito homem, tal como nos é revelado nos Evangelhos, e especialmente no de São João, numa vida humana, sem que o homem que nos é apresentado seja motivo de ridículo ou sem que isso o seja abaixar a condição divina de Filho de Deus? Se nossa interpretação estiver correta, então podemos dizer que Dostoiévski foi capaz de alcançar sucesso em tal tarefa”. Essa consideração final explica também a motivação de Guardini para enfrentar a empreitada neste estudo literário-teológico. Uma empreitada bem sucedida, cuja leitura requer ater-se às advertências anotadas no início. E, no final, sempre de desfrutará do convite, que permanece implícito, a voltar, uma vez e outra, sobre as obras de Dostoievski que são o universo religioso, porque também nos falam das profundezas do coração humano.