Copiando Beethoven sem segredos: O poder do eterno feminino
Traduzir o título original de um filme é uma tentativa de torná-lo palatável para o público ao qual se destina. Essa deve ser a intenção, em todas as culturas. Porém, é impressionante o que uma tradução infeliz do título é capaz de fazer com um filme: pode criar anticorpos “a priori”, indispor as pessoas para assisti-lo, enfim, pode até assassinar a fita. Basta lembrar um dos exemplos mais claros: “A Noviça Rebelde” com que foi batizado-destruído o magnífico musical “The Sound of Music”. O episódio do convento é completamente periférico na trama do filme, além do que a tal noviça –a insuperável Julie Andrews- nada tinha de rebelde, muito pelo contrário.
Quando notou que o mundo externo não era cor de rosa e teria de enfrentar desafios, tentou desesperadamente encerrar-se no convento. Ainda bem que a Madre Superiora –traquejada na seleção de vocações- fez-lhe ver que as pessoas se enclausuravam não por medo ao mundo, mas por missão de vida. Estas paredes –diz-lhe- não são feitas para albergar os que têm medo de enfrentar o mundo. E a continuação, a magnífica canção “Climb every mountain”, um empurrão fantástico para que a noviça –que não era tal- se decidisse a enfrentar os desafios da sua verdadeira vocação, no mundo. Pessoalmente, sempre tive uma enorme simpatia por essa Madre Superiora, que tem a coragem de colocar cada um no seu lugar: um exemplo, diríamos em linguagem moderna, de coaching eficaz, que facilita o plano de carreira, situando as pessoas diante da missão que lhes corresponde, atenta aos dons que cada um tem. Confesso que já cheguei a pensar se pessoas assim, peritas em coaching vocacional, não seriam uma ajuda inestimável para a academia universitária, na hora de selecionar seus candidatos no vestibular, nas diversas carreiras e, sem dúvida, na medicina que tão de perto me atinge. Pessoas que conseguem medir o que realmente interessa –a vocação- e que teimamos em dizer que não é possível avaliar nem medir. Mas isso já seria outra crônica. E outro filme, não o que nos ocupa.
O Segredo de Beethoven não existe. O que sim existe é alguém que copia –reproduz, passa a limpo- as anotações do compositor que cria a música. Algo razoável quando se repara que não havia fotocopia, nem computador, ou recursos gráficos disponíveis para essa função. Por isso, o título original -“Copiando Beethoven”- assinado por uma diretora polonesa (Agnieszka Holland) que já tem em seu currículo um Jardim Secreto, que continha o segredo do amor que anula o egoísmo. Mas com Beethoven não há segredo nenhum. Tudo é claro, transparente, direto. E muito feminino, na feição do filme, e nos efeitos que o mesmo provoca.
A jovem Anna Holtz, notável estudante do conservatório é enviada para ajudar o Maestro e copiar suas partituras. Beethoven, que tem uma merecida reputação de monstro, não tolera receber uma mulher de 24 anos para ajudá-lo, uma principiante delicada e tímida, que mora num convento de freiras. O choque é inevitável, Anna não se encolhe, demonstra sua competência, conquista o Maestro que, com o tempo não consegue prescindir dela. Cria-se um amor possessivo, peculiar, entre o professor e a discípula, que rende uma sinfonia de cenas encantadoras, onde a evocação de A Bela e a Besta se impõe. Beethoven envolve Anna com a música, que Anna entende e chega a ouvi-la tal como o Maestro a escuta. O amor gera ciúmes, reações violentas do músico, mas a postura elegante, discreta, eficaz – tremendamente feminina!!!- da jovem, dobra o orgulho do Maestro, que se ajoelha e chora como criança, soluçando pelo colo da mãe. Mais detalhes somente vendo. O excesso de descrição acabaria por embaçar a beleza do contexto. Vale dizer que a interpretação das personagens é magnífica. Anna é tudo o que vemos, ou o que queremos sonhar que fosse. E Beethoven, é um Ed Harris, que desapareceu, e nem lembramos quem seria o ator, tal a força da personagem e a maestria interpretativa.
O tal segredo que não existe rendeu variedade de opiniões entre o público. Algo parecido ao comentário dos críticos de touradas –para os que as apreciam, é claro- quando o público não é unânime na hora de julgar. Diz-se, no argot das touradas, que houve “divisão de opiniões”. Com Beethoven, o filme e o segredo aconteceu algo semelhante. De um lado, houve quem criticou o filme, porque não era histórico, e porque Beethoven era mostrado como um energúmeno. E com isso, e os anticorpos gerados pelo segredo, houve quem chegou a desaconselhá-lo como inconveniente. Por outro lado –e daqui a minha perplexidade e o fazer questão de comentar este filme- recebo a notícia de que duas senhoras da minha família, octogenárias, dessas que não vão ao cinema “por que é uma vergonha as coisas que se mostram, e não é mais como antigamente” são convidadas para uma sessão e saem do filme encantadas, iluminadas. Fosse pouco, uma colega, médica e professora, diz-me que depois de ver o filme, decide levar no fim de semana seguinte à mãe viúva, e algumas amigas dela –da mãe, se entende. Imagino que no carro –como dizia outro amigo também octogenário, já falecido- juntaram-se mais de 300 anos, para assistir Anna Holtz copiando Beethoven, com sucesso total, empolgando as boas senhoras. Por que –pergunto-me- esta variedade de reações, esta divisão de opiniões?
Um amigo músico, afirma que a personagem de Anna Holtz é fictícia. Provavelmente não existiu, ao menos como o filme a retrata. Mas o que é ficção mistura-se com a realidade. Beethoven era mesmo um temperamento intratável – por difícil que seja admitir isto de alguém que conseguiu criar o que ele fez- não brilhava pela sua ordem, e parece que a higiene não era o seu ponto forte. Há quem diga que passava os invernos embrulhado num cobertor…..compondo, naturalmente. Que o Maestro foi se tornando surdo e provavelmente não ouviu as notas da sua Nona Sinfonia é também fato. E como se arranjou para reger a Nona –se a cena que encantou todas as senhoras, Anna regendo nos bastidores, não existiu- é algo que os entendidos poderão elucidar. De qualquer forma, um filme é um ensaio de arte, e não uma aula de historia. E misturar ficção com realidade não é exclusivo deste filme; é, sim, algo extremamente comum. Por que, então, as críticas dos puristas? Vai ver que o que é de fato histórico – o mau caráter de Beethoven – incomoda, ou até decepciona e se prefere colocar tudo por conta da imaginação da diretora. Afinal, por colocar um exemplo, uma coisa é reputar como falsa a personagem de Aquiles em Tróia que é um monumento à vaidade, e mais parece um modelo de Armani do que um herói, e outra ter que admitir que um gênio como Beethoven possa ter sido intratável de fato. As críticas de alguns misturado com os elogios das senhoras octogenárias me confortam. Sempre penso que estaslinhas, onde interpreto livremente as idéias que os filmes me provocam, não são uma tentativa de explicar o que o diretor quer dizer, uma tradução à linguagem popular os termos Cult do cinema. São, nem mais nem menos, o que me ocorre pensar a propósito do filme, reflexões que o cinema desperta. E como são reflexões em voz alta, escrevem-se para compartilhar com outros que, certamente, terão diferentes pontos de vista, e agregarão novas reflexões. Daí a educação da afetividade que o cinema nos brinda como ocasião única. Por isso, misturar ficção com realidade –como misturamos nossas reflexões com as intenções do diretor do filme- está, para mim, plenamente justificado.O molde e os efeitos do filme têm uma assinatura feminina. Têm poesia, beleza, sonhos que traduzem anseios de realidade. O conjunto agrada como o perfume da flor. A imagem não é minha, mas de Ortega que nos oferece nos seus Estudos sobre o Amor, um dos mais belos ensaios sobre o feminismo. A mulher, diz, muda o ambiente, quieta, sem aparentemente fazer nada, como o clima muda o vegetal, ou a rosa perfuma o entorno. Não faz nada, fazendo-o tudo. E, no mesmo escrito, encontramos uma possível explicação de por que o Maestro não consegue prescindir de Anna, torna-se dependente dela. Afirma o filósofo que uma das supremas missões da mulher é exigir a perfeição no homem, tirar dele o seu melhor. E o homem, que pensa dominar a situação, é dominado –guiado, promovido- pela idéia que e a mulher tem dele, e busca corrigir-se para agradá-la, adequando-se. Um sorriso, ou uma reprovação da mulher, tem efeito formador sobre os homens, que saberão encontrar melhores estilos de vida deste modo. Tudo isto é aquilo que sabemos bem: um homem descuidado –nos modos, no vestir, no estilo- faz-nos suspeitar que careça de uma mulher que lhe coloque na linha. O tema não é novidade, e filósofos e escritores o exploram à vontade. Naill Williams, num delicioso romance irlandês (Quatro Cartas de Amor) afirma que são as mulheres as que criam os maridos. Assim, uma vez dispondo da matéria prima –o rapaz do qual se enamoram- começam os quarenta anos de trabalho constante para fabricar o homem com quem podem viver. Chesterton, com seu humor inigualável diz que a mulher representa a saúde mental no lar, o local onde a mente tem de regressar depois das excursões pelas extravagâncias. E reconhece que para tanto, deve ser uma verdadeira equilibrista, protagonista de um ofício generoso, perigoso e romântico. Voltando ao filme, e à nossa estudante do conservatório que possui estes predicados. Mesmo que Anna Holtz seja fictícia, não o são estas considerações. Talvez por isso a sua figura encante as senhoras octogenárias, perdidamente femininas. Contam que a mãe de Pedro Almodóvar chegou a lhe dizer um dia: “Meu filho, com esses filmes que você faz, eu nem tenho coragem de conversar com as vizinhas”. Talvez isto seja lenda, pura maldade, mas não há como negar que os comentários das mães carregam doses enormes de verdade e de bom senso. Cabe ao Almodóvar ver como facilitar o trabalho da mãe dele, para que se enturme com as amigas. Da minha parte penso que quando a minha mãe e a minha tia, -as damas octogenárias familiares de quem falei- saem do cinema transformadas, não posso menos de recomendar o filme, sem nenhuma restrição, convicto de que, no mínimo, serão momentos deliciosos, de tremendo bom gosto. O Segredo de Beethoven (Copying Beethoven). Dir: Agnieszka Holland. Ed Harris, Diane Kruger, Nicholas Jones. 104m