Martha C. Nussbaum. Emociones Políticas.¿Por qué el amor es importante para la justicia?
Martha C. Nussbaum. Emociones Políticas.¿Por qué el amor es importante para la justicia? Paidós. Barcelona, 2014. 555 págs.
Leio a versão espanhola do ensaio da filósofa e professora americana, exemplar que comprei numa das minhas passagens pela Casa del Libro em Madrid. Deixei-o repousar na prateleira -os livros cada vez se me assemelham mais ao vinhos, precisam de repouso, de encontrar o momento certo- e o desentoquei nas férias no final do ano. O subtítulo -o amor para chegar na justiça- foi, sem dúvida, o que me provocou para adquiri-lo. Afinal, e bom saber o que uma professora de filosofia política tem a dizer da importância do amor para praticar a justiça.
O ensaio é longo, repetitivo. Nota-se que corresponde a uma tese muito pessoal, mais do que a um raciocínio expositivo. Por isso, há momentos em que é preciso exercitar leitura dinâmica, porque já sabemos onde quer chegar. É, na prática, um curso sobre como as emoções devem alavancar as leis para que elas “grudem e cativem” o público. Algo que, no nosso cenário verde amarelo, faz completo sentido.
Diz a professora da Universidade de Chicago: “Todos os princípios políticos, tanto os bons como os maus, precisam para sua materialização e sobrevivência de um apoio emocional que lhes procure estabilidade ao longo do tempo, e todas as sociedades decentes devem proteger-se frente à divisão e a hierarquização, cultivando sentimentos de simpatia e amor. Supor que somente as sociedades fascistas ou agressivas, são intensamente emocionais, e que são as únicas que devem se esforçar para perdurar, é tão errado como perigoso”. Bela advertência, que alerta para a ingenuidade de justiças puras e assépticas, enquanto os carismáticos pintam e bordam, justamente porque sabem usar as emoções como passaporte de entrada nos corações dos povos.
Continua Nussbaum: “As emoções que têm como objeto a nação e os ideais desta, são muito úteis para que as pessoas pensem com maior amplidão de perspectiva, e se comprometam com um bem comum mais geral. As emoções públicas têm também a função de manter sob controle forças perigosas: em especial a tendência que todos temos de proteger nosso eu, frágil, desprezando outras pessoas”. E a seguir, estampa o objetivo do livro: “O desafio deste livro é mostrar o que uma sociedade pode fazer pela estabilidade e motivação (como Kant imaginou) sem converter-se em antiliberal ou ditatorial (como Rousseau pensou ser necessário). Para que uma sociedade seja estável, seus princípios básicos devem ser aceitos e adotados com entusiasmo pelos seus membros”. Algo óbvio, mas com frequência esquecido, a importância do entusiasmo!
O que tem a ver o bem público comigo? Eis a pergunta chave. Responde a autora: “O que suscita emoções profundas em nós, é algo que pertence ao nosso círculo de interesse, algo com o qual estamos conectados. Não ideias e pessoas distantes, abstratas, mas algo que é parte “de nós mesmos” (…) Saber ver o desigual, aquilo pouco favorecido, com humor e ternura, não com desejos de perfeição absolutista. De nada serve alimentar fantasias de invulnerabilidade, mas sim estimular a que tudo o humano inspire amor, e inibia a repulsa e a vergonha”.
O livro-curso, dá um amplo passeio por tentativas de “estabilidade social” desenhadas na história da filosofia política. Fala-se das tentativas de religião da humanidade como Comte, que propõe no final um substituto à Igreja Católica, com novos guias espirituais imbuídos de suas ideias, e que organizariam -com pouco espaço para a liberdade, por sinal- suas vidas morais até nos mínimos detalhes. Essa ideia de “substituição” das religiões tradicionais por religiões filosóficas deve ser olhada com ceticismo.
Reconhece-se também que o culto católico tem grande dose de eficácia motivacional do exemplo das vidas de santos, e das emoções que despertam as suas histórias de vida. E adverte: “Convém rejeitar a ideia romântica de que a emoção não serve se não for espontânea: é possível aprender a sentir de forma adequada, assim como se aprende a atuar corretamente”.
O gosto pelos modelos da Índia faz é presença constante no livro: “A religião de Tagore é a religião de um poeta, um conceito de cultura e da sociedade embasada nas capacidades do ser humano que são a fonte para a poesia: as experiências apaixonadas de admiração e beleza, o amor pela natureza e pessoas concretas, o desejo de construir um significado partindo das experiencias pessoais. Para Tagore, a saúde da sociedade é um liberalismo apaixonado, uma vida de crítica e de amor, de espírito lúdico e de loucura. Por isso, a pedagogia da escola de Tagore, cria um vínculo entre a indagação Socrática e as artes, o que resulta num cenário educacional atrativo. Em mãos de Tagore, a Ordem e o Progresso, conteria muito menos ordem e bastante mais amor apaixonado (modificando Comte). Daí a modificação da proposta de Comte, da religião, com as variantes que complementam o simples respeito e ordem, de todo ponto insuficientes. É preciso de algo mais profundo no coração humano, mais apaixonado”
Os substitutos da religião tradicional caem em ciladas facilmente. “Comte e Stuart Mill estavam tão preocupados em rejeitar a ideia teocêntrica do pecado original, que aceitaram com excessiva rapidez uma imagem ingênua da personalidade, segundo a qual somente nos movem impulsos bons, e precisamos apenas de desenvolvê-los”. Neste ponto lembrei de Theodore Dalrymple, dos vários livros que li dele (também citado pela autora), que admitindo não ser crente, diz ser a tese cristã do pecado original muito oportuna, para explicar as barbaridades que habitualmente contempla como psiquiatra.
O livro continua fazendo um amplo análise das possibilidades políticas. “Devemos aceitar as pessoas como elas são , e não embarcar em projetos pouco realistas, que acabam levando ao ódio quando se apalpa a realidade das pessoas. Mas não se trata de conformar-se com uma cultura política que dá tapinha nas costas sem tentar melhorar a situação do mundo, para melhor e mais justa (…) Quando as instituições incarnam as experiencias transmitidas por emoções positivas, facilitam experimentar essas mesmas emoções. Daí que Tocqueville comentasse que as instituições em USA, facilitavam a simpatia, porque aproximam mais umas pessoas de outras em oportunidades do que as europeias. Sempre é mais fácil identificar-se com outra pessoa quando não nos separa uma distância enorme (…) O uso político da compaixão deve criar estruturas que promovam o interesse pelos demais, e para isso é necessário que, de alguma maneira, vincule nossos interesses atuais com um círculo mais amplo que consideremos também “nosso”.
Volta a autora a Kant, referencial ético clássico, embora insuficiente: “A teoria de Kant sobre o mal radical, nos leva a manifestar comportamentos competitivos e contrários à moral. São manifestações do egoísmo inato, do pensar “tudo deve estar ao meu serviço”, que cristaliza naquela imagem sugestiva de Freud: “Sua majestade, o bebé”. E, de novo, invoca o amor e as emoções: “A moral por si só, não sobrevive num mundo onde falte confiança e amor para aliviar o desassossego primário. Daí arranca a capacidade de compreensão, que faz entender que a perspectiva do outro realmente importa. Isso deve ser contemplado na cultura política de alguma maneira. E para tal, a cultura e as artes ajudam a transcender o narcisismo, o egoísmo inato”. Gostei desta conexão das emoções -da educação da afetividade- com o sabor humanista clássico, algo que é comum na minha prática docente.
Um dos pontos mais claros do livro são os exemplos de liderança que a autora comenta para ilustrar a teoria das emoções e do entusiasmo que deve ser envolvidos nas decisões políticas. “Todo líder que busque um apoio emocional deve conectar com as pessoas, com seus afetos e preocupações, inseridas num contexto histórico e cultural determinado. Não bastam emoções e ideias: é preciso saber e conhecer quem é o destinatário, o público que será envolvido e convocado”. E aqui sucedessem exemplos de líderes clássicos: Churchill, Ghandi, Nehru, Roosevelt, Lincoln, Martin Luther King, Washington, amplamente comentados, no detalhe.
Mais uma advertência interessante da facilidade com que se “reconta” a história buscando os interesses escusos: “Infelizmente, os partidos e grupos políticos atuais tentam tirar vantagem dos ataques pós modernos contra o conceito de verdade histórica para promover suas próprias histórias repletas de erros e de tramoias. É preciso preparar os estudantes para que saibam que todo relato histórico é elaborado por autores humanos situados em certa posição e que, em muitos casos, atuam guiados por motivos interesseiros”.
E oferece uma saída honrosa, que contempla as emoções e o entusiasmo: “Os patriotas não costumam ser muito amigos da realidade, e tendem a inclinar-se por alguma versão glorificada do passado ou do presente. Temem que se apresentamos a nação tal como ela é, o amor que podemos sentir por ela será diminuído. O que vem dizer essa atitude é que o coração humano é incapaz de suportar a realidade: nem os pais com os filhos que não atingem suas expectativas, ou os amantes quando tropeçam com os defeitos do outro. No entanto, não se pode aceitar sem mais esse fato como ponto de partida na educação: se as crianças têm dificuldade em amar seus semelhantes quando emergem os defeitos e limitações do outro, é preciso trabalhar o tema. A obsessão pela perfeição está condenada à desesperança. Enquanto isso, uma nação que persegue objetivos que exigem o sacrifício do interesse próprio dos cidadãos em função de algo maior, tem de utilizar recursos de símbolos, de retórica, e de histórias emocionais: assim fizeram Washington, Lincoln, Martin L. King, Gandhi e Nehru”.
Interessante a distinção que faz, entre monumentos (monuments, em inglês) e os monumentos comemorativos (memorial, em inglês). Os primeiros são para lembrar sempre; os segundos para não esquecer. E de volta à necessidade das humanidades, aponta que “os clubes de debates de livros promovem a implicação ativa das pessoas numa cultura crítica, sã e vibrante. Fomenta o envolvimento emocional dos leitores, estimulam um diálogo sobre as experiências de cada um. Permite envolvimento de diferentes grupos e classes, algo que seria muito complexo numa aula formal. Para que um livro funcione bem neste contexto, é preciso ter moderadores preparados, que também respeitem e promovam a espontaneidade dos participantes”.
Como já dito, o texto é repetitivo em muitas passagens, mas serve para sublinhar a tese principal da autora, o subtítulo do livro. “As leis boas dificilmente se aprovam ou se mantém vigentes se não contam com um apoio emocional. Trata-se de que a cultura pública não seja morna e sem paixão, para não colocar em risco os bons princípios e a sobrevivência das boas instituições. Essa cultura pública tem de contar com episódios de amor inclusivo, poesia, música, acesso a espaços afetivos e lúdicos (todo o tema de parques e similares)”. E, com destaque, a busca da concórdia e dos consensos: “O liberalismo político exige que a cultura pública seja pouco densa e de âmbito limitado. Limitado porque não pretende abranger todos os aspectos da vida humana; pouco densa porque não se envolve em assuntos metafísicos que potencialmente podem dividir (temas religiosos, confessionais etc.) Deste modo, busca-se um consenso entre as múltiplas concepções de vida humana razoáveis que integram a sociedade. A poesia, a música , a arte são fatores unificadores que ajudam a tirar as pessoas do seu egocentrismo para construir uma comunidade compartida. Quando a arte não é medíocre, não impõe homogeneidade ou conformidade: lembremos que as manifestações artísticas ao serviço das ideologias totalitárias, são sempre de pouca qualidade.
O que não significa falta de convicções nem ausência de entusiasmo: “Mas é um erro pensar que para proteger o necessário espírito crítico numa sociedade assim, tenha que haver neutralidade ou falta de entusiasmo em relação aos próprios valores centrais. Toda sociedade boa tem ideias definidas do que é bom e do que é mau. (….) É fato que os sonhos são uma componente importante deste livro. Não há por que negá-lo, nem embarcar num cinismo que pensa ser a beleza incompatível com a realidade. Afinal, o que aqui afirmamos é que o real é mais formoso que as irrealidades elevadas….É habitual que as pessoas não estão satisfeitas em absoluto com o estado presente da sua nação, mas, mesmo assim, sentem-se vinculadas a ela no fundo do seu coração. Este é o amor que este livro descreve: um amor que aceita a imperfeição, ao tempo que aspira à justiça e se propõe consegui-la”.
Daí que no final, a modo de recomendação, a autora aconselhe mesmo o esforço pessoal, algo do qual não é possível fugir. As soluções políticas, o integrar as emoções e o amor presidindo a cidadania, não é tarefa asséptica, descomprometida. Citando Roosevelt aponta que “o único que devemos temer é ao medo mesmo, ao terror anônimo, irracional e injustificado que paralisa as iniciativas necessárias para converter a retirada numa ofensiva”. E conclui: “O que mantém as pessoas unidas deve ser mais real que a simples formalidade -guardar as formas externas-; do contrário, o interesse próprio sempre acaba por se impor. Ao invés de colocar toda a responsabilidade no sistema público, é importante perguntar-se o que eu tenho de fazer para melhorar: não apenas para me comportar bem com os outros, mas para entender os outros, ver o lado bom de cada um, as perspectivas com as quais funcionam. Não basta a diligência formal, mas é preciso o esforço do entendimento. Como disse Walt Whitman: “América é somente você e eu!”.
Um livro longo, denso, um estudo que tomou conta de parte das minhas férias e me fez pensar na parte de responsabilidade que me cabe para tentar, com entusiasmo, fazer um mundo melhor. Não é pouca coisa.
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Muito interessante. ROGER SCRUTIN toca nesse tema da beleza e da ação social comprometida dos cidadãos no seu livro Filosofia Verde. Utiliza o termo oikophilia, sentimento de responsabilidade, para essa ligação com o bairro, a cidade é a nação.