LANCES INOCENTES- EM BUSCA DE BOBBY FISCHER

Pablo González Blasco Filmes Leave a Comment

(Innocent moves – Searching for Bobby Fischer). Diretor: Steven Zaillian. Max Pomerance, Joe Mantegna, Ben Kingsley. USA 1993. 110 min.

A vida é uma sequência de eventos maravilhosos, autêntica aventura, e não apenas sucessão de coincidências. Embora não passe disso para quem carece, no seu íntimo, do líquido revelador que decodifica os acontecimentos, extraindo dos negativos a beleza das imagens e a lógica que as une. Sucede como com as enzimas digestivas, e valha o prosaico do exemplo. De nada adianta ingerir aquela substância se não se possuem as enzimas que permitem absorvê-la. À sensação de plenitude, enchimento físico segue-se o desconforto que precede o esvaziamento violento e incômodo dos alimentos ingeridos.

Assim passam muitos pela vida, sem nada aproveitar, sem nutrir-se das riquezas que as vivências trazem consigo, por serem incapazes de digeri-las. E assim passam muitos filmes, saturados de nutrientes, de valores, pela existência dos espectadores: entram pelos olhos, preenchem o tempo, e vão-se embora sem tocar o coração e a alma, deixando apenas uma camada epidérmica de tênue sensibilidade, fruto da visão superficial que se tem da própria vida. Quando muito, um par de lágrimas que secam com o primeiro vento da rotina diária.

Com espírito de aventura, não de coincidências, assisti Lances Inocentes. E logo de cara notei que qualquer elemento se converte em ótima ocasião para transmitir valores. A trajetória do pequeno Josh, portento do xadrez com 7 anos, nos campeonatos e no ranking são uma desculpa elegante para nos transmitir recados de virtudes, das quais o mundo de hoje está tão carente. E o faz de modo arrojado, embrenhando-se em terreno peculiar como é o mundo do xadrez, universo mágico e fechado a todos aqueles que não cultivam esta arte, às vezes até doentiamente. Porque o xadrez é arte, em palavras de uma das personagens, não é simples jogo nem ciência. Arte como a de Bobby Fischer, que é o paradigma de todo o filme, o vácuo no qual caminha o pequeno protagonista.

Às vezes as verdades são tão óbvias que se tornam agressivas. Comenta um pensador contemporâneo que o mundo -os seres humanos- estão despreparados para as verdades, e que somente aceitam “meias verdades”, verdades “light”, ou “soft”. Daí toda a engrenagem do eufemismo, curioso circo que os homens montamos para dizer-nos, com anestesia, as verdades que devemos ouvir. Verdades que são defeitos, vícios, subnutrição de virtudes. É preciso o universo de uma criança, a inocência e selvagem ingenuidade, para, sem ofender, transmitir recados para a vida. Uma criança de 7 anos que destila generosidade quando oferece um empate numa partida ganha, algo incompreensível para o mundo adulto que foi lapidado nos moldes do egoísmo, do levar vantagem em tudo. Uma criança que reconhece que ganhar nem sempre é o melhor, e que existem valores superiores que devem ser preservados. Um garoto que desmonta os sonhos egoístas do pai fazendo-lhe notar que a sua bússola perdeu o norte: “Porque estás longe de mim?” -pergunta. Quer dizer, se te preocupas comigo e este é o motivo do teu aborrecimento, porque estás me esquecendo?

E por trás da criança, a figura da mãe emerge como um monumento. Ela é no filme o armazém de virtudes e bom senso. Afinal, ninguém dá o que não tem, e se as pessoas -mesmo as crianças- nada sabem de generosidade, doação e amizade é porque não tiveram onde mamá-lo. Isto pode ser duro mas é real; tão real quanto fisiológico. O berço marca indelevelmente.

Lances Inocentes nos fala de virtudes em linguagem de criança para que ninguém se ofenda. Mais ainda, para que desarmados, sem preconceitos -é assim que encaramos as crianças- as lições penetrem as porosidades da nossa alma calejada e cética. E nos fala do berço, da mãe, das virtudes que se ingerem na mamadeira. Difícil questão, para pais e educadores, a de incutir virtudes nos filhos. E é difícil porque as virtudes, os modos de comportar-se não são apenas aulas de boas maneiras, que se dependuram como um par de brincos ou uma gravata, enfeitando o usuário. São algo inserido na vontade, elementos que moldam a alma. E para tanto, não basta com enunciar o que deve ser feito -como se explica um problema de álgebra ou as capitais da África meridional, simples questão de raciocínio ou de memória- mas deve-se ensinar a vivê-lo. Aqui a coisa torna-se mais complexa. Não basta com enunciar as regras às pessoas para que atuem corretamente. Em outras palavras, que quem age mal é porque carece de virtude e não porque não tenha entendido a questão.

Nesta dinâmica, que podemos chamar didática de verdades existenciais, escola de virtudes, é o exemplo um elemento indispensável. Não é suficiente dizer o que é correto para ensinar a vivê-lo; é preciso mostrá-lo. E mostrá-lo não uma vez, mas sempre, no dia a dia, com constância, independente dos estados de ânimo ou das turbulências climatológicas. Quando falta o exemplo é como se novamente -voltamos às metáforas digestivas- faltasse a enzima que permite assimilar o alimento, no caso, a lição de vida.

Com muito acerto, um pensador contemporâneo faz notar que as pessoas obedecem às ordens, curvando-se e acatando a autoridade. Mas para construir homens, para impregnar de virtudes as vidas alheias, é preciso exemplo, perante o qual as pessoas, além de obedecer, são dóceis. Quer dizer, obediência interior, obediência aberta ao crescimento, obediência que enriquece e não anula a vontade. Boas doses de exemplo são necessárias para assimilar as toneladas de palavras que os formadores despejam diariamente sobre os seus pupilos. É disto que a sociedade carece e devemos restituir a ela se queremos que não agonize. Aqui está, talvez, o parafuso solto que entrava a engrenagem da formação e faz resvalar os conselhos de pais e educadores. Sem exemplo, as almas são impermeáveis; pior ainda, vacinadas com anticorpos que bloqueiam os argumentos, mal nascem da boca de quem os profere. A autoridade de quem manda deve, pois, unir à ordem a credencial do exemplo, selo de qualidade de qualquer liderança, social, familiar ou espiritual.  O Dr. Marañón dizia que dar bons conselhos, e mais nada, era como o eunuco que pregava paz no harém. Não  compromete nada nem ninguém. O bom exemplo, porém, é  o  que conquista.

Um filme com verdades embutidas em alma de criança mas também um recado contundente para pais e educadores. A cena antológica onde o professor desafia o menino para dar xeque mate em quatro jogadas, sem mexer as peças, é uma revolução nos paradigmas da educação. O garoto pensa, não consegue visualizar as jogadas sem mexer nas peças. E o professor, com decisão, exclama: “Vou te facilitar as coisas”. E de um golpe limpa o tabuleiro, derruba todas as peças, deixando-o nu perante o olhar reflexivo do aprendiz. O menino pensa e descobre a jogada. As peças estavam atrapalhando, e o professor tem a audácia de removê-las.  Devo confessar que cada vez que assisto essa cena, penso nos convencionalismos que os professores colocamos na frente dos alunos –porque sempre se fez assim, por que sempre funcionou- e me pergunto quais são as peças que terei de remover para facilitar o aprendizado dos outros.  Exige-se do professor um completo desprendimento das peças, dos métodos, do “seu jeito de ensinar” que deve estar disposto a sacrificar em benefício do crescimento daqueles que tem confiado ao seu cuidado. Profunda lição, que requer meditação e decisões diárias a tomar.

            “Lances Inocentes” é por tudo isto um filme que agrada. Não é apenas xadrez -simples veículo, e em ocasiões apresentado de maneira tão ingênua quanto inverossímil- mas sim as lições de vida que destilam do tabuleiro e do mundo encantado do pequeno protagonista. Virtudes da convivência e da concórdia familiar, imprescindíveis para uma sociedade que mendiga – sem saber- valores firmes. Estes são os verdadeiros lances, os de mestre, que em abertura audaciosa conduzem a colocar em xeque definitivo o egoísmo que nos rodeia para atingir metas maiores. Afinal, a vida, como o xadrez, precisa de arte para ser vivida com intensidade, sem medo, de peito aberto.

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