Os Fabelmans: Um canto de amor ao Cinema.
Os Fabelmans: Um canto de amor ao Cinema. The Fabelmans. Diretor: Steven Spielberg. Michelle Williams. Gabriel LaBelle. Paul Dano. 151 min. USA 2022.
Os Fabelmans: a mais recente entrega de um grande diretor. Um canto de amor ao cinema -ocorreu-me que seria uma espécie de Cinema Paradiso do diretor americano. Sua trajetória de vida, e de paixão pela sétima arte. Talvez com isto está tudo dito. Mas, obviamente, não resisto a comentar o recente filme de Spielberg. Aliás, nem quero fazê-lo, visto que já me identifiquei – e assim escrevi várias vezes- como um Spielberg-boy!
Acompanho de longa data a produção dele. Comentei amplamente vários dos seus filmes: O resgate do soldado Ryan, Cavalo de Guerra, A ponte dos espiões, A Lista de Schindler e Amistad. E, não contente com isso, tenho consciência de que lhe devo muitos royalties pelo uso que faço das suas produções no meu trabalho como professor de medicina. Cenas entrecortadas e comentadas que mostram a importância da vocação médica e do profissionalismo. Enfim, uma relação de longa data, uma amizade de há muito tempo, como dizia o inspector Renault a Rick (Bogart) no final de Casablanca.
Steve Spielberg que entrou em cena há muitas décadas com tubarões e arqueólogos, com extraterrestres e contatos de terceiro grau, mergulha na aventura do ser humano -um universo em amplo espectro, de cor púrpura até o sol como império- e desemboca definitivamente nos dilemas morais, onde me conquistou definitivamente. No ano passado, quando assisti a sua versão de West Side Story, pareceu-me perceber que era chegado o momento de fazer os filmes que sempre sonhou, os que marcaram a vida dele. Nesse mesmo comentário, apontei para Belfast, outro filme de lembranças, dessa vez por conta do britânico Kenneth Branagh. Os Fabelmans são como o Belfast de Spielberg, em afirmação que, embora evidente, pode pecar de simplista.
Não é um filme para ser contado -algo que nunca faço neste espaço- e quase escapa a qualquer comentário. Tudo o que vem à cabeça, quando sento para rascunhar estas linhas, são sensações, acertos, momentos que me emocionam porque o cinema também fez parte da minha educação desde criança. Criam-se arcos voltaicos de lembranças, com aquelas que Spielberg apresenta. Eu também assustei-me com o filme de Cecil B. de Mille, O Maior espetáculo da Terra, não pelo choque dos trens, mas pela vertigem que me davam os desafios no trapézio….e os sustos anexos.
A genialidade do garoto que perfura o filme com um alfinete, para simular revolveres de madeira disparando. A câmara que consegue ver o que a vida corrida não percebe, e quando projetado causa surpresa, até espanto. “O que você fez comigo?- Eu apensas te filmei, a câmara não mente”. Algo análogo a quando ouvimos nossa vez gravada, ou nos contemplamos num vídeo que alguém fez de nós: a surpresa, o choque -e até a decepção- são bastante comuns. Todos passamos por isso, Spielberg apenas explicita essa percepção.
E, câmara em mão, simula o choque dos trens para eternizá-los no celuloide, aproxima-se dos colegas para revelar nas filmagens realidades que desconheciam, projeta o lado bom -e o menos bom- das pessoas, que andam por este mundo sem nenhum hábito de reflexão sobre o próprio comportamento. A família, sua família, é o prato cheio no jovem Sam, quer dizer, no jovem Steve. Suas irmãs, embrulhadas em papel higiénico como múmias egípcias, o pai -um lutador fascinado com a técnica, que parece ignorar o que lhe acontece em volta, e a mãe. Sim, a mãe, -uma fascinante Michelle Williams, interpretação soberba- da qual se aproxima com carinho, com ternura e medo, para descortinar seus devaneios.
John Williams -não poderia ser outro- encarrega-se da trilha sonora, da música que salpica elegantemente as cenas variadas. Fui checar com o Shazam -talvez inspirado pelo pai de Sam, o homem da técnica- vários dos trechos, para certificar-me do que estava escutando. Lá está o adagio de Bach, (Concerto em D minor BWV974 segundo informa o aplicativo) no momento em que o jovem Sam descobre, durante a edição do filme familiar, os aspectos da mãe que lhe deixam desnorteado. Lá está, nos créditos finais, uma das “melhores composições de John”, em palavras de Spielberg. E o aplicativo adverte: “The Journey Begins, by John Williams…. with excerpts from Haydn”. De fato, algo maravilhoso, onde a música barroca de Haydn coloca-se ao serviço de John Williams e de Spielberg, para a jornada que começa, para a aventura do cinema.
A cena do encontro com John Ford é também antológica. Desta vez o Shazam não conseguiu identificar. Eu me atrevo a pensar que Williams montou um pot-pourri com trilhas sonoras dos filmes do grande mestre, conforme desfilam os cartazes de produções inesquecíveis: As Vinhas da Ira, Como era verde o meu vale, No tempo das diligências, Depois do Vendaval, Rastos de Ódio, O Homem que matou o facínora….e muitos outros. E Sam, atónito, esperando a entrada do seu ídolo. Cinco minutos, menos talvez, definitivos.
“Onde está o horizonte nesse quadro?…E nesse outro?”…. Lembre-se disso: quando está em cima ou em baixo, é interessante; quando está no meio é tedioso. Saia já do meu escritório!!!”. Uma aula em três minutos, um estopim acesso no material adequado para a enxurrada de filmes que nos surpreenderão nos seguintes cinquenta anos, com a música de John Williams embrulhando muitos deles.
Vale uma última lembrança a respeito desta parceria frutuosa. Spielberg disse que no início não tinha gostado da música que Williams fez para Tubarão. Depois retificou: grande parte do sucesso deve-se à música dele. Williams também não tinha papas na língua. Se algo não encaixava, ele dizia: a música está correta, Steve; veja de filmar de outro modo!. E, quando chegou a vez de A Lista de Schindler, Williams disse que não se considerava capaz de musicar algo tão especial, que teria de ser um compositor melhor do que ele. Spielberg respondeu: “eu sei, mas o problema é que estão todos mortos. Vai ser você mesmo”. E saiu o que saiu, inesquecível.
Quando Itzhak Perlman dá concertos por este mundo afora, sempre lhe pedem para repetir, no bis, esse solo de violino. E ele diz que a emoção toma conta dele, sempre. Os Fabelmans: mais do que um filme, uma experiência fenomenológica de um longo namoro com o cinema. Ou melhor, um casamento fecundo, com muita prole que foi nos sendo apresentada ao longo das últimas décadas. Um momento especial que nos permite sonhar com o cinema, recuperar as lembranças da infância; daquelas que, como no meu caso e, certamente, no de Spielberg, nos formaram. E, com essa perspectiva, ingênua e maravilhosa, debruçar-se sobre este mundo que nos aguarda, que podemos fazer melhor. Uma vida magnífica que se apresenta na nossa frente, com luzes e sombras, onde a câmara revela o interior das pessoas, em nova perspectiva. Uma vida que vale a pena ser vivida. Como a que revela nos filmes Steve Spielberg.