O Estudante: Liderança de Ideais, o Exemplo que Educa.
(El Estudiante). México, 2009. Diretor: Roberto Girault. Jorge Lavat, Norma Lazareno, Cristina Obregón, Pablo Cruz Guerrero, Siouzana Melikian. 95 min.
Catálogo IMDB: http://www.imdb.com/title/tt1261393/
Assisti a este filme encantador nas férias do último verão. Gostei demais. Mas fui enrolando para escrever, passando na frente outras pendências. Não foi preguiça nem falta de ideias; digamos que a oportunidade não se apresentava conveniente. Um filme menor, produção mexicana sem muitas pretensões, que me tinha sido recomendada por amigos estrangeiros. Entendi que não seria fácil encontra-lo no Brasil e, afinal, promover um filme que ninguém encontra é quase maldade. Fora de buscar-me trabalho extra porque, fatalmente, minha caixa de e-mails se veria inundada de mensagens perguntando onde se pode encontrar o filme. Além do que, tendo assistido a versão original sem subtítulos, o desafio da indicação acertada se torna maior.
Assim estavam as coisas quando esta semana aconteceram dois fatos que catalisaram estes comentários. Já volto sobre os acontecimentos vitais, mas antes vamos dar uma revisada na lembrança entranhável que o filme me causou, além de multidão de reflexões. Em se tratando de uma fita sobre educação, não é de se estranhar. É juntar a fome com a vontade de comer.
Chano, nosso simpático protagonista, tem 70 anos e acaba de se aposentar. Mas decide realizar seus sonhos e entra na universidade de Guanajato, para assistir um curso de língua espanhola baseado no Quixote. Os que andamos envolvidos com educação temos experiência –cada vez mais frequente- de alunos maduros que ingressam na Universidade, e sabemos do impacto que eles provocam. Não apenas nos colegas, jovens estudantes, mas também nos professores. Ao menos naqueles que estão atentos aos ensinamentos da vida que, estes alunos já rodados têm em profusão.
Chano contorna a oposição familiar –”não estarás fazendo uma loucura, à tua idade?”- e, iniciadas as aulas, vai se integrando aos poucos no grupo de jovens colegas. Aquilo que começa com uma recepção cética e irônica, vai dando passo à perplexidade e logo mais ao respeito que cristaliza em admiração. O nosso estudante sênior, cuja semelhança com D. Quixote é fisicamente enorme, dá recados profundos e contundentes próprios da personagem de Cervantes. Um cavalheiro com as damas, um cultor da honra, um enamorado da verdade, que se permite sonhar e persegue os seus sonhos.
Para os que lemos D. Quixote por primeira vez quando tínhamos a idade dos jovens alunos que o filme apresenta, as lembranças acodem à memoria com força imperiosa. E não só as histórias do livro de Cervantes, mas também os comentários de uma pequena-grande obra, “Vida de D. Quijote y Sancho” do pensador espanhol Miguel de Unamuno. Um livro que marcou minha formação e que, até agora, rende dividendos. Lá encontramos uma das melhores definições do que venha ser o amor, a caridade ao próximo que não resisto a transcrever em livre tradução. Diz Unamuno: “Ama ao teu próximo –foi nos dito- e não ama a Humanidade; porque, afinal, a Humanidade é um conceito abstrato que cada um acaba concretizando em si mesmo. Pregar o amor à Humanidade vale tanto como pregar o amor próprio (..) D. Quixote aprendeu a amar a todos os próximos em Sancho, pois é na cabeça de um próximo e não na comunidade, onde é possível amar a todos os demais. Amor que não cristaliza sobre um indivíduo concreto, não é amor de verdade”.
O amor não é melodia agradável em cor pastel, mas atitude que, quando confrontada com as imperfeições daqueles que nos rodeiam –e com o lastro das nossas próprias misérias- range para se acoplar, produz estalidos. Isso é o que lhe confere força e poder transformador. D. Quixote que suspira pelas perfeições nunca vistas de Dulcinea, sabe no dia a dia suportar com carinho o convívio com um Sancho tosco e fedorento. Sem queixar-se, sem amputar os sonhos que lhe arrastam pelo fato de ter de apalpar quotidianamente a lama emporcalhada dos outros mortais. Tal o tamanho do seu ideal, do seu projeto de vida.
É novamente Unamuno quem aponta a força que deve ter o ideal para converter-se em motor da própria vida. E com palavras inusitadas acerta um golpe mortal, como o mesmo D. Quixote faria, na raça dos medíocres: “Tudo neles é sensualidade, e até das grandes ideias se enamoram sensualmente. São incapazes de casar com uma grande e pura ideia e criar família com ela; o único que sabem fazer e amassar-se com as ideias que utilizam como amantes, ou pior, como companheiras de uma noite”.
Criar família com o ideal, torná-lo fecundo, perseverar com tenacidade, ao invés de pular como borboleta de uma ideia a outra, sem nada concluir, desistindo ao compasso das naturais dificuldades. Características que o nosso estudante maduro apresenta e, consequentemente, se transforma no verdadeiro educador, no formador dos seus jovens pares. Uma bela advertência para qualquer professor.
É fácil criticar os alunos, amparar-se na dificuldade de comunicar-se com a juventude, encontrar argumentos que nos dispensam de enfrentar o desafio da formação. Adota-se uma postura comodista, abre-se mão da criatividade e se deixa plugado o jovem na internet, à espera que a navegação sem rumo produza efeitos positivos. O papel que anos atrás assumia a TV, a babá eletrônica que justificava as omissões do formador, agora o desempenha a Internet que tranquiliza mais porque é “interativa”. Poderíamos elaborar um enorme manual de desculpas que abonam os fracassos educativos, mas seria uma falácia, simples sedativo de consciência. Como digo sempre aos estudantes e aos médicos que trabalham do meu lado: “Não existe paciente difícil. Existe sim o médico incompetente”. A mesma regra se aplica aos professores.
Nosso D. Quixote mexicano, o velho Chano, desmascara o engodo e mostra que é possível chegar fundo no coração dos jovens. Com elegância, de peito aberto, com a força do exemplo que transpira ideais sólidos. Uma liderança de provocar inveja em qualquer educador. E os jovens se abrem, crescem, porque estão carentes de exemplos que quando descobrem sabem absorver como terra seca à espera das chuvas reparadoras. O que falta na educação hoje – por dizê-lo em poucas palavras- são exemplos que arrastem. A discussão sobre técnicas pedagógicas, curriculum e conteúdos, por mais importantes que possam parecer não conseguirão preencher nunca o vazio da falta modelos ou, pior, o estrago que o mau exemplo produz.
Muitas destas ideias rondavam a minha mente nestes últimos tempos, enquanto repassava mentalmente o filme. E dois fatos vitais, vividos nesta semana as fizeram cristalizar em letra impressa.
O primeiro foi o encontro com uma professora que fazia 35 anos que não via. Deu-me aula no primeiro ano da faculdade de medicina e hoje ocupa um importante cargo diretivo na Universidade. Por acaso, um e-mail emanado do órgão que ela preside, chegou à minha caixa postal. Vi o nome dela e fui atrás. Consegui o contato, me (re)apresentei, respondeu-me emocionada, abriu um espaço na sua apertada agenda e combinamos de almoçar juntos. Foi um encontro impactante. Falamos durante muito tempo, comprovamos que os dois somos -35 anos depois- perdidamente apaixonados pela educação. Falamos mal dos médicos –privilégio que os integrantes da classe nos podemos permitir- e muito bem da medicina, que ambos amamos. E assumimos, em conjunto, a culpa por não saber formar os primeiros de acordo com os princípios da segunda, como deveria se esperar de quem tem essa função docente. Falou-me dos projetos que está executando, de um programa de preceptoria (o moderno coaching) para alunos que precisam de mais ajuda. “O mínimo que eu espero –afirmou- é que o professor dê o número do celular para o aluno, e que atenda ao telefone quando lhe chamem”. Perguntei com certo receio: “Mas você disse isso aos professores? Você acha que eles vão dar o celular para os alunos”. Ela sorriu: “Eu comuniquei à imprensa. Vamos ver se funciona”. Sabendo dos meus gostos humanistas pediu-me para escrever em seu nome. Aqui está o recado, ao qual presto total adesão: educar é comprometer-se, assumir de por vida essa tarefa. Sem pausa. Sem cansaço. Com alegria.
O segundo fato foi doloroso. Faleceu um velho amigo, também médico e professor, formado no ano em que eu nasci. Vinte e quatro anos de idade nos separavam, mas estávamos em perfeita sintonia de ideais, que são sempre jovens. Foi ele quem me trouxe de volta à Universidade para ensinar, após 15 anos de exercício como profissional liberal. Disto faz 18 anos, quando o conheci num programa de rádio onde ambos fomos convidados. O programa, ao vivo, atrasou quase duas horas, e decidimos sair para jantar porque a demora se esticaria. Conversamos, falei muito, ele escutou com um sorriso. Depois me disse diretamente: “Você não quer vir ensinar à faculdade de Medicina?” Eu respondi que não tinha tempo, que andava muito ocupado e, afinal, o que eu poderia ensinar. Ele me disse: “Essas coisas que você me contou. Ensine os alunos a serem médicos humanos, a ser gente, para poder cuidar de pessoas. Tens toda a liberdade de programa e de conteúdos. Apenas de o recado”. Insisti na minha agenda apertada, ele pediu para pensar durante as férias, pois era final do ano. Quando regressei liguei para ele e confirmei a minha recusa. “Venha almoçar na minha casa” – foi a sua resposta. Não consegui eludir tamanha delicadeza e lá fui eu, com a minha decisão negativa. Novamente me deixou falar, mais de meia hora; todos os motivos que tornavam inviável embarcar-me nesse projeto que ele me propunha. Afinal ele falou: “Você já teve um sítio alguma vez?” Perplexidade: “Não, por quê?” Ele continuava sorrindo: “Um sítio é um problema. Você se suja todo, o caseiro te rouba, arruma dor de cabeça. Mas, é uma ótima higiene mental cultivar hortaliças”. Parou por alguns instantes contemplando a minha cara de perplexidade. E a seguir, disparou: “Por que você não cultiva pessoas? Uma vez por semana. Vão te pagar mal, talvez nem a gasolina, mas é um prazer imenso poder cultivar gente”. Não consegui dizer que não. Tinha caído na armadilha. Ou talvez o fantástico germe da educação acabasse de me ser inoculado. E aqui estou até hoje. Obrigado, professor Willy.
As fascinantes melodias de Agustín Lara e de José Alfredo Jiménez emolduram o cenário onde Chano, nosso estudante professor, educa seus jovens colegas. E o amor que transpiram seus ideais, seu carinho familiar, me fez lembrar aquela toada mexicana que fala do amor bonito, daquele que você tinha comigo e que agora, longe, você sentirá falta dele. Um amor que na educação se torna perdurável e redescobre, com gratidão, os exemplos que nos arrastaram e nos fizeram crescer. Toda uma aventura que nos foi oferecida e da qual não podemos, nem queremos, nos dispensar. Outro professor, Josef Ratzinger, que também ocupa um altíssimo cargo hoje, nos oferece uma explicação condizente. “Há duas profissões –diz Bento XVI- que vão muito além de um emprego ou de um cargo. São os professores e os médicos. São profissões perduráveis”. Quando alguns temos o privilégio de juntar ambos os predicados, o destino está traçado. É questão de assumir e fazer a nossa parte. Começando pelo exemplo que arrasta.