Amores Materialistas: O eterno feminino, em busca do amor perdurável
Materialists. Direção: Celine Song . Dakota Johnson, Chris Evans, Pedro Pascal, Zoë Winters, Marin Ireland, Lindsey Broad, Sawyer Spielberg, Louisa Jacobson. USA. 2025. 109 min,

Quando vi o nome da diretora Coreana-Canadense nas críticas que acompanho fiquei atento. Celine Song me surpreendeu -na verdade, emocionou-me- com Vidas Passadas, aquela versão coreana de Casablanca como intitulei meu comentário na ocasião. Acompanho o filme e vejo as mulheres -destaque especial para a protagonista, magnífica, rouba os fotogramas- brilhando.
E por essas conexões involuntárias que temos os cinéfilos -fruto do muito visto, pensado, escrito, sonhado- transporto-me até a figura de um diretor clássico de Hollywood, George Cukor, que era conhecido por ser o diretor das mulheres. Na sua mão, brilharam Joan Crawford, Katharine Hepburn, Greta Garbo, Ingrid Bergman, Judy Garland, Audrey Hepburn, por citar algumas.
Fosse pouco, também é conhecida a história de que foi Cukor quem começou na direção de E o vento levou, mas sentindo os atores (nada menos que Clark Gable e Leslie Howard) que estavam sendo eclipsados pelas atrizes (Vivian Leigh, Olivia de Havilland), exigiram do produtor -que é quem paga a conta- trocar o diretor. Assim, o todo-poderoso David O. Selznick, retirou Cukor do comando e colocou Victor Fleming, mais em sintonia com o elenco masculino, que se cuidou de não mostrar de frente Clark Gable quando chora numa das cenas.

O diretor das mulheres já é coisa do passado -pensei- enquanto desfilavam os fotogramas dirigidos por uma mulher, saturados do eterno feminino. Em todas as variedades, coisa que ela faz questão de mostrar sem nenhum pudor. Em espectro maravilhoso que vai de um feminismo vazio e frívolo, quase adolescente, até as profundidades daquilo que somente uma mulher consegue enxergar, ver, sentir, intuir.
Vejo a Lucy, uma maravilhosa Dakota Johnson -nada a ver com os cinquenta tons de cinza- como a casamenteira mor da agência. Cuida dos clientes, conhece-os, sabe dos predicados de cada um. Ou pelo menos isso pensa ela até que as coisas – a vida real- acontece, e a surpreende. Os atores -também soberbos, Pedro Pascal e Chris Evans- são de fato coadjuvantes, e bem comportados porque aqui não tem como trocar a diretora que é mulher.
Quais são os requisitos para um bom casamento? A pergunta do milhão que paira diariamente na agência de casamenteiras, gerenciada e operada por mulheres, o que já é um recado. A intuição feminina que chega mais longe do que um simples checklist. Mas, mesmo assim, parece que os protocolos se impõem e pareando os requisitos a dobradinha deve funcionar. Nem sempre. E se deixamos algum aspecto de lado? E se algum detalhe -que se revela depois essencial- foi negligenciado?

Postos a emparelhar requisitos e condições, parece que a IA o poderia fazer melhor, sem omitir informações relevantes. Isso, obviamente, não está no filme, seria uma afronta à intuição feminina. Mas passou pela minha cabeça porque já presencie gente consultando a IA -espelho, espelho meu, será que ela (ou ele) é o meu par perfeito? Seria piada, se não fosse real. Afinal, se tudo é alinhar caraterísticas de personalidade, gostos, e potencial a IA poderia fazer isso com muita mais precisão. Quando se pensa que tudo é protocolo e guidelines, melhor delegar a quem tem competência provada.
Mas será que tudo se resume nisso? Será que preencher os requisitos garante o sucesso no amor? Será que essa espécie de RX -perdão, de Ressonância Magnética- da personalidade, me diz realmente quem é essa pessoa? Ou quem sou eu? Imediatamente pula na minha memória aquele diálogo admirável de filme de Spielberg, Amistad.: Anthony Hopkins perguntando a Morgan Freeman, qual é a história dos escravos revoltados, quem são eles. Esse é o grande tema do filme, quer dizer, dos dois filmes: daquele dos escravos, e deste das casamenteiras. Quem são eles, quem sou eu, qual é a capacidade que tenho de amar realmente, que tipo de amor eu -e ele, ou ela-querem?
Na teoria tudo funciona muito bem -amar, diz Lucy, é compartilhar uma vida, querer trocar as fraldas um do outro na velhice. Mas quando o assunto te atinge de perto, tudo resulta muito mais difícil. Diante do amor- do amor verdadeiro- é preciso sentir fragilidade, insegurança, que acompanha a aventura de construir uma vida a dois. Escrevia Rilke, o poeta austro-suíço quase místico: “Levar o amor a sério, sofrê-lo e aprendê-lo como um trabalho — é disso que os jovens precisam. As pessoas também interpretaram mal, como tantas outras coisas, o lugar do amor na vida; transformaram-no em um jogo e diversão, porque acreditavam que brincar e se divertir são mais felizes do que trabalhar; mas não há nada mais feliz do que trabalhar; e o amor, precisamente por ser a alegria suprema, só pode ser trabalho. Assim, quem ama deve tentar se comportar como se tivesse um ótimo trabalho: deve estar muito sozinho, entrar em si mesmo, concentrar-se e consolidar-se: deve trabalhar, deve se tornar algo”.

Um trabalho, árduo e incerto. Sem cintos de segurança, nem garantia de protocolos preenchidos -mesmo com ajuda da IA- porque provavelmente não funcionará, e depois não adianta ligar para o Procon. Não é Mercado Livre onde pode se pedir o reembolso. Mas para isso é preciso mudar a sintonia, sair do modo de aplicativo onde habitualmente as pessoas funcionam. Não no filme, que é muito mais sutil e delicado, mas na vida do nosso dia a dia. Tudo para ontem, para já, a distância de um click, com garantias de sucesso, protegendo-se de golpes. Esse modo de funcionar no amor, é comprar um golpe quase garantido.
As muitas impressões desordenadas, que intuo grandiosas, acumulam-se na minha mente conforme o filme avança. E depois, enquanto rascunho estas linhas não consigo evitar buscar no meu fichário, o que tantos pensadores falaram do amor, para ver se consigo colocar ordem nas ideias.
Tropeço com os clássicos da língua castelhana, começando por Jorge Manrique, o poeta do século XV de quem a Rainha Isabel de Castela era devota leitora. Que coisa é o amor? -pergunta-se o poeta. E escreve -enquanto traduzo livremente- estes versos: O amor é uma força tão forte / que força toda a razão/ uma força de tanta sorte/ que todo o cérebro converte/ em sua força e dedicação. É prazer em que há dores, / dor em que há alegria, / um arrependimento em que há doçura,/ um esforço em que há medos,/ medo em que há ousadia.

E, logo depois, de Calderón de la Barca, o famoso dramaturgo do século de ouro espanhol (s. XVI), encontro estes versos: Eu vivi tão cego de amor, quando não te amava/ como um cego imaginei/ como seria esse amor; adorei o que vi/ presumindo que era assim que o amor era; mas, ai de mim!/ Eu não vi o Sol, vi uma estrela/ e me entretive com ela/ até ver o próprio Sol. Não creio que Lucy tenha lido nem Manrique nem Calderón, mas a sua trajetória no filme fazem-me pensar que sintonizaria com eles. A descoberta de um amor que assusta, que te fragiliza, que te empurra para uma aventura incerta e maravilhosa, sem cintos de segurança.
Os Humanistas que tanto frequento, e dos quais me nutro para tentar melhorar a formação dos médicos que me são confiados, também contribuem com pensamentos iluminadores. “Os homens só se amam com amor espiritual quando sofrem juntos a mesma dor, quando lavram por algum tempo o solo pedregoso, presos ao mesmo jugo de uma dor comum. Então, se conheceram e se sentiram, e concordaram entre si em sua miséria comum, se compadeceram e se amaram. Pois amar é compadecer-se, e se a alegria une os corpos, a dor une as almas” – escreve Unamuno em O sentimento trágico da vida. E muitas outras coisas que já comentei no seu inesquecível Vida de D.. Quixote e Sancho.
Um amor que fragiliza e que foge de protocolos, de IA, porque no fundo, no frigir dos ovos, na intimidade, pouco sabemos dele. O amor não é publicável -em Instagram, em redes sociais- mas permanece latente. Escreve Gregorio Marañón no seu ensaio sobre D. Juan: “Outra característica do instinto de Don Juan é a ostentação escandalosa e deliberada dos próprios sucessos amorosos; o exagero destes; e até mesmo a sua fabricação, como também fazem os adolescentes. A condição indesculpável do grande amor é, ao contrário, o mistério. Somente nele a verdadeira paixão cresce. Quase nenhuma das coisas verdadeiramente profundas que aconteceram entre homens e mulheres foi conhecida por outros; e é por isso que ainda sabemos tão pouco sobre o amor”.

Amor que te faz orbitar em volta do amado, porque é o que confere densidade, peso, sentido à própria existência. Muito fala disso Ortega no seu Estudo sobre o amor; bastam dois parágrafos para alavancar as ideias que, nesta altura, já vão se ordenando. Escreve o filósofo espanhol: “Santo Agostinho, um dos homens que mais profundamente refletiram sobre o amor, talvez o temperamento mais gigantescamente erótico que já existiu, às vezes consegue se libertar dessa interpretação que faz do amor um desejo ou apetite. Assim, ele diz em extensão lírica: Amor meus, pondus meum; illo feror, quocumque feror. “Meu amor é meu peso; com ele vou aonde quer que eu vá.” O amor é gravitação em direção ao amado. Por outro lado, o ódio — apesar de se mover constantemente em direção ao odiado — nos separa do objeto, no mesmo sentido simbólico; nos mantém a uma distância radical, abre um abismo. O amor é coração ao lado do coração: concórdia; o ódio é discórdia, dissensão metafísica, não-ser absoluto com o odiado”.
Quando se embarca nessa aventura, incerta e fascinante do amor -sem protocolos, sem checar saldo na conta corrente, sem consultar o espelho mágico da IA- não são poupadas as dores, as lombadas da vida. Mas faz parte, porque daí nasce o projeto conjunto, o olhar comum para um ideal maior.
Gustave Thibon, filósofo francês autodidata, tem um livro inspirador que li há décadas na versão espanhola: Una mirada ciega hacia la luz . Encontro um texto que ilumina essa trajetória do amor e a superação conjunta das agruras da vida: “Fomos criados para o divino, mas também para o sensível. Sonhamos simultaneamente com a realização espiritual e com o amor humano, e é por isso que caímos tão facilmente em sua armadilha. Quando a beleza sensível nos é oferecida, não nos basta aceitá-la como tal, isto é, como algo efêmero e limitado, e pedimos que sacie nossa sede de mistério e absoluto. Esperamos dela um Deus que possamos abraçar, a prova do espírito pelos sentidos e do eterno pelo tempo… Até que chega a hora inevitável e percebemos que o que abraçamos nela não é Deus, mas nosso desejo desorientado, mas incurável, por Ele. Bem-aventurados, então, se descobrirmos que esse ser impotente para saciar nossa sede também sofre nossa mesma sede, e assim conseguirmos unir nossas duas misérias em uma única oração. Essa é a única possibilidade para a sobrevivência do amor humano. Não se trata de encontrar Deus um no outro, mas de buscá-Lo juntos”.

Um grito de transcendência que inunda de esperança os caminhos do amor. Um pensamento que paira sobre todas as sensações que o filme traz. Não são amores materialistas, como equivocadamente traduz o título ao português, mas um materialismo da alma que impede vislumbrar o amor. Outra frase de Thibon no seu livro que parece escrita sob medida para este filme: “A pobreza reconhecida e aceita nos leva à verdadeira riqueza, enquanto a emissão de dinheiro falso só pode nos levar à ruína”. Está servido o comentário, a provocação. Agora é mergulhar no filme, deixar-se levar sem medo, e sentir a força desta mulher que comanda a direção, escreve o roteiro, e mostra -com valentia- a possibilidade de um amor perdurável e verdadeiro, no meio de uma frivolidade toxica. Para mim, impactante. Cada um que experimente e fale por si mesmo!