D. Quixote em Unamuno:

Pablo González Blasco Livros 3 Comments

Idealismo realista e coragem para enfrentar a vida.

Há livros que marcam, para toda uma vida. Podem ser duas ou três ideias, que repousam no fundo da memória,  nos cantos recônditos da alma, e que, com irregular ritmo -quando lhes apetece- surgem, põem a cabeça para fora, nos dizem: estou aqui, lembras? Este é um desses livros. Uma recomendação que devo creditar -e agradecer- a um professor de literatura que tive há mais de meio século. A vida de D. Quixote e Sancho, sonhada e assimilada, com vitalismo singular, por Miguel de Unamuno, publicado em 1905. Fiz um longo resumo da obra, naturalmente em castelhano, porque muita audácia me parece, oferecer uma tradução livre da prosa do Reitor da Universidade de Salamanca.

Mas, sabendo da compreensão de D. Miguel, atrevo-me, sim, a traduzir um par de parágrafos -plasmar as ideias que surgem, vez e outra- pois essas estão lá, datilografadas, no meu fichário há mais de 30 anos. Encontro um que me comove, porque há muitos anos copiei-o, com devoção e cuidado, num pedaço de papel, e usei-o inúmeras vezes, como alavanca para as minhas tentativas de humanização e para empurrar a sonhar sem medo. Diz assim: “Tudo neles é sensualidade, e mesmo com ideias, grandes ideias, eles se apaixonam sensualmente. Eles são incapazes de casar com uma ideia grande e pura e constituir uma família a partir dela; apenas acumulam ideias, as consideram como amantes, menos ainda, talvez como companheiras de uma noite.” Um grito de gelar o sangue – mais ainda hoje– quando os ideais e os projetos não duram, não passam da terceira página… como diz um amigo meu.

Em outra ficha em papel, encontro isto anotado: “Duas moças da festa (de vida fácil), transformadas em donzelas por Dom Quixote, ó poder de sua loucura redentora!, foram as primeiras a servi-lo com carinho altruísta. Nunca foi um cavalheiro por damas tão bem servido. Com alma de mãe, as festeiras perguntaram a Dom Quixote se ele queria comer. Veja, então, se ele as torna donzelas com sua loucura. Toda mulher, quando se sente mãe, vira donzela (…) Não lembro quem disse isso, mas quem disse o disse muito bem, que para quem ama muito é o amor -amor pela mulher entenda-se- algo subordinado e secundário na vida deles, e é o principal nela para quem ama pouco”.

E mais uma ideia, arrebatadora e realista. O amor ao próximo – e não à humanidade – também tomou forma em alguma ficha, na minha primeira leitura: “Ame o próximo como a si mesmo” – nos disseram – e não ame a Humanidade, porque esta é um abstrato que cada pessoa concretiza em si mesmo. Pregar o amor à Humanidade é um modo disfarçado de pregar o amor próprio. Também essa cilada atingia Dom Quixote, e toda a sua carreira foi uma purificação dela. Aprendeu a amar todos os seus próximos amando-os em Sancho, porque é na cabeça do próximo e não na humanidade, onde todos são amados. Amor que não cristaliza sobre o indivíduo não é amor verdadeiro.” Quer dizer, o amor ao próximo não é uma enteléquia, mas algo que deve recair sobre o vizinho que temos do lado. Um desafio para os projetos de impacto social…..que se preocupam com os que estão distantes, e ignoram o vizinho da porta do lado.

Ninguém ama pessoas jurídicas, nem instituições; e quem equivocadamente o faz, antes ou depois, defronta-se com o desengano. O amor tem de ser concreto, incarnar-se em alguém. Lembrei-me de uma professora que tive no primário, sábia mulher. Era a década de sessenta, promoviam-se campanhas para recolher esmolas para as crianças da África. A professora comentou: “É ótimo dar esmolas para as criancinhas do Congo, sobretudo porque o dinheiro vem dos pais. Mas bom mesmo é dividir o teu lanche –que está na tua mochila- com o colega da carteira do lado. O Congo está muito longe, gente; vamos dar esmola por aqui mesmo”. Naturalmente, o bicho pegava por dizê-lo de modo simples e claro.

Algo que também me impactou na primeira leitura, foi esta breve consideração sobre a humildade: “Orgulho, orgulho refinado, é o de abster-se de agir para não se expor às críticas. O maior ato de humildade é o de um Deus que cria um mundo que não acrescenta um ápice à sua glória, e depois uma linhagem humana para lhe criticar a sua criação”.

E, finalmente, o compromisso pessoal, a consciência da missão, naquela tremenda frase que também ecoa na minha memória ao longo deste quase meio século: “Os encantadores podem tirar-me a felicidade, mas o esforço e a coragem serão impossíveis”. E Unamuno conclui “Sua façanha, sua verdadeira façanha, aquela que fará sua vida valer a pena, não será aquela que você vai procurar, mas sim aquela que vem te procurar, e ai de quem vai em busca de felicidade enquanto ela está aí batendo na porta da tua casa! Há uma razão pela qual se disse que as maiores obras são obra das circunstâncias.” Resgatar as circunstâncias, como diria Ortega anos depois, e não usá-las como desculpas que não convencem ninguém.

Comments 3

  1. Que texto maravilhoso!
    Como interpretar um livro tão emblemático à luz da mensagem que seu autor desejaria passar aos que o lessem.
    O que dizer de um personagem que deseja ressignificar sua vida, sem um plano concreto, apenas a fé em seus ideais. Ao adotar a”loucura” como paixão, ganhou uma nova energia vital. O que poderá sobrevir desta coragem de assumir seu sonho quixotesco? Entre riso e coragem, a escolha nos deixa perplexos e nos convida a autoanálise.
    Adorei!!!
    Obrigada por trazer estas reflexões tão profundas sobre a obra!

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