Michel Barlow: “Diario de un profesor novato”
Michel Barlow: “Diario de un profesor novato”. Ed. Sígueme. Salamanca. 1984. 160 pgs.
Foi o meu irmão Pedro, um apaixonado pela educação, quem me recomendou este livro. Aliás, não foi uma recomendação, mas um par de folhas manuscritas que me enviou por correio com umas citações deste autor; li, gostei, e guardei no meu fichário. Muitos anos depois, revisando anotações para preparar uma conferência, deparo-me com estas fichas. Pedro não está mais entre nós, mas sei que continua nos olhando do Céu e supervisionando nossos métodos educacionais –a educação é uma paixão que tomou forma epidémica na família, forma benigna entenda-se. Imediatamente adquiro o livro pela Internet numa rede de sebos de livros em espanhol. Não sei se são os bastidores –o making-off, diríamos em linguagem moderna- que acabo de relatar, ou o livro em si, mas o fato é que não me lembro de ter anotado tantas ideias na leitura de um livro tão curto. Uma desproporção saudável. Traduzo livremente do espanhol, com toda paz, sabendo que o original é francês, de modo que o conteúdo deve estar preservado.
O diário são as anotações de um jovem, ainda estudante universitário, que desempenha a função de professor durante um par de anos numa aldeia do interior da França, no início dos anos 60. Lá encontra o seu desafio, um conjunto heterogêneo de alunos que deve guiar através do aprendizado da língua, da literatura, da cultura. “Uma massa não se transforma espontaneamente numa comunidade. Essa é a tarefa do professor: conseguir a unidade em trinta encantadores e anárquicos estudantes. Não se trata de impor a disciplina militar ou o silêncio do cemitério. Mas exige um esforço que não é simples. Assim costumo dizer: A escola não é um quartel. Meu papel consiste em ajudar que vocês se cultivem a vocês mesmos. E cultivar-se não é encher a cabeça de conhecimentos, mas encontrar a fibra do espírito. Para isso o método é colocar-se em contato com os homens, despertar os próprios pensamentos no contato com os outros. Formamo-nos através das pessoas com as quais nos encontramos.”
É difícil imaginar como com pouco mais de 20 anos é possível amealhar estas reflexões de fundo, cozinhar as vivências, até transformá-las em fenomenologia da experiência educacional. O livro é publicado em 68 –ano simbólico, mas mesmo assim ou autor não tinha ainda 30 anos. A capacidade de observação, a convivência com professores veteranos, e um hábito de reflexão arraigado são pistas que ajudam a entender estes resultados. Assim, lembra de um professor de literatura que lhe influenciou: “Talvez porque em vez de censurar, dava confiança; pela sua paciência de pescador, pela sua bondade acolhedora. Há dois tipos de mestres: aqueles que te fazem pensar que és inteligente, apostam em você, e te convertem de fato em alguém capaz e esforçado; e os que te cortam as asas”. Ou de aquela outra professora, mãe de família que dizia não ter prontas as aulas por um motivo simples e definitivo: “Não preparei nada. Antes tenho que ver a cara das minhas novas alunas”. E de outro mestre na Universidade, cujas “mãos e o seu olhar ardente de jovem septuagenário me falavam mais do que os seus lábios, da infinita paciência do pensamento humano”.
Esse convívio construtivo vai esculpindo no aprendiz o ideal de professor. Assim o confessa abertamente: “Somos o que somos pelos encontros que tivemos na vida. E influenciamos nos outros, mesmo sem reparar”. É uma vocação que se constrói, um despertar para o que realmente importa num mestre. “Nunca teremos êxito se não nos deixamos cativar pelo tema, se não forma parte do que realmente nos apaixona(..) O que importa não é tanto a matéria que se dá, mas o encontro com os espíritos viventes aos que se vê despertar aos poucos (..) O humor é um condimento insubstituível para a educação, que agudiza a mente e aumenta o apetite por saber. O humor é o anjo da guarda da autoridade”. Lembrei das palavras de outro grande educador (Parker Palmer) quando afirma que a questão crucial na educação não é o que se ensina, nem o público, nem como se ensina, mas quem está ensinando: porque ensinamos o que somos!
O professor deve ser, antes de mais nada, um exemplo a ser seguido, inspirar emulação nos alunos. Diz Barlow: “Os melhores professores são os que sabem confessar às vezes: ‘não sei’, e não os que driblam o problema, saem pela tangente diante da pergunta. A alma da cultura não está feita de certezas, mas de humildade; não consiste na frase feita de impacto, mas na capacidade paciente de escutar, de se maravilhar. Essa cultura é preciso vive-la diariamente. Quem se empenha em cuidar da própria fachada, desfigura a cultura na alma dos seus alunos. A primeira qualidade de um educador é compreender que não pode compreender tudo (…) A educação é um encontro de mão dupla. Não quero saber nada, e posso encontrá-lo tudo ao ritmo dos meus alunos. Não quero impor minhas verdades, quero encontrá-las de novo rejuvenescidas, ressuscitadas… Esta é a alegria de ensinar”. A consequência desta humildade docente é clara: “O professor não deve impor o seu saber, mas ensinar ao aluno concreto, para que desenvolva todas as suas possibilidades, sabendo que cada alma tem o seu ritmo próprio. Não se tem com a alma dos jovens, o mesmo cuidado que com os seus pés. Compramos sapatos à medida, mas não se prepara uma escola à medida”.
Saber avaliar é também uma competência que deve se esperar de um bom professor, e o autor aponta que com muita frequência as avaliações que se praticam são defeituosas. “Não nos perguntamos o que o aluno fez: os progressos, o esforço, o entusiasmo. Somente levamos em conta o que não fez, as falta cometidas. Corrigir não significa o que implica a etimologia: por reto, endireitar. Limita-se a detectar os erros e puni-los. Com frequência a educação é puramente negativa. Consiste somente em castigar os excessos, ao invés de canalizar e fazer que floresçam os dons. As correções mais úteis são as que sublinham mais as qualidades do que os defeitos (…) É preciso educar a liberdade, não afoga-la; deixar por conta de cada um a difícil tarefa de decidir por si mesmo. Pode-se obter muito de um aluno, se o tomamos a sério, e se lhe concede a responsabilidade que lhe cabe”.
As considerações que o jovem professor traça a respeito da educação humanística e da cultura são de uma riqueza impar, além de possuir originalidade. “O fim da educação humanística é fazer com que cada um se desenvolva de acordo com a própria vocação. Não se trata de construir gênios, mas de que tomem consciência do que são, da sua necessidade interior, da sua vocação (…) Igual que a amizade a cultura é um fenómeno temporal que exige seus rituais, sua paciência, suas mudas felicidades, suas lentas germinações. Há quem diga que a cultura é o que fica quando se esqueceu tudo. A cultura não é um capital de conhecimentos, mas uma maneira de ser: um espírito de acolhida que não nega sua simpatia a nenhum valor humano. A cultura é também docilidade, isto é, a faculdade de aprender, de deixar-se ensinar pela vida e pelos homens”.
Ter claro estes postulados, implica que o professor prime pela qualidade, que personalize a educação –trabalhando os alunos, ajudando-os um a um- sem sucumbir às exigências de programas pedagógicos quantitativos, que mais se assemelham à produção em série, do que a burilar talentos. “O bom aluno é um viajante sem bagagem. Não é preciso equipá-lo, mas afiá-lo. Olhos para ver, ouvidos para ouvir, uma cabeça bem feita, disponível. O cérebro com recheio é um ideal de cozinheira, não de professor (…) A cultura não consiste em inchar-se apressadamente com conhecimentos que se destilam depois, em doses homeopáticas. A cultura é um encontro. Todo homem que se cruza no meu caminho modifica meu olhar sobre o mundo: me cultiva no sentido próprio do termo. Essa é a função da literatura”.
Naturalmente o uso educacional que faz da literatura tem um papel preponderante. “Não há que ler um texto para encontrar uma lição. É preciso ler para encontrar uma presença humana, para incorporá-la na nossa vida. A literatura não são palavras, mas a linguagem de uma pessoa que se dirige a outra (..) Não se estuda os autores antigos para saber o que disseram no seu tempo, mas para saber o que nos continuam a dizer agora”. O encontro com os clássicos, que se revela nas artes, é caminho que prepara os jovens alunos para a vida que terão de viver. A cultura não é erudição estéril, mas recurso para viver a vida que nos cabe, ou melhor, aquela que temos que viver a cada momento porque, como dizia Ortega, a vida não nos é dada, mas temos que construí-la. “Não é fazer deles ratos de biblioteca, mas estimular a ‘atenção ao outro’ o que eu gostaria de desenvolver neles. O verdadeiro drama consiste naquilo que um filósofo contemporâneo chama de crime de desatenção”. Por isso a cultura genuína leva à vida, aos detalhes corriqueiros, a saber posicionar-se diante dos outros que é o verdadeiro humanismo: “Gosto da definição dos nossos avós: ter humanidade é saber conversar com os homens. Uma conversa que usa a linguagem empregada nas tavernas e não nas escolas de oratória”.
Literatura, artes, cultura. Mas, acima de tudo, a paixão de educar. Esse é o grande resumo deste pequeno livro que deve ser lido, relido, meditado….incorporado. Aos poucos, porque são muitos os desafios que se apresentam para construir-se na excelência como educador. Deixar rastro, despertar os espíritos. A lembrança de um velho professor –que me seduziu para entrar neste mundo apaixonante da educação- aflui à minha memória enquanto escrevo estas linhas. ‘Você já teve um sítio alguma vez? –me dizia. Na verdade, parece não compensar. Você se suja todo na horta, o caseiro te rouba, mas é um privilégio, uma paz para o espirito cultivar hortaliças uma vez por semana’. Eu olhava não querendo entender, mas ele foi direto: ‘Por que você não cultiva pessoas? Uma vez por semana?’ Assim começou o meu namoro com o mundo da educação, hoje um Livro de Cavalaria, com direito a D. Quixote, Dulcineas, Sanchos e, naturalmente, muitos moinhos de vento. Um privilégio…Cervantino.
Cultivar a horta de cada um, esse é o verdadeiro legado de um professor. Anota Barlow “Muito mais do que a arte ou a literatura, a educação brinda a oportunidade de multiplicar a própria vida. Alguns dos que mais marcaram a humanidade, não escreveram nada. Preferiram deixar sua semente na alma de discípulos atentos”. E para caso surgirem as dúvidas, cita nada menos que a Camus, a queima-roupa: “Penso que este mundo não tem sentido, mas sei que há algo nele que sim o tem, o homem, porque é o único que é capaz de exigi-lo.” Quando os moinhos de vento se transformam em gigantes que ameaçam nossa paixão por educar, a lembrança dos fracos que devemos proteger, dos “entuertos para desfazer”, levantam no fidalgo os ânimos, seguram-no na sua missão, garantem a sua felicidade que é ser útil.
Barlow não era um acadêmico, um intelectual fechado na sua torre de marfim, num feudo blindado e, muitas vezes, estéril. Talvez isso explica o gosto que despertou no meu irmão, pelas semelhanças das suas tarefas docentes: professores do interior, que percorrem aldeias e cidadezinhas, cuidando das hortas humanas que por lá estavam. São modelos que mudam as pessoas e, naturalmente, fazem melhor este mundo nosso. E são, sem dúvida, felizes, e úteis. Ai está, para encerrar estes comentários, a frase do autor que resume com maestria qual é a pedra angular da educação, e da própria vida: “Ser feliz é isto: não conhecer as fronteiras entre o trabalho e a alegria”. Um desafio tremendo, imenso, apaixonante.
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Nossa, fiquei sem palavras. De repente, voltei vários anos atrás e me lembrei de alguns professores que tive. Marco Antônio, professor de Língua portuguesa no colégio. Ana Augusta, minha professora na quarta série primária, eu tinha 9 anos. E Severino, professor de redação da Faculdade de Comunicação Social. Todos tinham em comum o amor pela arte de lecionar. Uma me ensinou a dar os primeiros passos, a amar a escola, a sentir saudades da sala de aula nas férias (coisa impensada pela maioria dos estudantes). Severino era divino. Eu contava as horas para chegar a quinta feira, dia das aulas de redação. Ele nos fazia voar. Toda semana uma nova emoção. Eu me sentia tão especial. Escrevia, escrevia e escrevia. Meus sentimentos e minha imaginação transbordavam. Pensar nisso agora volta a me emocionar. Bateu uma Saudade de mim mesma, daquela pessoa que eu era. Talvez essa pessoa ainda exista….
Pablo
Quanta sabedoria na cabeça de um professor tao jovem. Tenho 86 anos de vida dos quais 70 em contato com alunos. Quando na Faculdade, conheci alguns poucos professores que despertavam uma vontade enorme de “ser como eles”. E lutei por ser assim…Que alegria dá, ainda hoje, cultivar essas “hortas”. Mauricio Torloni