Honore de Balzac: “Eugenia Grandet”
Honore de Balzac: “Eugenia Grandet”. Abril Cultural. São Paulo, 1971. 230 pgs.
A tertúlia literária mensal oferece a possibilidade de poder reler os clássicos, desfrutar com eles, continuar aprendendo. Desta vez o convocado foi Balzac, o que significa um mergulho vital nas paixões humanas. Todas, descritas com minúcia, encontram-se em Balzac –dizia-me certa vez um amigo. E assim é, independentemente de onde o escritor francês situe a ação. Na corte, entre os aristocratas ou, como o caso que nos ocupa, nas províncias, lá onde encontramos “existências tranquilas na superfície, e devastadas secretamente por tumultuosas paixões”, e onde “uma moça não põe a cabeça à janela sem ser vista por todos os grupos desocupados”.
Mas a viagem ao interior do homem e o encontro com as paixões, não possuiriam a força que Balzac proporciona, não fossem as primorosas descrições que perfilam as personagens. Os comentários surgidos na nossa tertúlia ilustram essa característica. “Não prestei muita atenção ao argumento porque dediquei-me a saborear as descrições, a degusta-las” –dizia alguém. E outra: “Na verdade Eugenia é um papel secundário, porque o protagonista é o velho avarento, o pai dela. Talvez porque está muito bem desenhado”.
Sim, as descrições são precisas; a do Grandet é definitiva. “Os olhos do velho Grandet, aos quais o metal amarelo parecia ter comunicado o seu matiz. O olhar de um homem acostumado a tirar de seus capitais um juro enorme adquire necessariamente, como o do libertino, o do jogador ou o do cortesão, certos hábitos indefiníveis, movimentos furtivos, ávidos, misteriosos, que não escapam aos correligionários. Essa linguagem secreta constitui de certo modo a maçonaria das paixões”. Li essa frase há muitos anos e a guardei, porque explica de modo categórico como se encontram e entendem os que padecem as mesmas paixões, as limitações, enfim, os “correligionários” em baixezas e servilismos.
Grandet personifica a avareza até incorporá-la na sua essência. “Não frequentava a casa de ninguém, não recebia nem oferecia um jantar; nunca fazia barulho e parecia economizar tudo, até o movimento”. Destila avareza, porque é o que hoje denominaríamos seu sistema operacional. Pede para a fiel empregada preparar uma sopa barata, não com aves caras, mas com corvos. A empregada replica que os corvos comem defuntos. E Grandet fecha a questão: “eles comem, como todo mundo o que encontram. Nós não vivemos de defuntos? Que são as heranças?” Não há outro modo possível de pensar porque como bem afirma Balzac, em mais uma da suas frases contundentes, os avarentos não creem numa vida futura, o presente é tudo para eles.
A esposa de Grandet é uma coadjuvante que aumenta o contraste do quadro, ficando nas sombras para destacar a claridade do sovina egoísta. “A Sra. Grandet era uma mulher seca e magra amarela como um marmelo, desajeitada, lerda; uma dessa mulheres que parecem feitas para ser tiranizadas. Tinha ossos grandes, um nariz grande, testa grande, olhos grandes e oferecia, ao primeiro aspecto, uma vaga semelhança com essas frutas fiapentas que não tem sabor nem suco(…) Uma doçura angélica, uma resignação de inseto judiado pelas crianças, uma piedade rara, um inalterável equilíbrio de gênio, um bom coração, faziam-na universalmente lastimada e respeitada”.
Circulam outros personagens, muito bem desenhados. Espíritos interesseiros, que buscam a própria vantagem e adulam o cada vez mais poderoso Grandet. Balzac não os poupa, e condena a atitude de forma lapidária. “A lisonja nunca emana das grandes almas; é o apanágio dos espíritos pequenos, que conseguem diminuir-se ainda mais para entrara na esfera vital da pessoa em torno da quem gravitam”.
Eugênia que da nome ao livro mas exerce um protagonismo discretíssimo é a jovem mulher que, enclaustrada pelo pai, anulada pelo sistema, faz brotar a generosidade, a delicadeza, a ingenuidade do amor simples e puro “Ocupados em se dizerem grandes nadas, ou recolhidos os dois na calma que reinava entre a muralha e a casa”.
Ler Balzac é mergulhar nos perfis humanos, deparar-se com as paixões, apalpar vícios e virtudes, enfim, contemplar o amplo espectro de possibilidades humanas que desfilam na nossa frente. Podem, às vezes, parecer exagerados. Mas é um recurso pedagógico para que aquilo que é apresentado em estado puro, quase caricaturesco, nos lembre que vícios e virtudes não vem de fábrica, respondem à liberdade de cada um de nós. Todos podemos nos envolver na avareza de Grandet, na ingratidão interesseira do primo dândi, ou responder com grandeza de coração, com generosidade alegre, como Eugênia.
E citando palavras de outra das assistentes à tertúlia literária, Eugênia é sim uma mulher especial, que supera com sua virtude as baixezas que a rodeiam. Uma mulher de classe. Balzac sem dúvida concorda quando no final do romance traça o panegírico definitivo da protagonista: “Entre as mulheres, Eugênia Grandet será talvez um tipo que simboliza as dedicações; lançada através das tempestades do mundo e que ali a afundam, como uma nobre estátua roubada à Grécia que, durante o transporte, cai no mar, onde permanecerá para sempre ignorada”. Ignorada, mas presente, como um modelo que estimula e promove os mais atrativos predicados femininos.