Graeme Simsion: “O Projeto Rosie”
Graeme Simsion: “O Projeto Rosie”. Record. Rio de Janeiro, 2013. 319 pgs.
O livro estava entre as minhas pendências. Compõem-se estas de anotações a modo de lista, de comentários que vamos lendo aqui e acolá, em jornais e críticas de literatura especializada. Lembro até de ter recebido um e-mail circular de um colega médico americano elogiando o livro. A tertúlia literária mensal estava chegando, e bati o martelo. É uma das poucas prerrogativas que me cabem nessa atividade: decidir o livro do próximo mês. O resto do que por lá acontece -que é de longe o mais interessante- corre por conta dos seletos participantes.
Mas fui com muita sede ao pote. Esperava algo num registro emotivo em sintonia com os romances dos anos 40, aqueles que Hollywood nos fazia viver com James Stewart, Gary Cooper, e uma infinidade de atrizes maravilhosas comandadas por grandes diretores: Frank Capra, George Cukor e tantos outros. Mas a leitura do livro não acabava de decolar. Senti falta de tempero no início, às vezes chegando a ser maçante; uma personagem fora da realidade, ou pelo menos da realidade da maioria dos leitores. Raia o cômico, o grotesco, mas faz pensar que existe gente assim e, mais importante, nos leva a refletir no amplo espectro dos temperamentos. Foi aqui onde experimentei a virada. Tive de lembrar das aulas que dei inúmeras vezes -faculdade de medicina incluída- sobre os temperamentos. E de como um não é melhor do que o outro, porque são simplesmente diferentes.
Não é um conto de fadas nem uma história como My Fair Lady, onde a insensibilidade do professor Higgins é compensada pela delicadeza de Eliza Doolittle, enquanto sofre a metamorfose da tosca vendedora de flores virando uma princesa húngara! Não. O protagonista não é um Pigmalião: não transforma ninguém, mas é transformado…dentro das possibilidades que o seu temperamento lhe oferece. Don Tillman é um competente e sistemático professor de genética. Um homem que sabe tirar aproveitamento magnífico dos recursos, mediante a ordem e os esquemas de vida. Tudo o que lhe chega, entra nos seus meticulosos projetos. Nada de improvisação, que pode levar ao fracasso. Até que um dia entra Rosie. E entra no meio de um projeto peculiar, um questionário apurado para encontrar a mulher ideal. Mas Rosie entra pela porta dos fundos.
O nosso professor sabe das suas limitações, o que, dito de passagem, é uma grande vantagem. “Nuances sutis de linguagem que eu não percebo. Me dei conta que se a entrevistada fosse alguém como eu, ela não perceberia a diferença. Mas não havia motivo para exigir que minha parceira potencial tivesse a mesma falta de sutileza que eu (…) Restaurantes são campos minados para os socialmente ineptos, e eu estava nervoso, como sempre fico nessas situações”. Ser de um jeito ou de outro no tocante às emoções, é algo que vem de fábrica. Conhecer-se e saber se posicionar de acordo é virtude, tem mérito. “Estou programado para reagir aos fatos e não aos sentimentos dos outros. Pelo menos, eu sabia que ele sabia quem eu era. Saberia ele que eu sabia que ele sabia quem eu era? Eu estava ficando bom mesmo nas sutilezas do trato social”.
Os comentários da tertúlia literária foram suculentos, encantadores. Alguém afirmou: “Quem diz que esse homem não é capaz de amar? Somente porque não se derrete em lágrimas e dengos? Vejam a capacidade de adaptação, de sacrifício e de prestar ajuda que ele desenvolve. Racionalmente, sim; mas com eficácia. Ele não sabe, mas isso é amor de verdade. ” Do outro lado da roda brota outro: “Um sujeito fleumático, britânico, com projetos para tudo. Mas, hoje o problema que vivemos é que as pessoas têm carência de projetos. Este camarada monta um questionário para encontrar a esposa que se encaixe no seu modo de ser. Um exagero? De acordo, mas tem gente casando sem esboçar um mínimo projeto de vida, e depois dá no que dá. Um desastre. Isso sim, com muita emoção, e nenhum cabeça”. Eu estava me divertindo, mais do que com o livro.
Recordei nessa altura o comentário de um velho amigo com muitas horas de voo em aconselhamentos a casais: o grande problema é que elas casam pensando que vão mudar ele, e ele casa pensando que elas não vão mudar. E ocorrem as catástrofes que o nosso protagonista adverte de modo lacônico: “Os seres humanos muitas vezes deixam de enxergar o que está perto deles e que parece óbvio para os demais. ” Somente os envolvidos não enxergam o que é para todos evidente. Talvez por que lhes sobra a emoção que ao nosso Don lhe falta, e carecem de um mínimo de projetos, que o geneticista tem em demasia.
O temperamento vem dado de fábrica. Não é bom nem ruim; simplesmente é assim, e dessa premissa temos de partir para entender o ser humano. A emoção, a atividade, o ser primário ou secundário. E nessa combinação de elementos cristalizam os temperamentos puros que, sem ser absolutos -todos somos uma mistura dégradé em proporções diferentes- ajudam muito a entender os outros…e, principalmente a nós mesmos. Lembro que os meus alunos na faculdade, durante a prova (eu fazia prova oral, algo único para avaliar o aluno e ver quem ele é de fato) comentavam que o melhor dessas classes era ter se conhecido melhor.
Mas sobre o temperamento, atua o caráter que vai sendo lapidado a força de hábito e virtude. E quando se carece, por exemplo, de emoção é possível suprir isso com esforço e atenção. Com dedicação e sistemática, se for o caso. “Algumas vezes sou acusado de ser inflexível, mas acho que isso prova a capacidade que eu tenho de me adaptar ás circunstâncias mais estranhas”. O nosso professor enfrenta o desafio da compreensão, para situar-se na vida. “A falta de empatia é que causa a minha incapacidade de reagir emocionalmente às situações dos personagens fictícios dos filmes. Mesmo assim eu ainda lamentava tantas situações (longa descrição) …Uma lista impressionante e embora eu não tenha incluído aí Rick e Ilsa de Casablanca era uma prova de que minha capacidade de sentir empatia não era de todo nula”. Ele coloca em jogo os talentos que possui, para suprir o hardware que não tem. Um verdadeiro esforço de superação.
Tivemos que acabar a tertúlia por decreto. O tempo esgotado, mas as opiniões querendo se abrir espaço. É a outra prerrogativa, menos agradável, que me cabe: finalizar na hora nossa reunião. Sorrisos, algumas anotações, até agradecimentos pelo momento vivido. E um maravilhoso sabor de boca que é degustação da tertúlia próxima que está por vir. Enquanto me retirava, imaginei Don Tillman me perguntando com rigor científico: mas afinal, o que você tirou de tudo isto? Quais foram os resultados da sua pesquisa literária? E eu, sorrindo, sabendo do domínio absoluto da plateia feminina lhe responderia com as palavras do colega dele: “Don, meu prezado, desde quando as mulheres discutem alguma coisa explicitamente? ” Sempre aprendendo, sem cansar-se, nas entrelinhas, que também é rigor cientifico.