Ítalo Calvino: “O Visconde partido ao meio”
Ítalo Calvino: “O Visconde partido ao meio” Companhia das Letras. 1997. 90 pgs. (incluído na trilogia: “Os Nossos Antepassados”)
A tertúlia literária mensal traz à tona esta pequena-grande obra de Ítalo Calvino. Um escritor que faz da fantasia recurso para analisar o ser humano, ajuda a entender melhor o homem contemporâneo e, naturalmente, dá recados que nos acompanham na aventura singular do conhecimento próprio
O narrador -que é o próprio Calvino, incarnado num adolescente- conta-nos as desventuras do tio dele, Medardo de Terralba, o visconde que figura no título, e que na guerra contra os turcos, recebe uma bala de canhão sendo deste modo seccionado em duas metades. Uma presidida pela maldade, enquanto a outra faz da bondade seu guia. Um absurdo aparente que, já no prólogo Calvino faz questão de advertir: “Partido ao meio, mutilado, incompleto, inimigo de si mesmo é o homem contemporâneo”.
A figura fictícia do visconde secionado, “aquele perfil que continuava a ser um perfil mesmo visto de frente”, dividido em curioso maniqueísmo, é uma metáfora que dá pano para manga, como comprovamos nos comentários, magníficos e surpreendentes, que se sucederam na tertúlia. E como bem nos adverte o narrador, quando se é jovem, os sentimentos e as intenções se misturam: “Meu tio se achava então na primeira juventude: a idade em que os sentimentos se misturam todos num ímpeto confuso, ainda não separados em bem e mal”.
As adversidades que a vida nos coloca, como a fatídica bala de canhão do Visconde, tem o poder de dividir-nos, que é fazer-nos amadurecer. Desses golpes emergem os melhores empenhos para sobrepor-se ás dificuldades, assim como também descortinam as misérias que carregamos dentro. A luta entre essas duas partes não acaba nunca, não existem conquistas definitivas dos mocinhos, porque os bandidos sempre estão à espreita. Bem sabia destas lutas Santo Agostinho, não apenas por ter estudado a fundo o tema, mas por tê-lo vivido na própria carne. “Se dizes basta, estás perdido. Quem não avança no caminho, retrocede”- e sentenças análogas que apontam não haver aposentadoria para este combate que é de por vida.
Calvino nos adverte que é justamente nesta batalha que livramos dentro de nós, onde se encontra o encanto da vida. “Isso é o bom de ser partido ao meio: entender de cada pessoa e coisa no mundo a tristeza que cada um e cada uma sente pela própria incompletude. Eu era inteiro e não entendia, e me movia surdo e incomunicável entre as dores e feridas disseminadas por todos os lados, lá onde, inteiro alguém ousa acreditar menos. Não só eu sou um ser dividido e desarraigado, mas você também e todos. Mas agora tenho uma fraternidade que antes, inteiro, não conhecia: aquela com todas as mutilações e as faltas do mundo”.
Verdade contundente esta: porque quando apalpamos nossas limitações e tocamos as misérias que nos humilham, conseguimos entender melhor os outros, crescemos em compreensão. Já dizia Gregório Marañón, o médico humanista, que somente entende e olha com carinho as fraquezas alheias, aquele que tem consciência das próprias cicatrizes. Talvez seja esse o papel das figuras coadjuvantes na história do nosso visconde, como foi apontado certeiramente na tertúlia: um entendimento sereno das limitações alheias, não se assustando com as maldades em erupção, nem se iludindo com os acessos de bondade da outra metade. Porque afinal, somos um só, com os dois lados, a luta é continua dentro de nós.
O livro, breve, desperta um sem fim de associação de ideias. Lembrei daquele filme de Harrison Ford (Uma segunda chance) onde um advogado canalha, após levar um tiro na cabeça, desperta do coma prolongado como se não tivesse pecado original, e se surpreende assustado ao descobrir todas as tramoias que vinha fazendo até o momento do incidente. Lembrei também do poema do Fernando Pessoa que reflete maravilhosamente esta dualidade que preside nossa existência: “Temos todos que vivemos/ uma vida que é vivida/ e uma vida que é pensada/ e a única vida que temos/ é esta que é dividida/ entre a verdadeira e a errada”. Até a figura do Dr. Trelawney tem seu papel pedagógico e associativo: um médico que não se preocupava com os doentes e sim com suas descobertas científicas, até o momento em que contempla a junção das partes onde Medardo recupera sua identidade. De fato- pensei com o viés da medicina humanística que me rodeia a toda hora- somente quando contemplamos o paciente como pessoa, deixamos de nos distrair com a ciência, e recuperamos a nossa missão de serviço como médicos.
“Se você virar a metade de você mesmo, e lhe desejo isso jovem, há de entender coisas além da inteligência comum dos cérebros inteiros”. Uma divisão que é apenas pedagógica, para entendermos o palpitar contrário que nos acompanhará até o túmulo. Convivência pacífica, diplomática -houve quem apelou para a história bíblica do joio e do trigo, não adianta arrancar antes da hora, que o resultado seria pior. Sem violências nem desesperos, quando comprovamos os abismos de ruindade de que somos capazes. E ir sanando esses defeitos com uma bondade desbordante. “Não levantem a mão contra ele nem contra ninguém (disse o lado bom). Não existe outro remédio exceto dar-lhe bons exemplos, mostrando-nos gentis e virtuosos a ele”. O lado bom do Visconde fez-me lembrar o pensamento do místico de Castela, S. João da Cruz: “Onde não há amor, coloca amor, e tirarás amor”.
Mas convivência sem, no entanto, ceder nos valores. Ganhando-se em experiência e conhecimento próprio. Porque se “nada atrai mais os homens do que ter inimigos e depois verificar se são exatamente como os imaginavam” bem podemos deduzir a experiência que se decorre de conhecer o inimigo que levamos dentro de nós. Essa ciência nos permite ir pela vida com otimismo, sabendo que somos capazes de baixezas e heroísmos, em unidade de vida, como na junção de Medardo: “Um homem inteiro, nem mau nem bom, uma mistura de maldade e bondade. Mas tinha a experiência de uma e de outra metade refundidas, por isso devia ser bem sábio”. Algo que devemos conquistar no dia a dia, como lemos na sequência do poema de Pessoa, sobre as duas vidas: “Qual porem é verdadeira/ E qual errada, ninguém/ Nos saberá explicar/e vivemos de maneira/ Que a vida que a gente tem/ É a que tem que pensar. ”
Refletir com serenidade, sem assustar-se com as baixezas que nossa humanidade transpira; conquistando serenamente o terreno a golpe de virtude que, no dizer bíblico, se aperfeiçoa com a adversidade, com as balas de canhão digeridas, assimiladas. Daí emana a sabedoria de uma vida em unidade de propósito. Esse é o grande recado deste livro metafórico, para um fascinante programa de vida.