Frantz: Uma experiência estética de amor e perdão
Frantz. Diretor: François Ozon. Paula Beer, Pierre Niney, Ernst Stötzner, Marie Gruber, Cyrielle Clair, Johann von Bülow, Anton von Lucke. 113 minutos. Alemanha- França.2016.
Bastam as primeiras cenas para entender que estamos diante de um grande filme. Dificilmente me engano -e penso que isso acontece com todos os que amam o cinema: o diagnóstico da qualidade é questão de minutos. É possível que uma grande produção se afunde lá na frente, mas nunca é um naufrágio; são escolhos que atrapalham e que muitas vezes seriam dispensáveis. O contrário também é verdade: se o filme não decola a te apanha nos primeiros fotogramas, provavelmente o resto é uma perda de tempo.
Frantz é um filme que te prende nas primeiras tomadas. Um branco e preto elegante, comovedor, que te golpeia e te faz esquecer que a vida é colorida, mesmo nas histórias dramáticas como a que o diretor francês -que supera aqui toda sua produção anterior- nos conta. Uma história que, na verdade, são muitas; são as histórias das personagens, magnificamente desenhadas, que se unem no nome que consta no título: Frantz.
E quem é Frantz? Um soldado alemão que acaba de morrer na Primeira Guerra Mundial, não aparece no filme, e serve a ocasião para todas as outras histórias, unificando-as. Um denominador comum ausente, elemento já usado no cinema por alguns mestres. Impossível não recordar aquele grande filme de Hitchcock, Rebecca, onde a mulher inesquecível do título também está ausente. E quando lembro deste filme imediatamente o atrelo à aquele outro, Suspeita, onde o diretor inglês coloca uma lâmpada dentro do copo de leite que Cary Grant leva para Joan Fontaine, destacando o brilho no branco e preto, atraindo o olhar sobre a bebida, aumentando a suspeita do título. Recursos de elegância para quem se atreve a filme em branco e preto. Hoje, com um público que responde em reflexo medular aos apelos dos efeitos especiais, este modo de escrever um filme merece um tremendo respeito.
De Frantz conhecemos apenas seu túmulo. E a noiva, Anna, que leva flores todos os dias. Até que um dia, cruza-se no cemitério com um jovem que ao parecer também vem render homenagem ao soldado morto. Nada teria de especial, a não ser que o jovem, Adrien, é um francês, quer dizer, súbdito de um pais inimigo, que enfrentou Alemanha na guerra, e a derrotou.
O embrulho do filme, a forma estética, é simplesmente encantadora. Uma fotografia de alta qualidade, própria dos acadêmicos do branco e preto, que por vezes, timidamente e em poucos instantes, ousa colorir-se para emoldurar momentos especiais. Um delicado romantismo costura toda a obra, de modo sereno, reflexivo, ponderado, sem exageros. Um equilíbrio perfeito.
Alguém poderia se perguntar porque todos estes elogios quando é sabido que os meus mergulhos cinematográficos, pouco se detêm na forma, para ir buscar no fundo os valores, o impacto que o filme me provoca. É verdade. Mas, não há como omitir essa armação que faz ressaltar os valores impressos no filme, e na alma das personagens, que atingem em cheio o espectador.
E quais são os valores? Difícil resumir aqui o que se passa nesta narrativa dramática, que se articula num verdadeiro painel de sentimentos: ódio, vingança, desconfiança, remorso, e o perdão em síntese perfeita. Uma trajetória que acompanha as personagens, e convida o espectador a acompanha-los nessa experiência vital. Difícil e arriscado, porque entrar mais no argumento, comprometeria não apenas a novidade de quem se arrisca a assistir, mas principalmente, as reações emotivas às quais certamente será submetido. Porque o filme, valha a advertência, é quase uma experiência fenomenológica, uma vivencia que se faz pessoal no espectador, facilitado pela estética arrebatadora.
As críticas que acompanharam o lançamento da produção comentam que a inspiração veio de um filme dos anos 30, dirigido por Ernst Lubitsch, aquele diretor alemão que se deu muito bem na América. Brindou-nos com filmes inesquecíveis como Ninotchka, onde Greta Garbo dá risada, e quase se aventura na frivolidade francesa. Todo um acontecimento na época, que hoje continuamos a ver com gosto. De acordo com as minhas pesquisas, o filme de Lubitsch tinha por nome original Broken Lullaby, a versão em espanhol anotou Remordimiento (Remorso). O título em outros idiomas nem vale comentar, porque entrega de golpe a trama que, em Frantz, vai se descortinando aos poucos, cuidadosamente, com pudor.
Parece que foi a Lullaby -canção de ninar- o que se quebrou no filme de Lubitsch. Quer dizer, o berço, as raízes. É a dor que acompanha a perda de Frantz, que gravita sobre toda a família, envolve Anna, e se faz presente como um símbolo de opressão no pequeno povoado alemão onde morou o soldado morto, e muitos outros jovens também desaparecidos na guerra. Um alto imposto a pagar, por uma atitude nacionalista que hoje aparece como carente de sentido. Mas a ofensa permanece e, enrustida nela, o ódio ao inimigo. Este é o cenário onde um francês se atreve a aparecer, para fazer constar sua dor pela perda do amigo.
Terá de enfrentar a família em luto, que se nega a dialogar com um inimigo, e não admite a possibilidade dessa amizade. A animosidade de todos os habitantes da cidade é ainda maior, porque vêm nele a personalização do adversário bélico. Somente aos poucos, e com a ajuda de Anna -em sofrimento patente, estava com o casamento marcado- poderá se aproximar deles, e abrir o seu coração.
A guerra é sempre impessoal; são nações enfrentando-se, com interesses manejados pelos governos, aos quais o povo permanece alheio. Por isso é possível o ódio, como acontece nas torcidas organizadas, e em qualquer manifestação de multidões que se enfrentam. Somente quando quem está do outro lado -da guerra, da competição, das ideologias- é personalizado, assume a forma de uma pessoa concreta e real, é que a violência se esvazia, perde sentido, e o entendimento se torna possível.
Ortega explica bem a necessidade de personalizar o outro, para entende-lo, quando aponta nas suas “Notas de Andar y de ver”, que podemos julgar absurdos os atos de outro, porque não percebemos que são reações diante de coisas que nós não conseguimos ver. Não percebemos a paisagem que rodeia ao nosso interlocutor. O único modo de compreendê-lo é esforçar-se por reconstruir e adivinhar sua paisagem, o mundo com o que está em diálogo vital. E para ver essa paisagem, que não é a nossa, precisamos buscar com lealdade as pupilas adequadas.
Este pensamento nos introduz no fascinante tema da empatia: sentir com os outros, colocar-se no lugar dos outros. Algo que está na moda -quer dizer, na boca de muitos- mas na prática, no operacional, é sempre um desafio. Porque mesmo quando tentamos nos colocar no lugar dos outros e ver com os olhos deles, é bom lembrar que chegamos a essa perspectiva com as nossas próprias categorias. Calçamos os sapatos dos outros, sim; mas com nossos próprios pés, e não entendemos como é ter os pés dos outros. A advertência não é minha, mas de Edith Stein, que defendeu uma tese doutoral nos anos vinte na Alemanha (agora reparo que seria contemporânea de Frantz, e de Lubitsch), sobre a empatia. E fonte essencial das suas pesquisas, não foi apenas a fenomenologia de Husserl, de quem era discípula, mas sua atuação como enfermeira na Primeira Guerra Mundial. A guerra onde os dois amigos, Adrien e Frantz, participaram. Voltando a Ortega diríamos que chegamos à paisagem dos outros, mas continuamos olhado com nossas pupilas.
O que fazer nesse dilema? Parece que a mudança de foco das pupilas somente se consegue através do amor, e do perdão. Quer dizer, do esquecimento próprio, para inundar-se da preocupação pelos outros. Essa é a atitude notável da qual nos fala Susanna Tamaro numa das suas obras, quando diz que a nobreza verdadeira não é aquela quem vem do sangue (ou, acrescentaríamos, do pais, de ter vencido uma guerra), mas outra que está ao alcance de todos. “É a nobreza de animo -diz a escritora italiana- de quem abre seu coração à sabedoria, abandona o culto confuso ao próprio ego, e em vez de insultar, perdoa. Sabe ceder. E cria um certo desconcerto à sua volta, porque se transforma em levedura, em pólen, que rompe o conhecido, e se abre ao desconhecido”.
Temos aqui uma perfeita descrição de Anna, que de coadjuvante e noiva dolorida, se transforma em protagonista diligente, que transpira nobreza, e ensina a perdoar. E, com o perdão, abre as portas ao amor. Não é explícito, mas sua personagem destila transcendência. Afinal, como dizia Gustave Thibon naquele livro encantador, (Um olhar cego para a luz), todos temos anseios de plenitude e de pureza, e sabemos que o humano não pode nos colmar, porque temos sede do divino. Por isso, quem acredita em Deus pode ser indulgente com as misérias do homem, porque sacia sua sede na eternidade. Mas quem acredita apenas no homem, acaba se decepcionando quando está saturado de barro e água suja, e revolta-se, frustrado, contra aquele homem que equivocadamente divinizou.
O perdão é um tema insondável. “Perdoo, mas não esqueço” -ouve-se com frequência. Que perdão será este, que guarda apurada contabilidade dos agravos alheios? Enquanto escrevo estas linhas lembrei de uma história cuja fonte não sou capaz de citar, porque, essa sim, esqueci mesmo. Parece que havia uma senhora que dizia ao padre com quem confessava que Deus lhe aparecia. O sacerdote não acreditou, e para testá-la disse que perguntasse a Deus, na próxima aparição, qual tinha sido o último pecado que ele, o padre, tinha cometido. Passados alguns dias, a mulher voltou e o padre a interrogou: “Você falou com Deus? Perguntou por meu pecado”. E a boa mulher, com simplicidade enorme, respondeu: “Falei sim, e perguntei. Mas Deus me disse que não lembrava já do seu último pecado”. Parece que perdoar, nas categorias divinas, é mesmo esquecer. Passar a página, ou melhor, rasga-la de vez.
Não penso que o diretor francês esteja em sintonia com todos estes comentários. As personagens deste filme magnífico, provavelmente também são alheias a esta filosofia. Mas visto que no início prodigalizei os louvores da forma, não quis perder a oportunidade de embrenhar-me em temas tão densos como necessários. Afinal, para isso serve o bom cinema: para deleitar com uma agradável experiência estética, enquanto estimula na reflexão que nos ajuda a construir nossa vida. O diretor britânico, Peter Greenaway, dizia que cinema não é somente diversão, mas linguagem e reflexão. Frantz reúne todos esses predicados. Um filme imprescindível.