Robert Spaemann: “Personas. Acerca de la distinción entre algo y alguien”.
Robert Spaemann: “Personas. Acerca de la distinción entre algo y alguien”. EUNSA. Pamplona. 2000. 236 págs.
O recente falecimento do filósofo alemão, com 91 anos, foi o impulso que me levou a tirar da prateleira este livro que lá repousava há quase 20 anos. Um tributo necessário -pensei- para um intelectual contemporâneo, homem de muitos saberes, de quem já tinha lido algum escrito relacionado com questões éticas. Aproveitei algum tempo das férias para mergulhar nesta obra…..mas logo percebi que não era tarefa simples -nem de entretenimento, muito longe disso- mas um ensaio robusto, de fundo filosófico-metafísico, enfim, uma obra para especialistas. Aliás, lembrei, foi um professor de metafísica com quem me reencontrei depois de muitos anos, quem me recomendou.
Fiz algumas anotações das ideias que me resultaram mais sugestivas, e tive de atravessar muitas outras páginas com leitura superficial, ao tempo que comprovava estar fora de forma para estas questões que, sem dúvida importantíssimas, distam muito do meu dia a dia. E, sem querer ofender, devem estar a anos luz da maioria dos que se aventurem a ler estas linhas.
A filosofia é sempre complexa, quando profunda? Spaemann cita os filósofos com a naturalidade de quem conversa com eles, ou toma café da manhã com este e aquele. Conhece o tema a fundo, é um interlocutor do Professor Ratzinger, mas é alemão. E aqui vem uma consideração muito pessoal que estava arquivada na minha memória, fruto de leituras filosóficas de muitos anos atrás. Lembrei de Etienne Gilson, e daquele livro encantador A Unidade de Experiência Filosófica, onde também nos vai apresentando a gama de filósofos em trajetória histórica, de modo familiar -também como quem almoça com eles- mas o faz de modo claro. E a convicção que eu já tinha se confirmou: os franceses são muito mais claros do que os alemães, quando se trata de expor filosofia. Talvez porque temperaram seus escritos com aulas o que lhes fez ganhar em clareza, fruto das dúvidas surgidas na docência, e transportadas em respostas claras ao papel. Por tudo isso, minhas suspeitas quando alguém diz que leu um filósofo alemão na fonte, e entendeu tudo, aumentaram. Será que entendeu mesmo?
De qualquer forma vale a pena avançar em algumas ideias que rabisquei ao longo da leitura. É notável o estudo introdutório que situa -e resume também- as principais teses do filósofo. Nele se adverte que é preciso ter clareza (teórica e prática) sobre o que é ser pessoa, visto que cada vez mais impera hoje a ideia de que nem todo homem é titular desse predicado, dependendo da fase da vida, da situação de consciência, enfim, de variáveis que acabam apontando ser pessoa como um privilégio especial que alguns homens têm e outros não.
A diferença interna, aponta Spaemann, é a consistência da pessoa. Alguém que possui o seu ser (no caso, a natureza humana) de modo completamente diferente a como os outros seres possuem a sua natureza. Os outros seres são “casos” da sua natureza, da sua espécie; o homem goza de uma ‘excelsa esquizofrenia’ onde a vida se parte em dois: a vida que dirige, e a que é dirigida. O homem, cada homem, não é um caso da natureza humana que se esgota nela, mas a possui de modo especial e singular, a dirige e a leva da mão pela própria existência. Isso nos aponta para o tema do que o homem é, e aquilo que é chamado a ser, e de como gerencia a natureza humana como um papel a desempenhar. O homem tem que chegar a ser quem ele é. A distância que existe entre a natureza humana e este homem específico é o que nos autoriza a falar dele como pessoa. E esse distanciamento, a capacidade de afastar-se de si mesmo e de ver-se com os olhos de outro, é a raiz da moralidade, da liberdade de escolha, que a natureza não impõe irremediavelmente como faz com os outros seres.
Enquanto tento dar forma a estas anotações, acode a minha mente uma frase que acabo de ler num romance leve e que se acopla perfeitamente aqui (com a permissão de Spaemann e dos filósofos). A protagonista fala de uma amiga que é feliz, porque “parece que tem uma vida e não apenas uma existência”. Um modo popular -talvez demais- de traduzir essa diferença interna do homem como pessoa.
O livro vai se estendendo em variações sobre o mesmo tema, aprofundando as diferenças do homem- pessoa, com os outros seres, com os animais. A sujeição às leis e decretos da espécie deve-se a que o animal é sua natureza e não se distingue dela. Não existe sujeito que governa, e natureza que escuta as ordens e as segue (ou não). Esse desdobramento -diferença interna na terminologia do autor- é próprio da pessoa humana. E a pessoa se espalha por todas as qualidades da natureza humana daquele homem singular, mesmo que a natureza esteja mutilada ou limitada. Tirar dele a condição de pessoa -por ter uma natureza defeituosa, ou em formação, ou mesmo vegetativa- é provocar o espólio mais repugnante do mundo: o espólio da privação da sua identidade. Não falamos do valor do homem, mas de dignidade. Por mais que o valor da vida de dez homens seja maior que a de um só, a dignidade de dez homens não significa mais do que a de um único homem. Ai está o núcleo mais importante para resolver os dilemas éticos e bioéticos.
As ações da pessoa não derivam necessariamente da sua natureza humana, mas ela atua por si mesma, com liberdade, isto é, assumindo com personalismo a natureza, imprimindo nela a condição singular. Intencionalidade, liberdade: eis o motor que põe em marcha a natureza humana revestindo-a de caráter pessoal, singularizando-a em relação à espécie. O animal quer as coisas em função do instinto da espécie que vem de fábrica. O ser humano, a pessoa, traz de fábrica uma natureza -um hardware- sobre o qual pode rodar, ou não, os softwares fruto da sua construção livre. Daí o mérito, a culpa, a canalhice, e o heroísmo: respostas diferentes a estímulos iguais, com a variante que imprime o ser pessoal. O homem tem inclinações, sim, mas sabe que as tem, e pode governa-las. O natural não tem para ele valor normativo. Existe um chamado à responsabilidade para realizar e possuir essa natureza, que pode ser seguido ou não. A religião, a transcendência, é recurso e luz que ajuda nessa resposta que permanece em aberto para o homem. A reflexão é elemento que lhe permite este saber.
Esclarecido o conceito de pessoa, a reflexão filosófica avança agora no relacionamento entre os homens, entre as pessoas. Aceitação do outro como pessoa consiste em amar e ser amado. O amor ao homem está dirigido a ele, não as suas qualidades. O que está em jogo no acolhimento do outro como pessoa é a identidade dele, não a apreciação das qualidades úteis ou agradáveis; e isto se nota especialmente no acolhimento daqueles que carecem delas. Eles suscitam o melhor do homem, o verdadeiro fundamento do respeito de si mesmo.
As dificuldades para esta aceitação não são apenas externas, mas também internas, de cada um . Santo Agostinho, aqui citado, fala dacurvatio in se ipsum, do coração curvado sobre si mesmo, quer dizer, de cuidar do próprio umbigo e prescindir do outro. O egoísmo é próprio da pessoa, assim como também é o amor, o respeito e o carinho .
Todos os deveres para com as pessoas se reduzem ao dever de percebê-las como tais. E aqui entra uma reflexão pessoal sobre o tema que me ocupa diariamente: a humanização da medicina. Contemplamos a preocupação constante acerca do assunto, e esforços para humanizar o atendimento médico. Mas, lendo este livro, permiti-me pensar que as falhas nesses projetos humanizantes talvez têm uma explicação filosófica: ações e políticas humanizantes objetivam trazer algo para a espécie humana, no caso, para os doentes que sofrem. No entanto, tratam-se como espécie, não como pessoas, o que significa correr o risco enorme de prescindir da individualidade e singularidade de cada um, que leva a aceitar a dignidade irrepetível de cada enfermo -e de cada profissional á sua volta- e a necessidade de acolher cada um como de fato é: em toda sua dimensão pessoal. Daqui a importância de escutar as histórias de vida que trazem luz enorme para individualizar cada ser humano, para revelar a pessoa que lá está. Humanizar no fundo seria personalizar o cuidado.
O tema dá pano para manga, e provoca reflexões que estão além dos presentes comentários. Mas encontrarão o momento para sair a luz. Isto é o fascinante da filosofia: as ideias te fecundam, e vão gerando internamente novas formas, serenamente, em silencio; governam a homeostase dos pensamentos, até cristalizar em atitudes, ações, modos de dizer e de ser que, afinal, é enriquecimento da pessoa, desse ser humano que temos que chegar a ser. Cada um de nós. Individualmente, singularmente, sem possibilidade de terceirizar ou de abrir mão dessa missão insigne.