O Segredo: Ouse Sonhar. Um filme com sabor clássico
The Secret: Dare to Dream. USA 2020. Diretor: Katie Holmes, Josh Lucas, Celia Weston, Jerry O’Connell, Sarah Hoffmeister, Aidan Pierce Brennan. 107 min.
Nem sempre as críticas cinematográficas produzem o efeito desejado. Foi o meu caso com este filme -que me encantou!- apesar de que o comentário que li em revista especializada, o qualificava como um romance cheio de clichés, moralizador, com boas pessoas boas que optam por ter uma atitude positiva diante de vida. E ainda acrescentava que lhe falta garra e suspense, embora tenha boas intenções. Como disse, vi o filme, gostei muito, mas não esqueci da crítica; é mais, voltei a lê-la…..e se produziu a faísca que dá lugar a estas linhas. “Com todo o respeito que os críticos merecem, vou dizer o que penso do filme….e dos críticos” – discorri. E comecei a digitar no computador.
Talvez o erro principal dos críticos é não ter atentado para o título que nos fala de um segredo -um código, um password por dizê-lo em linguagem atual- que nos permite entrar no sistema do filme….e da vida. Segredo simples de enunciar, mas difícil de executar porque exige disposição de ânimo e coragem: atrever-se a sonhar!
Assistindo o filme lembrei do cinema de Frank Capra, nas décadas de 30 e de 40 do passado século. Filmes de valores humanos, com pessoas que buscavam fazer o bem apesar das limitações e das misérias que sempre estão atreladas à condição humana. Histórias reais, não contos de fadas, nem fábulas; e por isso, muito próximas do espectador que se identificava com as personagens, e sentia emulação – a inveja virtuosa, no dizer clássico- num convite a tirar das pessoas o seu melhor. O curioso é que naquela época, ninguém considerava isso como cliché, mas como uma qualidade a ser admirada. Talvez o que não faltava era a capacidade de sonhar.
Essa é a atitude da qual carecemos. Uma incapacidade -um aleijamento moral – que nos impede acessar o sistema do bem através do password dos sonhos. Dai o que sobra do filme, além dos comentários infelizes com os quais tropecei, é uma história doce da viúva com três filhos, e a aparição de um príncipe encantado, baseado num livro de autoajuda. É como reduzir as tragédias de Shakespeare a intrigas palacianas de uma série B para TV. Ou, como dizia a grande historiadora Regine Pernoud, resumir a Idade Médica numa época onde as pessoas “faziam guerras, padeciam de peste e se queimavam nas fogueiras”. Uma simplificação grosseira e de ignorância supina.
Acabo de ler um livro sobre o qual estou ainda pensando, e escrevendo as reflexões que me provoca. Um livro sobre os hábitos do coração que nos abrem o caminho para o bem. Embora minhas anotações sejam ainda embrionárias, não resisto a copiar uma delas, justamente sobre a esperança e a capacidade de sonhar, pois encaixa como luva nestes considerações. Diz assim: “A cordura do humanamente possível requer a serena paciência de quem não dá tudo por perdido, e espera o melhor A esperança é o hábito do coração que nos permite habitar o mundo desde os sonhos dos ideais, sem estar adormecidos; desde os encantamentos das fábulas infantis sem criancices, da paixão pelo bem e a felicidade do humano, sem estar ofuscado. A esperança nos permite habitar o mundo desde fora do mundo e incorpora a temporalidade finita da nossa presença nele, e a terna inclinação ao seu favor. A esperança define o homem”.
O que mata a esperança e os sonhos nos dias de hoje? Por que ter vergonha de assistir tranquilamente um filme onde as coisas funcionam, tem gente do bem, pessoas que ajudam espontaneamente naquilo que lhes é possível? Por que chamar isto de cliché? Será medo de comprometer-se com algo que pode nos decepcionar? Aquele ceticismo de “eu sei como é que é, já sei como acabam estes filmes água com açúcar”. Por que encarar a vida – e os filmes- como uma distopia bizarra que, no fundo, é medo de que os sonhos não se realizem. Medo de não atrever-se, de não ousar, mediocridade do espirito.
A faísca que surgiu -como arco voltaico- entre o encanto do filme e a crítica desnorteada, levou-me a remexer em velhos arquivos (está tudo aqui no computador, eu sou sim a favor da tecnologia quando sou eu quem comanda e não me submeto a ela). Lá encontrei críticas e comentários de filmes que escrevi há quase 30 anos…..e o tema já estava presente. Copio textualmente aquelas reflexões da juventude, que conservam atualidade impactante
“Quando um filme toca o coração remexendo com os sentimentos, o espectador -atingido na sua emoção- olha discretamente à sua volta para certificar-se que ninguém notou esta fraqueza. A crítica superficial qualifica o filme de lacrimogêneo. Cataloga-se e inclui-se a fita no rol “água com açúcar”. É destinado à sessão da tarde, e recomenda-se aos amantes do gênero para, naturalmente, assistirem com um lenço na mão. São os tempos que vivemos, onde as pessoas se envergonham de ter sentimentos. Nada mas ilógico, sendo o sentimento algo profundamente humano, à cuja volta circulam valores densos, genuinamente humanos também. Certamente os animais não se emocionam, mesmo que, paradoxalmente, os que se envergonham dos próprios sentimentos, procuram afoitos sentimentos nos irracionais”.
Confesso que quando coloquei “água com açúcar” no recurso de busca informática, topei com mais comentários daquela época. Não resisto e copio também: “Mergulhados, como vivemos, num cinema de paixões e violência, respiramos aliviados quando a imprensa notifica o aparecimento de um filme romântico, como os de antigamente. E sem ligar para toda essa “água com açúcar” que a crítica -intelectual, adulta, etc., etc.- nos despeja, vamos à procura do filme. A condição humana é curiosa. Reprovamos a censura, enaltecemos o assim chamado realismo, condenamos os intentos moralizantes, e depois nos enternecemos diante de um filme que mostra o bonito da vida. Aliás, que mostra que ser bom é atraente. Nos derretemos mesmo, lambuzados em água e açúcar. Aquele filme que todos vem, tem vergonha de dizer que viram, .. e que gostaram. Velho fenômeno: medo dos próprios sentimentos, num mundo perdidamente sentimental”.
Hoje, 3 décadas após, além do medo dos próprios sentimentos há um fator novo que traz uma variante cultural, justamente por conta da tecnologia e da informação “em tempo real”. Um mundo de aplicativos e de cliques, onde a incerteza (será que isso vai funcionar?) preside nosso atuar. Uma verdadeira neurose de segurança…..num mundo que é de per si incerto. Voltamos ao livro dos hábitos do coração, onde encontro outra anotação sugestiva, desafiante: “A modéstia transforma o saber em sabedoria. É autoconsciência da finitude humana, e do seu conhecimento. Quando há admiração e modéstia, o saber e a ignorância não se anulam entre si, pois a consciência da ignorância faz crescer o conhecimento. Mas quando a regra é a dúvida, (como por exemplo Descartes, que buscava a segurança nas ideias claras e distintas) o conhecimento e ignorância sem excluem, não convivem porque se busca a segurança da evidência”. O tema dá pano para manga porque envolve a condição humana -frágil e repleta de incertezas- e de como funcionar na vida.
Busca inútil de segurança, incapacidade de conviver serenamente com as incertezas, tornar compatível o conhecimento com a ignorância. “Minha ignorância enche bibliotecas” -dizia um velho professor que, além de me ensinar bioquímica há mais de 40 anos, ensinou-me muito sobre a vida. Aliás, isso é o que se deve esperar de um professor, mormente nos dias de hoje, onde o conhecimento técnico está à distancia de um click….Mas a experiencia da vida….Isso é outra questão.
E junto com a malfadada neurose das certezas, o outro elemento que amputa os sonhos é o egoísmo doentio. Eu monto o meu projeto de vida, à minha imagem e semelhança; os outros?….caso se adaptem ao meu script podem vir a ser, no máximo, coadjuvantes no roteiro. Postura imprudente e incompatível com o password dos sonhos. O Papa Francisco, na sua encíclica
que intitula como dedicatória ao outro Francesco, o de Assis, adverte que os sonhos são incompatíveis com o egoísmo: “Como é importante sonhar juntos! (…) Sozinho, corres o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos”
Sonhos em conjunto, solidários; filmes assistidos em companhia, sem medo de emocionar-se e de sonhar. A vida vale a pena ser vivida e sonhada como projeto. E são os sonhos os que nos alimentam -aquela conexão com a esperança que advertem os hábitos do coração- quando parece que falta combustível para enfrentar as naturais durezas da vida.
É Ortega, no seu imenso ensaio, Para la cultura de amor, que é do melhor que já li até o momento sobre a alma feminina, quem adverte e apoia esta atitude. Diz o filósofo espanhol: “Quando sentirá amargura essa mulher que consegue arrancar sorrisos de tudo o que a rodeia? Possivelmente nunca; é invencível, porque tem o segredo de saciar as angústias do seu corpo no manancial da sua alma, que nunca se cansa de existir e de sonhar”. Sobra qualquer comentário. Apenas reflexão, degustar a densidade do pensamento, colocar os sonhos para rodar, sem medo!
Comments 5
Adorei Pablo
Escutei sua voz enquanto lia o texto, senti tua eloquência lógica clara e apaziguadora. Como de costume me atiçou a ver o filme. Obrigada
Muito bom obrigado Dr Pablo.
Magistral: “Eu monto o meu projeto de vida, à minha imagem e semelhança; os outros?….caso se adaptem ao meu script podem vir a ser, no máximo, coadjuvantes no roteiro.” Penso que todos corremos o risco de cair nessa armadilha, de fazer com que os que rodeiam (conhecidos, amigos, pais, cônjuge, filhos!) sejam apenas coadjuvantes de um filme de roteiro duvidoso, sem diretor.
Assisti o filme e voltei a sentir as lágrimas nos olhos e um bem estar como na adolescência sentimos ao ter momentos de sonhos.
Muito bom. Você é um grande poeta com as palavras. Realmente encanta e faz querer ver tal filme.
De/me o título