Orhan Pamuk: “Meu nome é vermelho”.
Orhan Pamuk: “Meu nome é vermelho”. Companhia das Letras. São Paulo. 2013. 576 págs.
O primeiro escritor turco a ganhar um Nobel de literatura em 2006, considerado um narrador de categoria, foi o incentivo para escalarmos este romance na nossa tertúlia literária. Pesquisando depois, soubemos que Pamuk condenou o genocídio armênio -algo que os turcos continuam afirmando que nunca existiu- e que teve de prestar depoimentos no tribunal em Istambul, sua cidade natal. Fala inglês fluentemente, reside em Nova Iorque, e se apresenta como um escritor de narrativa global. Tudo isso pode se comprovar facilmente na Internet.
O romance -que mais se assemelha a um sonho onírico de um homem culto nas ruas de Istambul- é denso, repleto de detalhes da história turca. E saturado dessa mesma cultura. Pamuk pode ser sem dúvida um escritor global, mas não há como negar que é turco mesmo. O telúrico -o amor à terra, permeado pela cultura- é a marca deste escrito peculiar e difícil de enfrentar nas suas quase 600 páginas. Dai a dificuldade natural para a mente ocidental, na qual nos encaixamos todos os pensadores da tertúlia, sintonizar com a prosa do Nobel turco.
Poderíamos resumir o argumento, se existisse tal. Mas, já disse, mais do que argumento o que se apresenta é uma colcha de retalhos que destila pensamentos orientais. Isso me fez lembrar quando estive em Istambul por conta de um congresso médico, e tentei descobrir por que a Turquia insiste em somar-se à União Europeia: nada encontrei, nem mesmo o inglês, reduzidíssimo e limitante. Para deslocar-se em taxi, era preciso pedir na recepção do hotel que chamassem um veículo, e dessem todas as instruções para o motorista. Qualquer possibilidade de diálogo com o taxista era inútil. A menos que fales turco, é claro.
Mas, sendo honestos, a colcha de retalhos orientais tem momentos magníficos, o que justifica a leitura, que tem de ser pausada, degustada, sem as pressas do ocidental sempre apagando incêndios. Pensamentos de fundo, que são pérolas de meditação: “ Para um homem, qualquer que seja o seu amor, sempre acaba esquecendo um rosto que fica muito tempo sem ver (…) Quando a gente ama uma cidade e passeia bastante por ela, não é apenas a razão mas também o corpo que, anos depois, num acesso de melancolia, reconhece as ruas por si mesmo”.
O livro fala de pintura, de miniaturas riquíssimas, de tintas variadas, de habilidades pictóricas. “O artista que possui um verdadeiro talento e um autêntico virtuosismo é capaz de pintar obras-primas inigualáveis, sem deixar um só vestígio da sua identidade (…) As imagens são a história florescendo em cores, mas uma pintura sem uma história que a acompanhe é inimaginável! (…) Será que, se pintamos de uma maneira diferente, é que vemos de uma maneira diferente? A pintura é silêncio para o espírito e música para os olhos (…) Se o amor é o tema de uma miniatura, esta tem de ser pintada com amor, se o tema é a dor, essa dor deve se fazer sentir na pintura. Pintar é buscar as lembranças de Alá com o fim de ver o mundo tal como Ele o vê.”
Evidentemente, todos estes detalhes pictóricos em tonalidade oriental, necessários para costurar os retalhos, acabam tornando-se um pouco tediosos para a impaciência ocidental, e te fazem perder o fio de meada. Se houvesse tal por que, já disse, até agora não ficou muito claro. Talvez não tenha mesmo, como um quadro, uma bela obra de arte: é aquilo lá, e pronto. Não busque explicações. A arte na sua pureza e isenção completa.
A figura que destoa -e que se nos faz mais próxima por falar nossa linguagem- é Ester, uma judia que desempenha o papel de alcoviteira, muito bem caraterizada. Ouçamos algumas pérolas na sua boca: “ Como um livro, uma carta também pode ser lida cheirando-a, tocando-a, afagando-a. É por isso que as pessoas inteligentes dirão: ‘Vejamos o que esta carta diz’; enquanto os imbecis se contentam com dizer: ‘Vejamos o que está escrito’. Toda a arte está em saber ler não apenas a escrita, mas o que vai junto com ela (…) É o amor que torna a gente idiota ou só os cretinos se apaixonam? Eis aí um problema que minha longa prática de alcoviteira ainda não me permitiu resolver (…) Todos esses imbecis imaginam que o amor deles é uma urgência, que exige decisões rápidas; põem sua paixão em cima da mesa, de estalo, dando armas à crueldade do outro, o qual, se for esperto, saberá fazê-los mofar direitinho à espera da resposta. Moral: a pressa, num romance, retarda os frutos do amor (….) Não se esqueça do seguinte: quando o fogo do amor nos devora antes do casamento, o casamento vem apagá-lo e não deixa mais que um triste amontoado de cinzas, enquanto o amor que nasce depois do casamento também acaba se apagando, mas para ceder lugar à felicidade (…) Em geral a gente conta os sonhos diurnos como se fossem sonhos noturnos por interesse. Só os idiotas contam seus verdadeiros sonhos, os que eles têm dormindo”. Sabedoria oriental também, mas em versão judaica, quer dizer, inserida na tradição de ocidente. Compreensível, divertida e verdadeira. Cargas de profundidade na boca de Ester.
Shekure, a protagonista turca, é também muito feminina, e muito oriental. Para os pragmáticos ocidentais dá a impressão de que não sabe se casa -literalmente- ou compra uma bicicleta (figuradamente, mas se entende). Ouçamos ela: “Mas se sou infeliz é justamente porque não consigo compreender o que meu coração tenta me dizer! (…) A maior calamidade não é envelhecer e ficar feia, nem mesmo ficar sem marido nem recursos. É não ter ninguém que tenha ciúme da gente, pensei (…) Um homem que sabe dar um abraço só pode ser bom(…) Não, não foi mentira, mas estou tão envergonhada, que lhes peço, por favor, esqueçam o que eu contei, façam como se eu não tivesse dito nada, como se não houvesse nada entre ela e ele(..) Eu ainda não sabia quanta paciência e quanta resignação um casamento feliz requer”
Outros interlocutores divertidos aparecem. O dinheiro, as moedas falando em voz alta: “não há lugar neste mundo em que uma moeda não possa ir parar. O tempo todo esfregam-me na cara que eu passei a ser a única coisa de valor, que não tenho piedade, que sou cega a tudo o que não sou eu, o Dinheiro, que só gosto de mim, que o mundo de hoje repousa unicamente em mim e que, comigo, pode-se agora comprar e vender tudo, apesar de eu ser vil, vulgar e repugnante”.
E num mano a mano o demônio, falando com sugestiva criatividade: “Só Alá, em Sua incomensurável sabedoria, me compreenderá: acaso não foste Vós que ensinastes ao homem o orgulho, ao fazer todos os anjos se prosternarem diante dele? Agora eles concedem a si próprios o mesmo tratamento inaugurado pelos anjos, eles se adoram e se situam em pleno centro do mundo. Todos, até Vossos mais fervorosos servidores, querem ser pintados à maneira dos europeus. Sei com tanta certeza quanto sei meu próprio nome que esse narcisismo terminará fazendo-os esquecer-Vos por completo. E eu é que levarei a culpa! (…) Antes de tudo o mais, houve essa história de Ele nos apresentar o homem e querer que nos inclinássemos diante deste, o que encontrou minha legítima e decidida recusa, embora os outros anjos tenham obedecido. Vocês acham correto que, depois de me ter criado do fogo, Ele exija que eu me incline diante do homem, que Ele criou do mais reles barro? Mas tem uma coisa de que não me esqueço nunca, sim, uma coisa de que sempre me orgulharei: nunca me inclinei diante do homem”.
E, junto com pinturas, histórias do século XVI, mulheres que se fazem entender e outras que tropeçam nos próprios sonhos, o crime que perpassa todo o romance, quer dizer, todas a colcha e cada um dos retalhos, é o protagonista tremendo, oculto, presente. “O gênio das grandes cidades não se mede pelo número de bibliotecas, escolas, sábios, pintores e calígrafos que nela encontram abrigo, mas pela acumulação dos crimes não desvendados, cometidos século após século no escuro das vielas. Desse ponto de vista, Istambul é, com toda certeza, a cidade mais genial do mundo”. De pintores e de assassinos, e dos motivos para a tragédia. Esse poderia ser um nome ocidental para este Vermelho de Pamuk. A proibição de pintar figuras humanas, de imitar os pintores venezianos, e o modo de driblar essa barreira, é o que está latente em toda esta obra. Algo que para os ocidentais que conviveram toda a vida com a figura humana -de gibis, até santinhos, passando pelos museus maravilhosos- não faz muito sentido.
Longos trechos para enfrentar esse dilema: “Esse desejo amedrontou-o, porque ele logo percebeu que a paixão pelo retrato acarretaria o fim da pintura do islã, a pintura cujos modelos, perfeitos e irretocáveis, haviam sido estabelecidos pelos antigos mestres de Herat. Era como se eu tivesse o desejo de me distinguir dos outros, de ser diferente de todos, de me sentir único. Meu Tio sentia-se irresistivelmente atraído por aquilo mesmo que o aterrorizava, como se o Diabo o acicatasse. Era, como dizer, um desejo criminoso de se valorizar diante de Alá, de se acreditar importante, de se colocar, em poucas palavras, no centro do mundo”.
Se a figura representa uma história parece que fica suspensa a proibição, mas o desafio não é fácil. “O essencial é a história. Uma bela imagem completa graciosamente uma história. Se tento imaginar uma imagem que não seja a ilustração de uma história, percebo que, ao fim, ela se tornará um falso ídolo. Porque como não é possível acreditar numa história ausente, acabaremos naturalmente acreditando na imagem mesma. Mais secretamente, meu objetivo era conseguir fazer que o Negro escrevesse as histórias que acompanhariam as miniaturas, cuja redação eu mesmo não conseguia iniciar.
Foi então que compreendi plenamente as palavras de Ibn Arabi, que diz que o amor é o dom de tornar visível o invisível e o desejo de sempre sentir o invisível próximo de si”
E contar histórias nas pinturas implica um estilo, que não deve ser nunca a marca do autor. “Um estilo nada mais é que um defeito que permite, em cada objeto, distinguir entre todos os outros quem o pintou, e não uma característica individual, como alguns arrogantemente proclamam. Um grande pintor nada mais faz que impor suas obras ao nosso espírito e, com isso, acaba mudando toda a nossa paisagem interior. De uma coisa pode estar certo: que um novo estilo nunca procede de uma vontade pessoal do pintor (…) O surgimento de um novo estilo é o resultado de anos de desentendimento, inveja, rivalidade e estudo das diferentes maneiras de pintar e de empregar as cores. Porque eles pintam o que o olho vê exatamente como o olho vê. Sim, eles pintam o que veem, enquanto nós pintamos o que contemplamos. (…) E, por ser um defeito, uma imperfeição, ela varia de miniaturista a miniaturista. Ou seja, ela equivale a uma assinatura. Imaginar que um pintor se parece com o tema que pinta é não entender como somos. O que nos revela é muito menos o tema das nossas obras, que é determinado por quem as encomenda e que quase nunca varia, do que a sensibilidade que passamos discretamente com a nossa maneira de tratá-lo: Quando desenho um cavalo magnífico, torno-me esse magnífico cavalo/ Quando desenho um cavalo magnífico, torno-me um grande mestre do desenho de cavalos/ Quando desenho um cavalo magnífico, eu sou o que sou, nada mais”.
Os sonhos espalhados nos retalhos, nos conduzem ao longo das muitas páginas. Longos trechos que é preciso ler em diagonal, porque fala de dinastias de sultões, em listas intermináveis. Mas salpicadas, aqui e acolá, por pensamento subtis, instigantes. “É difícil acostumar-se à condição de assassino (…) O que pensei ser meu sangue era tinta vermelha; o que pensei ser tinta nas minhas mãos era meu sangue que se derramava. Eu escolhia na paleta das minhas lembranças e das minhas preocupações as cores para a história que eu contava, ela acabava se tornando uma espécie de ilustração melancólica de tudo o que acontecia comigo (…) As pessoas como eu, isto é, aquelas que acabam fazendo da paixão e suas agruras, da prosperidade e da miséria simples pretextos para uma eterna e absoluta solidão, não são capazes nem de grandes alegrias nem de grandes tristezas na vida. Mas eu sabia que uma parte da minha alma permanecia como espectadora implacável daquele meu comportamento ignóbil, o que me causava um horrível tormento”.
Pintores miniaturistas, criminais, paixões e amor. Um desafio turco para passear por cima dele, pois digerir é tarefa inglória. Talvez é isso mesmo, não levar-se muito a sério, como Pamuk anota neste trecho que usamos para fechar esta viagem a Istambul. “A arte de um pintor depende da capacidade que este tem de considerar cuidadosamente cada aspecto da beleza do momento presente, de observar os menores detalhes e, ao mesmo tempo, como quem recua para mirar-se num espelho, apartar-se deste mundo, que se leva tão a sério, o suficiente para que possa haver entre si e ele o eloquente distanciamento da ironia”. Mais leveza oriental, menos racionalismo ocidental, talvez um caminho para se aproximar da arte com sadia ingenuidade.