PATCH ADAMS – O AMOR E CONTAGIOSO

Pablo González Blasco Filmes Leave a Comment

PATCH ADAMS – O AMOR E CONTAGIOSO (Patch Adams) Diretor: Tom Shadyac. Robin Williams, Daniel Londosn, Monica Potter. USA 1998. 115 min

Vivemos num mundo de paradoxos, de contrastes. Na verdade sempre foi assim. É o tributo necessário que paga a liberdade humana e que rende seus dividendos em forma de heroísmos ou mesquinharias, traições ou fidelidades. Depende, claro está, do uso que cada um faz desse potencial que é o livre arbítrio. A novidade está em que o homem deste fim de século perdeu a capacidade de admiração, acostumou-se a viver entre paradoxos sem perguntar-se os motivos de por que perante o mesmo estímulo desafiador as respostas são tão variadas e antagônicas. E não apenas as respostas, mas as simples opiniões, os gostos corriqueiros, contrariam-se em oposição formal. Contraste pacífico, isso sim, pois não é do nosso estilo as batalhas ideológicas, e tudo o que possa cheirar a fundamentalismo. Afinal -poder-se-ia pensar- os gostos variam, nada mais natural. E fica por isso mesmo. São poucos os que se questionam sobre o porquê da variedade, numa atitude essencialmente filosófica. E para essa minoria, a pergunta vital pode descortinar um panorama imenso.

            As críticas não receberam “Patch-Adams” com bons olhos. São os entendidos em cinema, os comentaristas oficiais de tudo o que é produzido no campo da sétima arte, que pontualmente entregam suas apreciações profissionais para revistas de divulgação, jornais, e parafernália de opinião. Exagerado, grosseiro, desproporcional, e outros epítetos vinham desqualificar o filme que, na opinião dos sisudos críticos, chegava a tornar-se tedioso. “Robin Williams já esgotou suas possibilidades no papel de médico. Um chato de branco”.

            Sempre tive queda -uma espécie de carinho a priori– pelos filmes que a crítica se empenha em desqualificar. Não por aqueles que ignora, mas pelos que faz questão de destruir. Se o produto é ruim, não vale a pena gastar tinta denegrindo-o; ele mesmo se afunda. Quando se empregam páginas inteiras para dizer que é ruim, talvez seja porque simplesmente incomoda. Ou incomoda a reação do público que, contra todo prognóstico, elogia um filme que na opinião dos entendidos não passa de medíocre. Neste clima de expectativa, a curiosidade aumenta quando, no meio médico, principalmente entre os estudantes de medicina -que a muito custo conservam o ideal que lhes arrastou até a profissão mais polêmica do momento- comprova-se que o filme é recebido com entusiasmo. Está armado mais um paradoxo. Impõe-se parar, pensar, e, naturalmente assistir ao filme.

            A ocasião surge no meio acadêmico, durante uma promoção que o cinema oferece aos estudantes de medicina, habilmente negociada por um professor idealista. Ainda existem alguns, como este, que com 40 anos de janela, carrega paixão pela medicina nas veias. Anos atrás me seduziu com um argumento incontestável me arrastando pelos caminhos da educação médica. “É como uma horta, no sítio, que a gente cultiva no dia de folga. Dá trabalho, despesa, a gente sua e se suja, mas compensa, é uma higiene mental. O que você acha de cultivar pessoas uma vez por semana?” Minha resposta está aqui e agora, na minha frente, nos alunos, no seu entusiasmo, na procura rebelde de um ideal que seja do tamanho dessa palavra comprometedora: ser médico. Aqui estou eu, na sessão matinê, enquanto desfilam os créditos do filme, sobre uma estrada sinuosa. Deve ser a estrada da vida, pois é no meio do caminho -como Dante- quando nos encontramos com Patch Adams, um quarentão à beira do suicídio.

            O filme é um aglomerado de ideias, verdadeiras cargas de profundidade, ou talvez mísseis -infelizmente de moda no momento- que explodem no alvo certo. E o alvo são os médicos: os que já são, os que querem vir a ser. Jovens ou velhos, tanto faz, sempre que se tenha a coragem de repensar a profissão. “Você me lembra quando eu era jovem -diz um dos médicos, conquistado pela atitude de Patch. E de propósito o protagonista não é jovem, mas homem maduro, remoçado pelo ideal de ajudar os outros. Parece ser este o motivo que nos arrastou até a medicina. Sim, é claro, existe a vaidade, o status, o sentir que sabemos coisas que ninguém sabe, a capacidade de manipular o organismo do homem, o pedestal em que os pacientes nos colocam… ou nos colocavam antigamente. Mas lá no fundo, quando alguém decide ser médico, existe uma fibra do nosso coração que vibra na sintonia da ajuda, do cuidado. Acredito, sim, na vocação médica. É como uma luz, tênue, que o tempo e a rotina são capazes de abafar. Não por maldade, nem de propósito; talvez por descuido, por desatenção como diriam os filósofos vitalistas.

            “Patch Adams” é um recado profundo para os médicos. Um grito que, se para os críticos é dissonante, exagerado e repetitivo, para os médicos é um golpe querendo acordar a alma adormecida. Talvez seja necessário insistir até a exaustão, caricaturar as situações, para nos despertar dessa desatenção sistemática pelo paciente. Porque essa prostração rotineira, embrulhada em técnica ultra moderna, é a via final comum de quem não lembra -ou deixa de se perguntar- o motivo que o levou a dedicar sua vida à medicina. “Sei diagnosticar como o melhor, aprendi tudo nos livros mas não consigo que a paciente coma” -diz o colega a Patch, pedindo-lhe ajuda.

            Mas será que os médicos de hoje são assim, como o professor idealista que cultiva pessoas na horta da vida universitária?  Será que ainda temos tempo para pensar em vocação, quando os avanços da ciência nos fazem sentir permanentemente  desatualizados, nos mostram que não damos conta do recado? Não há tempo para perder em conversas filosóficas na biblioteca da universidade, afinal as provas apertam. Os desafios que Patch enfrenta nos colegas, que vai conquistando aos poucos, são os desafios da nossa sociedade que também não sabe mais o que esperar dos médicos. Talvez alguém com bom curriculum – esses encadernados que pesam vários quilos-, competente, qualificado,…e torcer para que quando estamos doentes olhe para nós, nos compreenda, nos ampare. “É isso que eu faço -diz o espécime médico apresentado no início do filme- ajudar as pessoas”. Mas, com Patch, descobrimos que ele não é muito bom nisso…apesar do curriculum, do posto, do cargo acadêmico.

            “A medicina está mal” -me dizem os amigos, vez por outra. “Não é verdade -respondo de bate pronto- nunca esteve tão bem. Os que andam mal são os médicos”. O paciente reclama da ciência sem reparar que no fundo está se queixando do profissional que o atendeu…ou desatendeu. São histórias que, quando com paciência e um sorriso aconchegante ouvimos o paciente, nos chegam diariamente. São os descasos do profissional bom ….mas que não explicou nada; são as peregrinações de um médico a outro sem encontrar quem se preocupe com o meu caso; são os médicos que pedem exames… e não olham nos olhos. É essa a medicina “que anda mal” no sentir dos meus amigos, dos meus pacientes. 

            Como medir a vocação, como aplicar um verdadeiro controle de qualidade nos aprendizes de médico, nos estudantes? Será que o ingresso nas faculdades de Medicina leva em conta “este detalhe”, que parece ser o que o paciente mais valoriza? Muito temo que não. E os que ingressam na Universidade e carecem disto -talvez  preocupados com as provas e o curriculum- são capazes de aprendê-lo? Aprendê-lo de quem? Dos professores, podemos supor. Mas existem professores que ensinam isto? Patch enfrenta o sistema, as regras, o estilo imposto que certamente não beneficia o paciente. Infelizmente a nossa situação não é diferente.

            O filme transcorre serenamente, fazendo eco no silêncio da alma, enganchando-se em tantas lembranças que ficam dependuradas de cada fotograma. Talvez não seja um grande filme, talvez….tudo aquilo que os críticos falaram…. Não importa, são lições para os médicos. Lições que evocam as próprias reminiscências. “Professor -disse-me certa vez uma aluna- ontem vi um residente maltratando uma paciente. Assustei-me. Eu o conheci quando entrei na faculdade; estava nos últimos anos. E pensei: ele não era assim antes. Por que ficou desse jeito? Professor, quando “viramos” bandidos?”. Estremeço quando a lembrança dessa aluna se superpõe a Patch consertando o copo que vaza, consertando depois, vestido de anjo, o corpo do moribundo por onde a vida escoa aos poucos. A festa com nariz de palhaço na unidade infantil me traz a resposta de outro aluno: “Somente existe um modo de não virar bandidos. Descobrir, diariamente, o que fizemos de errado e corrigi-lo. Sem prestar atenção aos acertos, aos elogios que outros nos fazem. O importante e não deixar passar um dia sem reconhecer o erro, para poder saná-lo”.

            Emociono-me com as lembranças que afloram na memória, em turbilhão, presididas pelo sorriso incansável de Patch. As lágrimas embaçam a visão, o filme desfoca-se.  E penso -são lágrimas de alegria- que é isso o que precisamos, perder o foco, para poder enxergar oito dedos, como Patch, onde a maioria apenas vê quatro. O que será que vemos quando temos um paciente diante de nós? Conseguiremos desfocar, nem que seja um pouco, a técnica para descobrir uma pessoa que sofre, que pede ajuda? Triste será o dia -que, infelizmente, para muitos chega logo- em que não mais sejamos capazes de sentir o impacto da emoção perante o paciente que solicita nosso cuidado e nos honra com sua confiança.

            Lágrimas, emoção, mudança de perspectiva que deve ser continuada depois com o esforço, com a têmpera da vontade. Patch não é um sentimental, um emotivo diríamos hoje; é homem de coração, emociona-se e emociona os outros. Mas sabe prosseguir na sua missão com perseverança, com as virtudes ancoradas na racionalidade e não apenas por conta de um estado de ânimo.

            Continuam as lições. São comprometedoras. Falam-nos de arriscar a honra, o prestígio, até a vida. O paciente merece isto de nós. “Ensinei-lhe a medicina que a matou”. Não é fácil estar disposto a cuidar a quem nem sempre reconhecerá o esforço, e pode até nos agredir, física ou moralmente, com os processos que estão virando a moda do momento. Tal é o descrédito em que caiu nossa profissão, penso que não sem culpa nossa. Prestamos serviços que querem ser simplesmente técnicos -como, por exemplo, um encanador- quando deveriam ser primordialmente humanos. E o paciente -agora costuma usar-se cliente- desconfiado da imperícia do encanador biológico, “mecânico de pessoas”, vem tirar satisfação de uma técnica que é naturalmente limitada. Ninguém explicou ao doente o que ele já sabe: que a medicina não resolve tudo, que a dor e a morte são presença constante na vida dos homens. Se soubéssemos gastar tempo com o enfermo e a família, deixando de lado a máscara do supertécnico, recuperaríamos a confiança do paciente e com ela a nossa segurança. Mas será que os médicos hoje têm preparo para isso? Aprendem este viver arriscando pelo paciente nas faculdades ou apenas aprendem a defender-se……na aulas do que chamam ética médica?

            Somos nós, os médicos, os que lucramos com essa atitude dedicada que nos coloca incondicionalmente do lado do paciente. Ajudar os outros, com um sorriso, com alegria, com disposição. Uma excelente receita para resolver, por via rápida, os problemas pessoais que, confrontados com o sofrimento alheio, se dissolvem com rapidez. O médico preocupado com seus problemas torna-se incompetente para ajudar alguém. Problemas todos têm direito de ter, mas saber lidar com eles é um imperativo da maturidade. E os médicos -os que não esquecem este recurso magnífico- têm um atalho especial para resolvê-los no vácuo da sua vocação. Ser testemunha privilegiada de histórias de vida, fazer da própria existência uma contínua possibilidade de ser útil é terapêutica eficaz para a maior parte dos problemas.       

            Não, não é tudo um sonho cor de rosa. A medicina “romântica” -assim nos chamam aos que militamos na escola de Patch, escola de humanismo, de arte médica- não é uma novela com “happy end”. Existem fracassos, revoltas contra nós mesmo, contra Deus, porque a vontade de ajudar nos fez esquecer nossa condição limitada. Mas quando há humildade, recupera-se a perspectiva, nasce de novo o sorriso, e se retoma o trabalho pletórico de ideal -não de idealismo ingênuo, mas de consciência madura de missão- para continuar servindo os outros, dentro das nossas reduzidas possibilidades. Todo médico perde pacientes, todo médico se depara com o sofrimento e sente na sua carne a impotência perante o destino natural do ser humano. A diferença está em como encara isto – e se é capaz de encará-lo, sem fugir, como muitos fazem porque a técnica que conhecem mostra-se insuficiente. A diferença, que é qualidade no médico, é o modo de fazer, de afrontar estas realidades, com serenidade, com um sorriso, como o capitão que não abandona o navio que afunda.

            A sessão matinê acabou avançada a tarde. Ajusto o nó da gravata, olho para o celular que, curiosamente, não tocou durante o filme. Penso que o momento era tão peculiar que até os pacientes respeitaram, em benefício próprio, o tempo do filme. Como quando vamos num Congresso para nos atualizar. Esta tarde foi um Congresso de humanidade, uma reflexão emocionada  -desfocada pelas lágrimas, por que não dizê-lo?- que confirma o nosso projeto de vida. Os sonhos do futuro mesclam-se com as realidades da horta universitária que vai dando seus frutos. São um ensaio de aprendizado, um modelo para ensinar a Medicina de sempre, aquela que tem por objetivo o paciente, que deve ser cuidado, compreendido, ajudado.

            Enquanto saio do cinema, admirado com a indiferença das pessoas que se cruzam no meu caminho e que não assistiram ao filme, penso nos projetos, na vida universitária, na educação que devemos em consciência aos alunos que confiam em nós. As excelentes notas de Patch -sempre entre os primeiros da classe- são um lembrete importante. Ensinar humanismo, cultivar pessoas que entendam e cuidem dos outros, exigir aptidão, estudo, atualização. Para poder brincar de palhaço, com as comadres como sapatos, é preciso a credencial da competência. Do contrário faríamos a apologia da charlatanice, ou da caridade institucional -muito louvável-  mas que não é função do médico. Saber incorporar a técnica e o conhecimento ao humanismo e até à beneficência é o perfil do médico que o paciente precisa hoje, e sempre. Essa é a nossa suprema missão, o nosso privilégio. Daí arranca o serviço que podemos prestar ao paciente que, recuperada a confiança, insiste em colocar-nos no pedestal, para de lá podermos cuidar melhor dele. E que pede, não milagres que nossa capacitação limitada não lhe pode dar; pede  apenas compreensão, cuidado, competência. Pede todo esse amparo que deve caber num sorriso franco, como quem diz: estou do teu lado, conta comigo!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.