Natalia Ginzburg: Todos os nossos ontens.

Pablo González Blasco Livros 1 Comment

Natalia Ginzburg: Todos os nossos ontens. Companhia das Letras . São Paulo. 2020. 328 págs.

Já conhecia Natalia Ginzburg de leituras anteriores, do Léxico Familiar, onde os detalhes -aparentemente corriqueiros e sem importância compõem uma bela sinfonia, delicada, atenta, repleta de carinho. Todos os Nossos Ontens são uma variedade sobre o mesmo tema. Em palavras de Ítalo Calvino, “seria como a versão romanceada do Léxico Familiar, já que o prazer da Natália é contar histórias de família que são, ou poderiam ser, nossas”

No prologo da edição espanhola -que era a que tinha mais à mão para ler- encontro estas palavras que não resisto a copiar: “Imagino Natalia Ginzburg imaginando a atmosfera de Todos os nossos ontens. Como uma casa de bonecas – aquela pequena construção, dividida em duas, que imita a vida real em pequena escala. Como é simples a prosa de Natalia Ginzburg, como se com nossas palavras – as da conversa, as do segredo – ela entrelaçara as suas histórias. Quão complexo, ao mesmo tempo, é quando se trata de entrelaçar vários romances diferentes – o emocional, o social – no mesmo romance. O importante acontece neste romance do mesmo modo que a vida: de repente. Nenhum alarme soa e avisa o leitor quando uma morte quebra ou destrói sua vida”.

Com naturalidade, em família, vai apresentado as personagens, delineando-as, com perfis que parecem sair do papel. O pai de família, uma figura singular: “Havia deixado a advocacia para escrever o livro; vinha desempenhando essa tarefa há muitos anos.  O título era: E nada além da verdade e estava cheio de opiniões inflamadas sobre o fascismo e o rei. Ele ria e esfregava as mãos ao pensar que o rei e Mussolini viviam alheios ao fato de que, numa pequena cidade da Itália, um homem escrevia páginas inflamadas sobre eles (…) O pai não tinha amigos. Às vezes andava pela cidade, com um ar maldoso e desdenhoso, e sentava-se num dos cafés do centro para ver as pessoas passarem, para que aqueles velhos conhecidos de outros tempos pudessem vê-lo, para que pudessem ver que ele ainda estava vivo porque pensava que isso os deixaria com raiva. Depois de comer dizia a um filho : ‘Giustino, vai comprar-me o jornal; faça algo útil, já que você não é divertido’.  Ficava bom e doce quando estava triste, mas quando a tristeza passou, ele parou de dizer coisas boas”.

A velha empregada, que é parte integrante da família, substitui com eficácia a mãe já falecida. “A senhora Maria era muito pequena, tão pequena que quando se sentava não conseguia alcançar os pés no chão. Por isso quando se sentava cobria-se com uma manta, porque não gostava de ficar com os pés para fora (…) Ninguém conseguia dormir, porque era uma casa com divisórias finas, e a senhora Maria revirava-se na cama, apavorada com a ideia de que alguém pudesse ouvir da rua a voz excitada do pai e as frases inflamadas que ele dedicava a Mussolini (…) Dizia que é muito triste ter uma casa onde não chegam visitas de vez em quando”. Quando o pai morre, “reina na casa uma grande liberdade….mas uma liberdade que dá medo; já ninguém dava ordens”.

Concettina, uma das irmãs, que tinha muito namorados, sempre estava mudando de um para outro. E criticava Ippólito, um dos irmãos, “porque tinha alma de escravo, segundo Concettina, e sangue de água de coco, era como um velho de noventa anos, não gostava de mulheres e nunca tinha vontade de nada, era capaz de passar o dia inteiro sozinho a passear pelo campo com o seu cão”.

Personagens anexos à família, amigos, vizinhos. Danilo, um projeto de revolucionário: “Aos pais, disse Danilo, assim que terminarem de nos educar temos que começar a educá-los nós próprios, porque é absolutamente impossível deixá-los continuar a ser como são”. Emanuele, o companheiro de Danilo nos sonhos de mudança, irônico e perspicaz: “Afirmava do Ippólito que tinha virado uma mulher velha de tanto levar o cachorro passear…Que se tinha transformado frio como um peixe, somente com olhá-lo já ficavas gelado….E do Danilo, quando o metem na cadeia: é preciso que nos encerrem na cadeia para que as mulheres nos amem; não há outro jeito”.

Os vaivéns políticos do início da segunda guerra, onde os italianos não sabem exatamente qual é o time onde tem que jogar, ou mesmo, se devem entrar no jogo. “No final de Setembro, as pessoas começaram a pensar que a Itália já não faria nada, que ficaria parada a ver os outros a arrancarem-se a pele uns aos outros, apenas para se alistar no último minuto ao lado dos vencedores”.  A cadeia reservada aos que se opõem ao fascismo, é berço de filósofos. “Na prisão ele havia pensado em tantas coisas e isso lhe dava a impressão de que havia vivido tolamente, desperdiçando miseravelmente seu tempo. Na prisão você se torna adulto, disse ele, e acaba não suportando nada que tenha cheiro de afetação ou postura. Na prisão revisou toda a sua vida com um olhar crítico e percebeu que não havia feito nada de útil, a única coisa que não lhe parecia uma perda de tempo foram as horas que passou com aquela garota”.

E Anna, a menor da família, que é quem de modo quase oculto vai nos relatando a história, a expectadora que nos explica os meandros de cada uma das personagens.  Uma menina que vai despertando para a vida: “Aos poucos ela foi deixando de se aborrecer com ele, não prestava atenção às suas palavras mas olhava para ele e sentia um orgulho infinito de ter Giuma sentado ao seu lado num banco do parque”.

O despertador chama-se Giuma, um vizinho, outra figura torta e narcisista que fará sofrer a Anna. Um garoto idealista e egoísta, “ a quem o fascismo também não lhe convinha, até porque era uma coisa provinciana, fazia da Itália uma província, impedia que fossem organizadas exposições com boas pinturas de fora. Acima de tudo, o fascismo era feio, provinciano e ignorante. Mas não valia a pena deixar-se prender por algo tão feio e tão brega, deixar-se prender era levar isso muito a sério (…) Pouco depois seria a sua vez de dirigir a fábrica de sabão, e Emanuele também teria que fazê-lo, e eles não podiam estar do lado de Karl Marx, eram donos de uma fábrica e não podiam ser apoiantes daqueles que pretendia dar as fábricas aos trabalhadores”.

A família de Giuma -irmão de Emanuele- está presidida pela Mammina, mulher imprevisível e superficial. A meia- irmã mais velha, Amália, concorrente da própria madrasta “Depois da morte do pai, Franz hesitou entre casar com Amália ou com Mammina, mas acabou por decidir por Amalia porque Mammina só tinha o usufruto e Amalia as ações. Então à pobre Mammina somente lhe restou o bridge”

Anna, já desperta para a vida, segue o seu caminho: “Parecia-lhe que tinha envelhecido desde que soube que ia ter um menino, e que ele, por outro lado, ainda era um menino com o rosto sufocado pelo calor e os cabelos emaranhados”. É o momento em que aparece Cenzo Rena, um velho amigo da família: “Pensou que finalmente havia encontrado alguém que a ouvisse. Quando falava com Giustino ou Giuma sempre tinha dúvidas se eles realmente a ouviam. Não precisou procurar palavras e quase sem perceber contou-lhe sobre o filho que esperava, olhou para ele e não viu nenhum escândalo ou horror em seus olhos, era um rosto que escutava e havia compaixão em seu olhar”. Ele será o apoio de Anna.

Com bastantes anos de diferença, começa a nova vida de Anna: “Como era difícil ser marido e mulher. Não bastava dormir juntos e fazer o amor e acordar com aquela cabeça ao lado. Para ser marido e mulher era preciso transformar pensamentos em palavras, extrair continuamente palavras de pensamentos, para que uma cabeça apoiada ao lado da sua no travesseiro não pudesse parecer estranha, quando havia um fluxo livre de palavras que renascia frescas todas as manhãs”.

Cenzo Rena, uma espécie de comendador que sabe de tudo, e a todos quer ajudar, é outra figura magnificamente descrita no romance: “Andava pela casa de roupão e respirava o ar da manhã e dizia que se sentia feliz, farto daquela cidade que estava sempre diante de seus olhos, farto e feliz, não entendia como se podia sentir tão farto e tão feliz ao mesmo tempo (…) Mas ele disse que todos os homens têm pena quando se olha um pouco mais de perto, e no fundo é preciso defender-se daquele excesso de compaixão que nasce de repente quando se olha as pessoas um pouco mais de perto”.

Sua dedicação aos emigrantes, fugidos da guerra, “que vinham pelos becos da cidade carregados de crianças e colchões; que coisa triste era ver todos aqueles colchões rolando pela Itália daqui para lá, toda a Itália começou a vomitar colchões do casas destruídas”. Mas as agruras da guerra que não acaba, esgota também os líderes e comendadores: “Cenzo Rena, ele mesmo entendia que ultimamente estava ficando desajeitado e chato, criticava todo mundo e o fazia querer sair por aí prevendo coisas sombrias e, além do mais, não se sentia bem e não comia nem dormia confortavelmente (…) A guerra não era o que eles acreditavam, as coisas cotidianas continuavam acontecendo apenas com cortinas pretas nas janelas, os cinemas, teatros e exposições caninas continuavam. Somente com cortinas pretas nas janelas”.

Dificuldades e fome, o quotidiano dos dias de guerra. “O pão também era racionado e era uma massa pastosa, cinzenta e indigesta, o pão parecia sabão e o sabão parecia pão, lavar e comer tinha ficado muito difícil(..) As crianças não eram trazidas ao mundo para que estivessem bem, com comida abundante e pés quentes. Vieram ao mundo para que pudessem vivenciar o que tiveram de vivenciar, incluindo bombardeios sistemáticos, dificuldades e fome (…) Era livre quem aceitasse viver o que lhe fosse jogado. Fez-se livre quem transformou seus pensamentos em salvação e riqueza, não quem criou com eles uma armadilha para cair destruído”.

Enquanto outros, escalados para entrar em combate, tentam sobreviver a um desafio cujo motivo desconhecem, como Natalia descreve magnificamente: “Nunca pensou em nenhuma pátria quando estava na frente disparando. Nem nenhum dos que estavam com ele pensou nisso. Ninguém jamais se lembrou de que eram os russos que estavam sendo alvejados. Era puro tiro a favor de ninguém e contra ninguém, atirar com os pés como pedaços de gelo dentro do sapato, com os olhos ofuscados pela neve. Simplesmente para ser mais um tiroteio contra nenhuma pátria, para as pessoas que estavam lá sem culpa própria e que no fundo era essa pátria, a pátria eram os filhos do vizinho pobre enviados para a Rússia de tantas cidades como San Costanzo, que tinham pés frios e atiraram por ninguém e contra ninguém”

Lemos na comentário final, a modo de fechamento: “Muitos descreveram este como sendo o melhor romance de Natalia Ginzburg. Nos dá, página por página,  os gestos do seu povo e os anos que mudaram para sempre o destino da Europa: no olhar de Anna está o nosso passado. Às vezes, o olhar ingênuo de uma menina é suficiente para dar início a uma história que mudará a vida de duas famílias e do mundo inteiro”. Faz sentido este parágrafo, no final do relato: “E começaram a rir e os três sentiram-se muito próximos, Anna, Emanuele e Giustino, e sentiram-se felizes por estarem juntos, recordando os seus mortos e a guerra sem fim e a dor e o clamor e pensando na vida difícil e longa que ainda tinham que viver, cheios de coisas que ainda não haviam aprendido”.

Esse foi também o resultado da minha leitura nestas páginas familiares e entranháveis. E acrescento, um par de frases que sublinhei, porque me parecem emblemáticas. A primeira que plasma uma realidade incontestável: “A vergonha é o que estragou os homens; provavelmente, se a vergonha não existisse, a raça humana não seria tão nojenta”. E a segunda, a modo de advertência, para estar atentos às histórias que nos cercam e deixamos passar por distração: “ficou surpreso que os olhos dos homens passassem pelas coisas sem deixar rastro”. Passar sem deixar rasto, não acumular vivências, estar sempre na estaca zero. Algo que somente é possível evitar com a leitura, cultura, e a reflexão sobre a própria vida. Essa era a função dos diários antigos. Essa é a função destas linhas, que escrevo para não deixar que os livros passem como água sobre as pedras, sem deixar rasto. Algo que nenhuma rede social é capaz de fazer. Não existe atalho, nem aplicativo, para embeber-se das histórias vividas. A cultura é isso: cultivo, lento, fisiológico, deixando tempo às sementes para que rendam fruto.

Comments 1

  1. Excelentes comentários sobre os efeitos da guerra sobre os personagens e o desenrolar de suas vidas no âmbito de duas famílias italianas.
    Independentemente da orientação política, cada um sofre em seu pequeno mundo interior e oferece ao leitor a oportunidade de refletir e se questionar.
    O último comentário é muito significativo e nos convida a aproveitar os livros em sua essência, evitando que passem por nós sem deixar marcas.
    Obrigada e parabéns!

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