Lopez Lomong: “Correr para vivir”
Lopez Lomong: “Correr para vivir”. Astor, Palabra. Madrid. 2014. 300 pgs.
Quando me recomendaram este livro (que li em espanhol, não há versão portuguesa, mas a linguagem é fácil de entender) o primeiro que me perguntei é o por que do nome do protagonista que é também quem escreve.. López não me parecia um nome adequado para um sudanês. Vim descobrir depois que López é, na verdade, Lopez, palavra oxítona, um curioso resultado de Lopepe –termo que significa veloz na linguagem do Sudão- com Joseph, o nome que lhe foi imposto no Batismo, sendo também sua identificação em USA, o pais que lhe acolheu.
Porque a história de Lopez é uma aventura real. Um garoto de seis anos, sequestrado pelos revolucionários sudaneses durante a guerra civil, que consegue escapar do cativeiro, fugir do seu país, para acabar num campo de refugiados no Quênia. E tudo isso correndo, dias e noites, distâncias que são difíceis de acreditar. Foi desse modo como esse jovem, hoje atleta olímpico, descobriu seu potencial. A família já intuía esses dons quando o apelidou Lopepe –rápido- pois esse era o modo de realizar os encargos que a mãe lhe dava quando criança: sempre correndo, com celeridade inusitada.
Mas a virtude do Lopez não se esgota apenas na velocidade que lhe foi concedida por natureza. A capacidade de se adaptar, de pensar nos demais, de não queixar-se e manter o bom humor, perpassa toda a narrativa. Valha a descrição do campo de refugiados no Quênia a modo de exemplo. “Nem todas as crianças do campo conseguiam ter a mesma atitude. Há quem está todo o dia se queixando da sua vida desgraçada. Mas, de que adianta queixar-se? Despois de tanto chorar, continuamos a viver num campo de refugiados, e todas as queixas do mundo não farão com que isso melhore. O que é preciso é tirar o máximo partido à situação na qual a gente se encontra, mesmo num lugar como era Kakuma”
Tirar o máximo partido, e aproveitar os dons que cada um tem, para dar o seu melhor. Lopez vive –ou melhor, sobrevive- como pode no campo de refugiados, até que uma família americana o adota e se traslada a USA com 16 anos. Vive, e corre; porque para participar nas partidas de futebol entre os refugiados era preciso correr antes… 30 km! Um belo aquecimento. Mas o nosso protagonista não dá importância ao fato, e enfrenta a vida com otimismo, valorizando o dom que lhe foi dado. O único que ele conseguia controlar. “O ONU decidia quando se distribuía a comida, quando se podia usar as torneiras, quando jogavam no lixo os restos que nós ainda aproveitávamos para comer. Mas quando eu corria era eu quem controlava minha vida. Corria para mim mesmo. Ninguém tinha sapatos, mas correr descalço me fazia estar unido à terra sobre a qual corria. Como se o caminho sob os meus pés e eu fossemos uma coisas só”.
O sentido de transcendência permeia todo o relato de Lopez. Sente a Deus perto dele, pede ajuda durante as corridas, sabe que está sendo amparado por uma força do alto. Nota-se que é algo que os pais lhe ensinaram –ele conta que foi sequestrado quando estava assistindo a Missa num Domingo (muito antes de ser cristão, porque batizou-se depois, no campo de refugiados). É um sentido do divino que lhe chega com o leite materno, juntamente com muitas outras virtudes que se viviam na família. Na simplicidade como relata estes fatos, percebe-se que as virtudes não são um aspecto cultural, mas algo próprio da natureza humana quando bem formada. A presença de Deus, a lealdade, a amizade, convivem com costumes peculiares que ele mesmo chega a estranhar (por exemplo, lambuçar-se nos intestinos de uma cabra como sinal de boas vindas e de sorte) quando regressa ao seu país anos depois.
Já em USA, acolhido por uma família de Syracuse, desenvolve sua educação e continua correndo, que é o que sabe fazer. O incentivo do pai e da mãe americanos –como ele mesmo faz questão de chamar- está sempre presente. Nos estudos e nas competições esportivas. “Minha mãe americana prometeu-me uma camiseta e uma Coca-Cola me aguardando na meta. Eu era incapaz de resistir a camisetas e a Coca Cola, de modo que corri para valer”. E desse modo chega a ser atleta olímpico, o porta bandeira da delegação americana nas Olimpíadas de Pequim em 2008, escolhido por unanimidade entre os todos os seus colegas atletas.
Lopez Lomong ama correr, gosta de ganhar, mas é consciente que o seu dom é talento que deve utilizar para ajudar o seu povo. Monta uma fundação para levar recursos ao Sudão e ajudar crianças desamparadas; e por isso continua correndo e conquistando prêmios e patrocínios. “A responsabilidade que sentia –triunfar correndo para poder levar recursos ao meu pais de origem- não me produzia afobamento nem angústia. Angústia é o que sentes quando tens de fazer durar 30 dias a comida que a ONU te destina; ou ver teus amigos morrer de malária e perguntar-se quem será o próximo; ou escrever uma redação em inglês da qual depende o teu futuro num pais desconhecido…Mas uma corrida, mesmo sendo a final de um campeonato, não me produzia afobamento nenhum”.
Um garoto sudanês, transformado num atleta olímpico de nacionalidade americana, que corre para ajudar os necessitados na Africa. Dois amores –Africa e USA- crescem paralelamente no seu coração, e assim o reconhece, com agradecimento ao pais que lhe acolheu. Uma surpresa agradável foi descobrir neste relato biográfico o significado daquela expressão que se tornou famosa numa das canções de “O Rei Leão”: Hakuna Matata, uma espécie de desculpa para a vida boa. “Um professor me advertiu: Em USA não funciona o Hakuna Matata que em Africa significa ‘não há com o que se preocupar’. É muito mais do que uma expressão, é uma filosofia de vida. O tempo deixa de ter importância. Para todos na Africa –presidentes reis, juízes, crianças dos campos de refugiados- o ‘chegar pontual’ é um conceito estrangeiro. Se te dizem: venha às nove horas, na realidade significa, te espero em algum momento antes do meio dia. Se chegas tarde, Hakuna Matata, não te preocupes. Além do que na Africa ninguém espera que você chegue na hora”.
Enquanto me deliciava com as narrativas de Lopez, admirando a naturalidade com que invoca a ajuda divina nas corridas, veio à minha memória a manchete de uma revista que li há muitos anos. Falava de Eddy Merckx, o grande ciclista Belga, uma lenda do esporte. Dizia com grandes letras: “Corre, quase voa, e pensa em Deus”. Associei de imediato as duas personagens, neste livro interessante e sugestivo, um verdadeiro exemplo de superação que sempre, e mormente nos dias de hoje onde graça a mediocridade, cutuca, estimula, faz pensar.
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