Trash: A Esperança Vem do Lixo. O Brasil que aprendi a amar.
“Trash” (2014). Director: Stephen Daldry. Martin Sheen, Rooney Mara, Wagner Moura, Selton Mello. Spain. Duración: 115 minutos.
A recomendação chegou-me do outro lado do Atlântico. “Muito bom esse filme dos meninos brasileiros que trabalham no lixão”. Sucesso na Europa, não tinha ouvido falar; aqui, no Brasil, nenhuma palavra. Fui checar o nome com que os espanhóis tinham batizado o filme: Ladrones de Esperanza. E seguindo com as pesquisas me deparo com um diretor inglês, que tem no curriculum filmes tão britânicos como Billy Elliot, ou As Horas –as tragédias de Virginia Woolf- e vem nos contar o que acontece no Rio de Janeiro. Atores americanos fazem o contraponto aos nossos Wagner Moura e Selton Mello. Tudo em português, o inglês é uma concessão que se tolera, mas que não encaixa, é como branco no samba. Martin Sheen, incarna de modo convincente um padre de favela, e Rooney Mara, a assistente da ONG focada no social. Fiz-me como uma copia e deixei repousar enquanto pensava que salada seria esta. Esperei, e perguntei. Obtive como resposta: Já ouvi falar, mas não me animo a ver. Você não tem vergonha de que se apresente o Brasil desse modo? Eu pensei: que modo é esse, de que Brasil estamos falando? Quer dizer, não tive outro jeito e me debrucei sobre o filme.
Duas horas. Ritmo mantido, suspense, criatividade. Senti uma lufada de ar fresco se desprendendo do lixão no Rio de Janeiro, uma cutucada que me fez incorporar-me na poltrona, um pontapé no pessimismo que paira no ambiente. Lembrei do título em espanhol, os ladrões da esperança, que não a roubam mas a comunicam e distribuem. Como um Robin Hood dos morros cariocas, onde o lixão se projeta como Sherwood, Martin Sheen é uma variante de Frei Tuck, e até temos uma Lady Marian, na simpática ativista da ONG. O filme deixou-me um maravilhoso sabor de boca. Produção que retrata uma realidade dura, mas positiva, aberto à esperança desses ladrões exemplares. Gostei, muito. Vi de novo, recomendei, e decidi rascunhar estas linhas para fazer a minha parte, para contribuir na distribuição da esperança.
Tem lixo, montanhas dele. E no meio, virtude, gentileza, generosidade. Tem compromisso e integridade. Afinal, por que meter-se nessa enrascada, fantasiados de Robin Hood, enfrentando a ditadura da corrupção –o João sem Terra que surrupia os direitos dos cidadãos- com perigo da própria vida? Por que? Porque é a coisa certa! O que se deve fazer. O que aprendemos na família, na solidariedade da favela miserável, mas que transborda riqueza de alma, magnanimidade. E saber que Deus cuida de nós. E discernir, com sabedoria salomônica, os caminhos que devemos trilhar para ser pessoas de bem.
A corrupção, o envolvimento do poder constituído, o verdadeiro lixo que fede e envolve a política e a força pública –aquela secreta maçonaria das paixões de que falava Eça de Queiroz- não é, nem será nunca, maior do que o caráter desses ladrões da esperança. Porque eles são o nosso Brasil, a alegria, o bom humor, o engenho que desarticula a maldade, a generosidade que instintivamente cuida do próximo. São os que carecendo de quase tudo sabem dividir a sua indigência com o próximo, com jovialidade, sem dar-se importância. Não os pobres desenhados nos tratados de sociologia nem a bandeira de sindicalistas e ONGs que vivem às custas dos pobres, sem fazer nada por eles. Mas a realidade deste nosso Brasil
continental, que samba, sorri, reza e que –como diz a música- sabe que a vida tem de ser melhor, e será, mas que desfruta na resposta das crianças, porque é bonita, é bonita. Viver, e não ter medo de ser feliz. Vale escutar Gonzaguinha, enquanto alinhavo estes pensamentos, com a bandeira verde amarela e a cidade maravilhosa de fundo.
Apalpa-se pessimismo nestes tempos que nos toca viver. Não o pessimismo dos que contamos os anos por décadas, mas da juventude. Dói ver os jovens desanimados com o país; e dói porque, pior do que a lama em que estamos mergulhados, é o engano que vá tomando conta deles, fazendo-lhes pensar que sempre foi assim, que o país não tem jeito, que a devassidão tomou conta da atmosfera que respiramos. Lembrei de Tropa de Elite, um espasmo revoltado contra a corrupção, e da repercussão que teve. E lembrei, com pesar, da sequência, do Tropa de Elite 2, que me deprimiu profundamente. “Por trás do dedo do bandido que aperta o gatilho, sempre está a mão do político que conduz esse dedo”. Quer dizer, não tem jeito, sem espaço para a esperança.
Não é verdade: o Brasil profundo é muito maior do que as indecências e libertinagens. O filme, a esperança vem do lixo, é um canto a esse Brasil que amamos, que nos conquista. E o faz de modo simples, sem floreios nem falsos idealismos. E nos lembra que é o caráter de cada um –e não as instituições- o que é capaz de fazer toda a diferença. Um caráter que se esculpe sobre esses traços que nosso povo tem de fábrica: afabilidade, carinho com os semelhantes, generosidade alegre, bom humor, capacidade criadora.
Sim, uma rajada de esperança. Tem de ser um inglês quem vem nos lembrar estas coisas que o pessimismo reinante nos faz esquecer. Saí do filme melhor do que entrei. Comovido, pensativo, saboreando lembranças. Uma magnífica sensação que me fez rebobinar, em lento flashback, quatro décadas. E reencontrei este Brasil que aprendi a amar quando aqui cheguei há 40 anos. Um Brasil que é muito maior que bandalheiras e corrupções. Essa é a história, pletórica de esperança, que a juventude merece escutar. Esse é a Carta Magna que temos de exigir dos joãozinhos sem terra que crescem ao amparo da mediocridade. Essa é a esperança, cristalizada em direito cidadão, que o Brasil e o seu povo merecem.
Comments 1
Caro amigo,
Seus escritos, como sempre, são um convite irrecusável à reflexão. Neste caso, sobre um assunto conhecido e constantemente ruminado por nós através dos jornais e noticiosos em geral, com maior ou menor dose de sensacionalismo.
Foi isso que me afastou desse filme na época. Confesso que seu texto me estimulou a ve-lo com outros olhos, diferentes daqueles que o prejulgaram como mais um “filme brasileiro que retrata a miséria”. Vou conferir.
Adicionalmente, fica a minha alegria de confirmar seu amor por este país, principalmente nos tempos de hoje, onde brasileiros nativos estão saindo em massa, fugindo dos nossos problemas. Um grande abraço, Osnir