Daniel Silva: O Caso Caravaggio
Daniel Silva: O Caso Caravaggio. Harper Collins Brasil. Rio de Janeiro. 2016. 350 pgs.
Daniel Silva, a pesar do que o nome possa sugerir, é um escritor americano, filho de pais Açorianos, com impacto no mercado editorial pelos seus livros policiais e de espiões. Aqui o protagonista é Gabriel Allon, uma das suas personagens preferidas. Allon é um restaurador de arte, de ampla cultura, técnica refinadíssima e com uma paciência digna de Job. “Remover o verniz de um quadro barroco não era como espanar um móvel; era mais parecido com esfregar o chão de um porta-aviões com uma escova de dentes”.
O livro tem uma abertura cativante e promissora. Negócios que envolvem obras de arte, um cadáver brutalmente mutilado, e o desaparecimento de um quadro notável. Quando se juntam violência, sordidez é arte, nada mais lógico que jogar no crédito de Caravaggio -que entendia muito bem de ambos cenários- a obra desaparecida: A Natividade com S. Francisco e S. Lourenço. Allon, esperto em arte entra em cena. Mas o principal motivo da convocação é a identidade que se esconde por trás do artista restaurador: um espião, um agente bem treinado da inteligência de Israel.
A trama decola com interesse, repleta de ironias finas, diálogos sutis, muitas entrelinhas. Faz lembrar os romances noir clássicos, de Raymond Chandler ou de Dashiell Hammett. E tem até recados com substância que fazem pensar. Anoto um que me chamou a atenção, em perfeita sintonia com os tempos que vivemos: “Houve uma época em que os seres humanos não sentiam a necessidade de compartilhar todos os seus momentos acordados com centenas de milhões, até de bilhões, de completos estranhos. …. Agora, na era da perda da inibição, parecia que nenhum detalhe da vida era mundano ou humilhante demais para ser compartilhado. Na era online era mais importante viver se mostrando do que viver com dignidade. Seguidores na internet eram mais apreciados o que amigos de carne e osso, pois davam a ilusória promessa de celebridade, até de imortalidade. Se Descartes estivesse vivo hoje, ele poderia ter escrito: eu tuito, logo existo”
Transcorrido um terço do livro, o que se podia esperar -intrigas policiais misturadas com arte- dá um giro que lhe faz perder pulso. Desaparece o homem culto, o artista, para configurar-se definitivamente o agente israelense que acomete a tarefa com afinco de um assassino profissional. Silva se desfaz em cantos e louvores do serviço secreto israelense. Os bandidos, naturalmente, são os muçulmanos, e o ditador árabe que mata milhares de pessoas e de quem o mocinho, o espião israelense, tem que nos redimir. E recuperar o quadro de Caravaggio que, agora, já virou um simples detalhe na trama enfadonha do livro. Tudo isso acrescido de uma multidão de personagens que vão aparecendo, de modo gratuito.
Eu pensei, pelo título e pelas referências, que tinha um livro policial na minha frente, e me encontro com uma versão romanceada do jornal diário: as atrocidades na Síria, os dominadores que apagam a primavera árabe, e os judeus correndo por fora com a eficiência conhecida da Mossad. Há um momento ápice desta descarada propaganda israelense que quase me levou a fechar o livro, quando ainda faltavam 100 páginas para acabar. Não o fechei, sorri maliciosamente, e anotei a passagem para ilustrar esta espécie de alucinação. Uma mulher síria maltratada pelo ditador, é utilizada pela inteligência israelense, e num momento dado deixa vazar seus pensamentos sobre o protagonista: “O homem de olhos verdes. Ele não era o monstro que a imprensa árabe tinha descrito; nenhum deles era. Eram encantadores. Eram espertos. Eram inteligentes. Amavam seu país e seu povo. Sim, eles admitiam, Israel tinha cometido erros desde sua fundação, erros terríveis. Mas não queriam nada mais do que viver em paz e serem aceitos por seus vizinhos”. Areia demais para o meu caminhão!
Leio na Wikipédia que Allon converteu-se ao judaísmo quando adulto, o que pode explicar este desvario literário. É um risco que qualquer converso -seja de uma religião ou outra- sempre carrega consigo, e que tem de saber administrar: a ponderação serena em relação aos que possuem crenças diferentes, a não pensar que a verdade é um privilégio que somente eles conseguiram alcançar. Talvez lhe conviria a Silva ler a Newman (o que poderia fazer no idioma original, em inglês) para entender do que estamos falando. Fecho o livro, e enquanto rascunho estas linhas penso que poderia dar um bom roteiro de filme de ação. Retirando os excessos propagandísticos. Mas o livro em si, é completamente dispensável.
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Li esse livro, por sinal o único que li do autor, concordo plenamente com a resenha acima. Tive a mesma sensação: o livro empolga no inicio e depois fica chato. Por pouco, não o abandonei.