Kazuo Ishiguro: “O Desconsolado”
Kazuo Ishiguro: “O Desconsolado”. Ed Rocco. 1996. 489 pgs.
A notícia do prêmio Nobel concedida a Ishiguro foi o gatilho para aventurar-me nesta leitura. Habitualmente não tenho tropismo pela notícia literária de última hora -nunca pelos best-sellers, que não são garantia de qualidade em absoluto- a não ser que tenha me informado convenientemente. Lembrei de um livro (e o correspondente filme) deste autor, Não me abandones jamais, que li anos atrás, intrigante e questionador. Recordei também o filme superior de James Ivory, “Os Vestígios do Dia”, com a soberba atuação de Anthony Hopkins e Emma Thompson. Tropecei com uma crítica séria sobre a obra de Ishiguro recomendando a leitura completa da sua produção. E, finalmente, chegou no meu correio o comentário de um amigo e colega médico, esbanjando louvores ao Nobel. Um click na Estante virtual e tinha este livro nas minhas mãos um par de dias depois. Mergulhei na leitura com vontade…..e descobri que a piscina tinha pouca água porque senti o golpe.
Kazuo Ishiguro constrói muito bem a narrativa -deve ser melhor apreciado no idioma original, inglês, mas a tradução não deixa a desejar- cria expectativa, mas algo não funciona. Cadê o argumento? Na contracapa adverte tratar-se da visita de um músico famoso, Ryder, a uma cidade onde dará um concerto. E a seguir avisa que é um romance sobre a falta de comunicação entre pessoas que se amam, mas não se escutam. Não prestei atenção, como disse, e pulei na piscina de quase 500 páginas.
Logo no início o protagonista nos dá uma dica do que lhe vai acontecer, do seu jeito de ser. Apega-se como um imã às pessoas, não sabe dizer que não, falta-lhe foco. “Eu estava prestes a interrompê-lo, como costumo fazer quando um carregador me mostra o quarto em um hotel, mas alguma coisa na diligência com que desempenhava a tarefa, alguma coisa em seu empenho em personalizar algo que fazia várias vezes ao dia, comoveu-me e impediu-me de dispensá-lo”.
Um diálogo nas primeiras páginas estabelece o estilo que será o verdadeiro corpo do livro. “As pessoas precisam de mim. Chego a um lugar e quase sempre descubro problemas terríveis. Problemas arraigados, aparentemente sem solução, e as pessoas se mostram muito agradecidas por eu ter ido. (…)”. Sophie, uma das protagonistas, lhe dá o troco: “Mas por quanto tempo poderá continuar a fazer isso pelas pessoas? O tempo está passando. Ninguém pode esperar que você continue assim. Por que essa gente não pode resolver seus próprios problemas? Ia lhes fazer muito bem”. Dá o troco, mas aluga o Ryder como todos os demais.
Prossegui a leitura com a esperança de encontrar uma lógica, um fio condutor que não fossem as muitas histórias paralelas que se entrelaçam, ou melhor, que tropeçam umas com outras em choque inelástico, porque todas se deformam. Mas não houve jeito; uma verdadeira epidemia de carências vai tomando conta da personagem, do livro, e do leitor, que entediado, não sabe se continuar a leitura ou parar por aí mesmo. Em algum momento lembrei daquele filme de Truffaut, “A Noite Americana”, onde o diretor (o próprio Truffaut) gasta a maior parte do seu tempo resolvendo os problemas variadíssimos e pessoais dos atores, ao invés de dirigir o filme. Mas lá o filme acaba saindo.
À multidão de personagens, que vão sendo introduzidos ao longo do livro, e igualmente desaparecem de cena, somam-se situações de um non sense curioso -mistura de Kafka com Fellini- que salpicam a trama inexistente. Ora ir ao enterro e festa fúnebre de um cachorro de quimono, enquanto outro vai de smoking; ora alguém que perde uma perna num acidente, mas era uma perna artificial, porque a verdadeira tinha sido perdida há anos, e o cirurgião nem repara. Vez por outra surge um comentário que confirma a sensação ilógica que o leitor padece: “As pessoas daqui não conseguiam lidar com a situação, as coisas estavam desabando. Tinham medo, sentiam a situação escapando de seu controle”.
O uso do tempo -que pareceu-me ser elogiado também na contracapa- é outra variante do teatro do absurdo. De fato, o tempo de Ryder é elástico, como naquele filme A Origem, estica-se de modo ilógico porque não consegue desenrolar-se das solicitações com as que tropeça nos momentos mais inoportuno, e engancha-se nelas. “Tenho sido obrigado e atender muitos pedidos e, como resultado fiquei sem tempo para fazer as coisas mais importantes que me trouxeram aqui. Eu me dava conta de como havia permitido que várias coisas me desviassem de minhas prioridades centrais. Então, minha raiva misturou-se a um sentimento de desespero e, por algum tempo, estive a ponto de chorar”.
É justo reconhecer que estas reflexões são de fato importantes, e extremamente úteis para os que caminhamos pela vida, sujeitos a imprevistos e vicissitudes de todo tipo. Afinal: o que importa de verdade? Nossos planos assépticos ou as necessidades dos outros? Como manter a ordem diante de um caos de solicitações? Como aprender a sabedoria das prioridades? Sim, são importantes, mas reconheço que nesta altura andava eu já muito cansado, desejando acabar o livro que lia a golpe de parágrafo. O meu tempo, a diferença do de Ryder, não é elástico, é preciso fazer opções. Não estou decepcionado com o Nobel, pois afinal tem créditos ao seu favor. Talvez não acertei o livro, ou o tempo, porque cada livro tem o seu momento para ser lido. Tentaremos de novo, mais adiante. Mas é preciso deixar a água correr, para que cicatrize esse universo de carências empilhadas que me enfastiaram deixando-me quase como o título: desconsolado.