Rafael Ruiz: “Intolerância”

Pablo González Blasco Livros 5 Comments

Até me cruzar com este livro, sempre pensei que a intolerância era a minha atitude habitual com a academia nas últimas décadas, uma espécie de mania não superada.  Não foram poucas as vezes que os meus colaboradores, antes de iniciar uma conferência, me advertiam: “Por favor, professor… Não fale mal da Universidade. Os alunos se assustam e não resolve”. Não sei se melhorei -pelo menos não me fizeram mais correções- mas certamente não mudou o meu modo de pensar.

Lembro de certa ocasião, a propósito do pequeno-grande livro de Ortega sobre A Missão da Universidade (escrito em 1920), que emprestei a um jovem médico. Leu, me devolveu e comentou: “Impactante. Vou pedir meu dinheiro de volta”. Não deve ter recebido nenhum reembolso, mas acabamos escrevendo um artigo juntos, para registar o fato.

Fui no lançamento da presente obra, mas chegando no local, descobri que já não havia mais exemplares. Tive de me limitar a dar um abraço ao Prof. Rafael Ruiz e agendar um compromisso de que nos visitará com um exemplar em baixo do braço. E assim foi: esteve na nossa reunião mensal de Humanismo e Cultura que, carinhosamente denominamos, Pizza na Torre, o que descreve tanto o local (a parte superior da nossa sede) como os acompanhamentos que cercam a tertúlia, pizza e vinho. Trouxe o livro afetuosamente dedicado… e me faltou tempo para lê-lo de uma tacada só.

O autor monta um romance em versão feminina: Isabel, Clara -seu alter ego- e a história de um concurso universitário mal sucedido, no departamento de História que… é também a praia de quem escreve. A trama é simples, direta, uma elegante calçadeira para ir dando os recados que o Prof. Rafael situa de modo direto em breves anotações, que incluí no denominado Blog d@ K (não vou dizer porquê, para não tirar o suspense).

É lá, no tal Blog d@ K, onde o autor vá colocando o pensamento que lhe extravasa de modo vigoroso, e não tem como encaixar no romance porque já está saturado destas ideias. Para não deixar nada no tinteiro, para dar o recado por completo, contundentemente. Recado muito bem trabalhado, curtido com os anos de experiência docente, enfim, um produto vintage da melhor qualidade. Lembrei de Fernando Pessoa, quando escreve:  Em tudo quanto faças sê só tu, em tudo quanto faças sê tu todo.

Neste Blog está o todo do recado que se recolhe num parágrafo simples: “Tudo se reduz a uma questão de poder. O que importa não são as palavras, mas quem detém o poder, para dar-lhes o seu significado. É curioso como demoramos tanto tempo até perceber uma coisa tão simples como esta”. E outros pensamentos que pipocam, a modo de variações sobre o mesmo tema: “É tudo uma grande farsa, uma triste peça de teatro. E o melhor é que talvez seja melhor assim. Talvez tudo isso tenha a ver com o tal de ‘processo civilizatório’ que evita que nos matemos uns aos outros. Talvez melhor esse faz de conta do que andar atirando naqueles que pensam diferente de nós”.

Não vamos pensar que nesta altura entrega os pontos, desiste, jogando a toalha. A capacidade de sonhar funciona também como a cultura, que no dizer de Ortega, é a tábua que nos salva do naufrágio vital. Copio: “Todos precisamos de uma quimera para sobreviver, um sonho que, como uma tábua, nos permita sobreviver neste naufrágio, chamado ironicamente de vida, em que somos lançados quando nascemos. E a maior quimera de todas tem o nome de amor”.

E para continuar sonhando o caminho é entender melhor. Lembro que em certa ocasião, num curso que estávamos dando mano-a-mano o autor e eu, ele comentou para os alunos: quando falamos, nos tornamos claros para os outros; mas quando escrevemos nos fazemos claros para nós mesmos. Gostei de ver este pensamento estampado nas páginas do livro: “Nem sei bem por que estou escrevendo isto aqui agora. Talvez porque precisemos contar-nos a nossa própria história para entendermo-nos a nós próprios”.

A trama mistura-se com lembranças pessoais -o esforço para entender-nos a nós mesmos- como a descrição elegante do serviço de bordo… que não liga a mínima para os passageiros: “O serviço de bordo era cumprido conforme as normas… O único de que se poderia reclamar era da falta de um sorriso, de um gesto carinhoso, de um atenção afetuosa”.

E daí, naturalmente, o paralelismo com a Universidade, e as decepções que nos cercam. “A Academia precisa de professores, não de retransmissores. Queremos professores que mostrem e manifestem paixão, e não distanciamento pelo tema que estudam. Queremos professores que sejam de carne e osso, e não de plástico. Não queremos informação, queremos conhecimento. (..) A Universidade brasileira não está apenas sucateada, está engessada. Foi transformada numa máquina retransmissora de informações… Queremos uma Universidade que seja capaz de extrair de nós o que de melhor temos: a nossa vontade e sede de saber (…) A intolerância não nasce apenas do ódio, nasce de forma mais cruel e mais aterradora, da indiferença e do desprezo. Não é a Universidade que tem de mudar. É o seu corpo docente. E já”.

Evidentemente, a leitura desta decepção, tem o filtro peculiar dos departamentos de História, onde o autor milita. A descrição que faz é tão assustadora como real: “É preciso descontruir -diziam os professores. Mais do que desconstrução, os professores dedicavam-se sistematicamente a um consciente e constante labor de demolição. Primeiro os sentimentos. Um a um. Nem amizade, nem afeto, nem alegria (…) Roubavam-nos o entusiasmo em menos de um semestre. Depois, era a vez dos sonhos. Todos demolidos um a um. Não havia verdade, não havia beleza, não havia ideal. Tudo não passava de um mito. Pura mistificação (…..) E então, começava a última demolição. A do pensamento… Tudo o que tínhamos, tudo o que pensávamos, tudo o que produzíamos nos tinha sido implantado, como em Matrix, por “download” através de um programa de pensamentos já prontos”.

Infelizmente, estas decepções acadêmicas não são exclusivas dos departamentos de História. Em Medicina, camuflados talvez pela técnica crescente e sedutora, o resumo da ópera é o mesmo… Aquele que eu criticava antes de me fazerem as advertências. Como disse, o meu modo de pensar não mudou, penso que até tornou-se mais crítico. Se em História o autor censura a ditadura do pensamento único (da Matrix) em Medicina o formato é outro: a ditadura da mediocridade… Quando escrevo estas linhas temos quase 350 faculdades de medicina no pais, sendo que 250 foram abertas nos últimos 20 anos… Os Estados Unidos, por exemplo, tem pouco mais de 150. E os preços -das nossas também- são muito superiores às faculdades de humanas… É fácil tirar conclusões… Mas, não! Não vou falar mal, estou comentando um livro, quase esqueci!

Os leitores -do livro e das minhas linhas- podem dizer que somos mal agradecidos, que estamos cuspindo no prato que comemos. Na orelha final do livro, o Prof. Rafael toma a palavra e eu me limito a copiar assinando em baixo: “Gosto da universidade, porque acredito que é o lugar do diálogo, da pesquisa e do conhecimento e, precisamente por isso, porque me dói a Universidade quando vejo quão longe está de tudo isso”. E, uma luz de esperança, da qual tomei nota em alguma das páginas do livro: “É preciso que a Utopia deixe de ser um ponto futuro e se transforme num presente imediato. É preciso que se torne pessoal, íntima e interna (…) Não se trata de uma utopia coletiva, mas de um tornar real o projeto de homem que queremos ser”.

Não, não estamos cuspindo no prato que comemos. Simplesmente queremos o prato limpo. E pratos de qualidade, não de plástico, descartáveis, que surgem epidemicamente camuflados de aplicativos modernos e aulas em conexão rápida… e pensamento lento. Queremos a Universidade de volta. O verdadeiro gourmet acadêmico capaz de nutrir sonhos e projetos.

Comments 5

  1. Pois é meus Amigos de 44 anos , tenho orgulho dos dois como seres pensantes e que contribuíram para meu crescimento e compartilhamento espiritual sobretudo com meus filhos e esposa. Gratos aos Dois .
    Forte e afetuoso abraço.
    Ao Rafa minha admiração sempre.

  2. Nada a acrescentar. A decepção com o atual modus vivendi na Universidade é uma decepção, verdadeiramente frustrante, para um amante do ensino, da educação, não do treinamento e usabilidade tecnicista. É preciso revitalizar a utopia do idealismo universitário! Estancar a mediocridade humana e científica da Universidade de hoje.

  3. Parabéns Dr. Pablo!!
    Li o livro Intolerância, mas depois deste artigo pretendo ler novamente.
    É difícil ver e não criticar o que acontece nas nossas universidades e no ensino em geral. Quanta mediocridade!!

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