Jane Austen: “Mansfield Park”

Pablo González Blasco Livros Leave a Comment

Jane Austen: “Mansfield Park” Ed. Landmark. São Paulo, 2015 (bilingue) 482 pg.  (em português)

A introdução desta edição do romance de Jane Austen escalado para a Tertúlia Literária mensal, é importante para situar o contexto. Copio textualmente um par de parágrafos: “JANE AUSTEN (1775-1817), escritora inglesa proeminente, considerada geralmente como a segunda figura mais importante da literatura inglesa depois de Shakespeare. Ela representa o exemplo de escritora cuja vida protegida e recatada em nada reduziu a estatura e o dramatismo da sua ficção.  Uma das qualidades mais prezadas nos romances austenianos: princípios. Sem bons princípios para temperar a paixão, os resultados podem ser desastrosos, e de fato, Mansfield Park está repleto de adultério, traição e ruptura de amizades. Mas é também uma comédia dramática, com um final feliz e uma suave sátira aos costumes e maneiras da sociedade inglesa do início do século XIX, marcas intrínsecas de Jane Austen em seus romances (…) Então, por que Austen dedica um livro inteiro a uma personagem que, em muitas ocasiões, se comporta apenas como uma mera coadjuvante dentro de sua própria história?”

“Mansfield Park deve ser lido sem preconceitos ou suposições, que na verdade é um dos temas principais do livro. Quase todos em Mansfield passam ao longo de toda a trama fazendo suposições erradas sobre outras pessoas. De várias maneiras, Mansfield Park, a história tão complexamente criada por Jane Austen, torna-se a nossa própria história, quer gostemos ou não, soando um pouco como a própria vida de todos nós”

A coadjuvante, obviamente é Fanny Price, uma das heroínas clássicas dos romances de Austen. Isso me remete a uma ótima biografia da escritora,  onde se descreve o caráter das heroínas -que são todas variações dela mesma, de Austen e do modo de ver o mundo- e o realismo das personagens: “Os romances de Austen são romances de cortejo centrados em heroínas, e não manuais de conduta disfarçados de romances. Seus romances não são histórias nas quais a heroína se apaixona à primeira vista por um belo estranho que se transforma no marido ideal. O belo estranho (Willoughby, Wickham, Henry Crawford) acaba por ser uma aposta desastrosa”.

Situado o contexto e o tema principal -os princípios que devem reger a conduta- a empreitada é mesmo ler pausadamente, degustando, as páginas do romance. Relato lento, descritivo, onde por vezes investe-se um tempo enorme em detalhes que carecem de importância. Não deve o leitor irritar-se, e sim entender que esse passatempo inútil é o melhor modo de sintonizar com a frivolidade do ambiente no qual as personagens se movem. “Na verdade, havia tanta coisa a fazer, tantas pessoas a agradar, tantas exigências de bons personagens e, acima de tudo, tamanha necessidade de que a peça fosse ao mesmo tempo tragédia e comédia, que parecia haver pouca chance de uma decisão que satisfizesse a juventude, apesar do zelo com que buscavam (…) Creio que há coisas bem melhores, como sentarmo-nos confortavelmente aqui entre nós, sem nada a fazer (..) Dr. Grant está doente”, disse ela com solenidade simulada. “Está doente porque que não pôde comer seu faisão no jantar. Mas como já sabia que estava duro, enviou seu prato de volta e está sofrendo com isso desde então”

Esse ambiente superficial é incompatível com as necessidades humanas e, naturalmente, acaba sobrando para Fanny -uma meia irmã-empregada- atender o que realmente aflige as pessoas, algo que são incapazes de pronunciar “Sendo sempre uma ouvinte muito cortês, e com frequência a única ouvinte à mão, Fanny passou a ser o repositório das reclamações e aborrecimentos da maioria deles. Longe de se mostrarem satisfeitos e felizes, notou que todos queriam algo que não tinham, e isso ocasionava o descontentamento dos outros”. E justamente essa atitude -discordar do ambiente com a virtude, talento e postura- é o que atrai e seduz dessa personagem que vai se engrandecendo ao longo do romance: “Mas com você posso encontrar paz, Fanny. Você não se importa de não conversar. Vamos gozar a luxúria do silêncio”

As descrições do ambiente insubstancial da família Bertrand é o contexto permanente, cinza, que permite o destaque de quem possui alguma virtude, de quem sai da mesmice enjoativa. Algumas anotações de Austen permitem visualizar essa distração da própria existência: “Ninguém desejava ser indelicado, mas ninguém saiu de sua rotina para garantir o bem-estar dela (…) Ele entrava na vida, cheio de humor, com todas as disposições liberais próprias do filho mais velho que crê que nasceu apenas para gastar dinheiro e se divertir (…) Lady Bertram não gostou nada de seu marido deixá-la, mas não foi perturbada por qualquer preocupação quanto à sua segurança ou conforto, sendo uma dessas pessoas que acham que nada pode ser perigoso, difícil ou cansativo para ninguém, com exceção de si mesmas (…) Não se mostrava em público com suas filhas. Era indolente demais até para aceitar a felicidade de uma mãe em assistir o sucesso e o prazer delas à custa de qualquer sacrifício pessoal, e o fardo recaiu sobre sua irmã, que não desejava nada melhor que um posto de tão honrada representação, e cuidadosamente saboreava os meios que lhe permitiam mesclar-se à sociedade sem precisar alugar cavalos. Considerava qualquer exercício tão desnecessário para todas as pessoas quanto era desagradável para ela, e Mrs. Norris, que caminhava o dia todo, achava que todos deveriam caminhar tanto quanto ela”

Outra coadjuvante fatal é Mrs. Norris, a irmã agregada dos Bertram, de um caráter tão insuportável, como magnificamente descrito: “Mrs. Norris não tinha nenhuma afeição por Fanny e nenhum desejo de lhe proporcionar qualquer prazer em qualquer ocasião. Quanto às andanças, conversas ou planejamentos, ela era perfeitamente benevolente e ninguém sabia melhor como impor liberalidade aos outros; mas seu amor pelo dinheiro equiparava-se ao seu amor por ditar ordens, e ela sabia perfeitamente bem como proteger o seu patrimônio e gastar o de seus amigos”.

Neste ambiente órfão de virtude, o caráter e a tempera de Fanny vai se engrandecendo. Entende o seu papel e a escritora faz questão de mostrar: “Não pretendo consertar as pessoas, mas consigo ver que muitas vezes estão erradas (..) Um homem bem educado; descreve sempre o lado positivo do assunto (..) Sempre se deve perdoar o egoísmo porque para ele não há qualquer esperança de cura”. Um contraste permanente com as outras personagens femininas, presas de uma superficialidade doentia: “Aquela era a única semelhança entre ela e a moça que se sentava ao seu lado: em tudo Miss Crawford era diferente dela, exceto na consideração por Edmund. Mas não possuía a delicadeza de Fanny quanto ao gosto, à mente e aos sentimentos. Via a natureza inanimada sem observá-la; sua atenção se voltava apenas para os homens e as mulheres; seus talentos só se interessavam pelo supérfluo e o exuberante (…) Estava tão desacostumada a ser consultada quanto às suas preferências ou quanto a qualquer coisa que ela pudesse desejar, que se sentia mais disposta a ficar feliz com o que conseguira até aquele momento do que a se aborrecer com uma pequena contrariedade. O que Fanny sentia como tranquilidade e conforto, para Mary não passava de tédio e tormento, algo que se explicava pela diferença de temperamentos e de hábito: uma tão fácil de satisfazer, a outra tão pouco acostumada a sofrer (…) Ela precisava cumprir seu dever e esperar que o tempo tornasse tudo mais fácil”.

Contraste que destaca pelos traços imensamente femininos, algo tão próprio de Austen: “O entusiasmo de uma mulher apaixonada é ainda maior que o do biógrafo. Para ela, a própria caligrafia é uma bênção, independente da mensagem (…) Tenho certeza de que ele não pensa em assuntos sérios como deveria.  Como podia ter esses sentimentos à disposição, no momento em que ele os solicitasse? Não posso pensar bem de um homem que brinca com os sentimentos de uma mulher, pois muitas vezes há muito mais sofrimento do que um observador pode imaginar (…) Provavelmente não existe uma única moça no Reino Unido que não prefira a desgraça de ser desejada por um homem”.

Mas o saldo da frivolidade não é apenas a perda de tempo e a superficialidade que envolve cada uma das personagens. O grande tema é carência absoluta de princípios, de virtude, tema que ninguém se preocupou em fomentar. E, como é lógico, sobrevêm as surpresas nada agradáveis, as tragédias que foram se forjando com a omissão persistente nas virtudes: “ Viu claramente que ampliara o mal ensinando suas filhas a reprimir o espírito em sua presença, a ponto de não conseguir reconhecer seu caráter real e entregá-las à satisfação de todos os seus desejos, a uma pessoa que fora capaz de atraí-las apenas pela cegueira de sua afeição e pelo excesso de lisonja. Seus cuidados haviam sido dirigidos à instrução e às boas maneiras, não ao caráter. Seus defeitos não são de temperamento. Seus defeitos são ligados à falta de princípios. Falta-lhes o conhecimento mais valioso que qualquer pessoa pode ter – o conhecimento de nós mesmos e de nosso dever às lições da aflição. Eram admiravelmente instruídas em tudo, exceto no caráter”.

E neste ponto, lembrei de um magnífico comentário de Ortega na sua Meditação do povo jovem e outros ensaios sobre América, quando explica através de um curioso modelo o crescimento da ética, ou a carência dela. Ortega diz que é um erro pensar que a personalidade humana se forma a partir de um núcleo central bem constituído, que vai se engrossando com o tempo para constituir a figura social, o que interage com os outros. A verdade -diz o filósofo espanhol- é justamente o contrário. O que o homem recebe primeiro é justamente o exterior, as formas sociais de convivência, o modo de se relacionar, as boas maneiras. Mas o interior está ainda vazio, é como uma esfera oca, que o tempo, esforço e virtude devem ir preenchendo. Quando existe apenas o exterior -as formas- e a pressão do ambiente, as circunstancias, exigem um peso e densidade maior, se não se “engrossou” o interior da esfera da personalidade com virtude, ela quebra. Funciona-se com uma ética de formas, mas quando se carece da ética interior -porque não se construiu- a esfera, a pessoa, se desfaz diante de uma pressão maior, que exigiria uma densidade maciça. Tudo o que sai do corrente, do previsto, é simplesmente insuportável para um homem superficial, revestido de formas, mas carente de ética interior, de virtude.

Essa explicação filosófica encaixa perfeitamente com os “desastres” que observamos nos romances de Jane Austen…. e na vida diária. Sustos e surpresas desagradáveis em pessoas que aparentemente funcionavam bem. Sim, funcionavam, enquanto a pressão era corriqueira. Mas “quando o bicho pega” -Austen e Ortega que me perdoem a vulgaridade- não são capazes de encaixar o golpe, quebram.

E algum parentesco tem isto, com outra observação de Ortega, justamente  a propósito dos ingleses que mantém uma observância litúrgica nas formas e costumes. Se deixam de fazer -se suspendem o chá das cinco, por exemplo- voltam a ser o que sua origem entranha: normandos, bárbaros, que sem normas se tornam Hooligans que destroçam estádios. Não sei o que Austen pensaria desta observação mas suspeito que estaria de acordo, haja visto o que escreve nos seus romances. Degustar Mansfield Park e refletir sobre a densidade ética que, quando carente, leva a desastres previsíveis. E concluir com a protagonista -não mais coadjuvante- que “não existe nada melhor que o trabalho, trabalho ativo e indispensável para aliviar o sofrimento. Qualquer ocupação, mesmo a mais triste, pode dissipar a melancolia”. E a pergunta que Austen formula uma vez e outra nas suas obras: “Fanny, onde podemos encontrar uma mulher cuja natureza tenha sido tão ricamente dotada?”. Desse universo feminino, muito tem a dizer Ortega também no seu admirável Ensaios sobre o amor. Mas isso é conversa para outro momento.

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