Crise: Integridade, verdade… afinal, qual é o seu preço?

Pablo González BlascoFilmes 1 Comments

(Crisis) Diretor: Nicholas Jarecki. Gary Oldman,  Evangeline Lilly, Armie Hammer.  USA. 2021. 1 h 58 min

Assisti este filme há mais de 1 ano. E, tal como o protagonista -um Gary Oldman magnífico- o dever de escrever rondava minha cabeça ao longo deste tempo. Assisti de novo, agora com um grupo de amigos, e comprovei o que já tinha suspeitado na primeira vez. Um filme necessário, que toca em vários registros -a modo de sinfonia, nem sempre agradável- o tema central e suas variações: os medicamentos analgésicos de última geração -também transformações sofisticadas dos opiáceos- que podem ajudar a alguns e, quando fora de controle, são a perdição de muitos.

As variações que discorrem pelo mundo do crime, e que conferem ao filme a ação necessária, não captaram minha atenção. Bandidos e traficantes de um lado, famílias sofrendo do outro; vingança e acordos espúrios enquanto a força pública se esforça por desarticular as redes dos delinquentes. Um tema batido -infelizmente real e frequente- que tem sido apresentado no cinema inúmeras vezes. Pelo menos desde aquela inesquecível Operação França, da década de 70, que atesouro na minha lembrança.

Foi a outra variação, a da competência profissional do cientista que hesita em aprovar o novo medicamento como inócuo em termos de causar dependência, a que esteve rondado a minha cabeça, e a de Dr. Tyrone Brower (Gary Oldman). Mais do que competência -que tinha, sem dúvida- o que mexeu comigo -e com o grupo de amigos que assistiram na segunda edição- foi a integridade do pesquisador, seu amor incondicional pela verdade.

E, ai sim, as reflexões dispararam em cachoeira imparável. Afinal, não se trata apenas um excesso de zelo, uma exigência caprichosa que pode impedir o benefício dos pacientes? Por que se opor a isto? Apenas porque alguns podem fazer uso indevido de um recurso bom, para finalidades espúrias? As palavras da criatura conversando com Frankenstein, acudiram também à minha memória: “Alguma vez você pensou nas consequências das suas ações?”. Esse diálogo é, no meu modo de ver, uma das melhores aulas de bioética apresentada no cinema.

Confesso que na minha atividade profissional como médico, não tenho que me deparar com dilemas dessa envergadura, nem enfrentar lutas com laboratórios poderosos e agencias reguladoras que, como bem apresentado na produção, estão todos alinhados. Não porque concordem numa solução final única, mas porque o alinhamento consiste em cada um puxar a brasa para sua sardinha, olhando o próprio umbigo.

Mas sem chegar a essas dimensões, é possível vivenciar no quotidiano dos médicos, dilemas análogos que, sem fazer o mesmo barulho, nem dar lugar para o crime organizado (oficialmente falando, porque o espectro do crime é amplo), desafiam a integridade profissional.

O modo de conduzir os casos de cada paciente é, com imensa frequência, monopolizado pelo sistema. Um sistema onde quem comanda o espetáculo e dá as cartas, é quem distribui os lucros, obviamente após deduzir os polpudos benefícios próprios. Eu costumo chamar, “os donos do taxímetro”, que uma vez ligado ninguém consegue -nem se atreve- a desligar. Daí vemos internações que se prolongam sem nenhuma necessidade, solicitação de exames sem critério científico, encaminhamentos do paciente de um lado para outro (especialistas em atividade de Ping-Pong), e por ai afora. E se alguém ousa, baseado na sua criteriosa avaliação, tentar desligar o “taxímetro” quem costuma ser desligado é o profissional.

Falo com propriedade porque tenho atravessado esta situação não poucas vezes. Mas, afinal, poderiam me perguntar: por que opor-se ao sistema se, bem ou mal, acaba resolvendo? Por que insistir -palavras textuais que alguém me dirigiu em certa ocasião- em imitar aquele fidalgo da sua terra, D. Quixote? Obviamente, nesta altura da vida profissional, nem gasto mais saliva tentando explicar minha atitude porque tenho sérias dúvidas da capacidade de compreensão do possível interlocutor. Não por maldade, mas apenas porque diferimos nas categorias morais. E nesse ponto, a fluência do diálogo é metafisicamente impossível.

Apena-me sim, não sem pouco receio, este cenário onde os jovens profissionais estão sendo formados, ….ou melhor, deformados. Afinal, dizem -ou pensam, porque cada vez se escuta menos argumentos que apoiem as motivações- tenho que sobreviver, não é verdade? O sistema funciona assim, não estou fazendo nada errado, apenas deixo o barco (o taxímetro?) correr. Tenho que cuidar do meu quintal, que há de equivocado nisso? Impossível não escutar a voz de Schindler  quando, elogiado pela sua façanha que salvou milhares de vidas, chora desconsoladamente porque “eu poderia ter feito mais”. A dor da omissão, do bem que se poderia ter feito (que ninguém te cobra, pois afinal, você fez mais do que a média) e não se fez. O tempo se encarregará de cobrar os tributos do taxímetro.

Voltamos ao filme na cena em que Tyrone Brower tem diante dele um cheque de valor enorme, ao seu nome. “Como o cheque está ao meu nome? Não seria para pesquisa?” – E os donos do circo, taxímetro correndo, respondem com um sorriso: “Você pode endossar a quem você quiser. Fica ao seu critério”. Gary Oldman sorri, e sabe que abrir mão do cheque, é abrir mão do futuro profissional, da segurança da sua família, do seu curriculum e prestígio que é ameaçado. Penso que, nesse momento, ele olha para mim, para nós, para cada um que teve paciência de ler este comentário até o final, e nos pergunta: “Afinal, qual é o teu preço?”. A resposta, silenciosa de cada um, ecoará ao longo da vida, como as consequências das ações de Viktor Frankenstein, como as lágrimas que a dor da omissão provocam em Oscar Schindler. Lágrimas corrosivas provocadas pelo bem que poderia ser feito, e não foi.

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