G. K. Chesterton: “O Segredo do Padre Brown”

Pablo González Blasco Livros Leave a Comment

Publicações Europa-América. Portugal, 192 págs.

A Tertúlia Literária deste mês de Dezembro, nos preâmbulos do Natal, leva-nos até Chesterton, o homem que sabia dizer grandes verdades, sem perder a compostura e a elegância. E, com Chesterton, uma das suas personagens preferidas para dar esses recados: o Padre Brown. Vale lembrar antes a trajetória pessoal de G. K. Chesterton, seu itinerário de conversão, já comentado antes neste espaço, num livro excelente.

O livro atual é o quarto de uma série de entregas onde o protagonista é interrogado a propósito de seu método de investigação para desvendar os crimes que outros não conseguiram elucidar. Seu interlocutor é um antigo delinquente, convertido para o lado bom da vida. Um homem curioso a quem “a carreira do crime tornara-o, segundo alguns, escrupuloso demais para se dedicar à investigação”, que diz ao Pe. Brown, de cara: “Tem-se especulado sobre se essa diferença de método não seria antes uma ausência de método”.

Vale dizer que o tal método -o segredo do Padre Brown- é simples: colocar-se no lugar do bandido, quer dizer, entender que o bandido fez o que qualquer um de nós poderia fazer. Algo simples de enunciar, mas na prática uma postura que a maioria dos mortais reputa como impossível, como aponta o protagonista: “Vocês todos são pessoas muito importantes e seguras, não seriam capazes, dizem a si mesmos, de cair tão baixo. Mas digam-me uma coisa: se algum de vocês tivesse caído teria coragem de um dia, já velho, rico, bem instalado na vida, de contar sua história, levado por sua própria consciência ou aconselhado por um confessor? Vocês se consideram incapazes de um crime tão baixo. Mas, tendo cometido, seriam capazes de confessá-lo?”.  E continua descortinando a cegueira moral do ser humano: “Por vezes há coisas que estão tão perto de nós que nem sequer damos por elas. Como aquela história do homem que tinha uma mosca dentro do olho no momento em que estava a espreitar por um telescópio e declarou imediatamente que havia um dragão enorme na lua. E, segundo ouvi dizer, se ouvirmos a reprodução exata da nossa própria voz, ela soa-nos como se pertencesse a um estranho”. Um recado com sabor bíblico, a trave no próprio olho e a palha no olho de outrem.

Vários dos casos desvendados pelo Pe. Brown compõem o livro, a modo de exemplos para mostrar o seu método, o tal segredo. Obviamente a ironia e o humor inglês do escritor faz continuo ato de presença. Vale anotar alguns exemplos: “Aquele sujeito do banco, quanto a mim, tem uma pele muito amarela para ser inglês (….) No Oriente comunicamos através do pensamento e por isso nunca há mal-entendidos. É estranho como todos vocês adoram palavras e se satisfazem com elas (…) Há muitos homens descuidados que passam a vida a dizer que se deve fazer determinada coisa, sem no entanto tomarem medidas nesse sentido. No entanto, se disser a uma mulher que há algo a fazer, há sempre o perigo de ela vir a fazê-lo quando menos se espera (…) O padre Brown fitou a senhora e sentiu que a chegada da sobrinha constituiria um agradável contraste. Não obstante, continuou a olhá-la até chegar ao ponto de experimentar a sensação de que a chegada de qualquer um seria um agradável contraste”.

O humor de Chesterton entra também na área religiosa, defende a sua fé, sem mostrar-se agressivo ou incomodado com outras confissões. Alguns diálogos são magníficos, verdades contundentes embrulhadas em humor:

— O padre Brown é um filisteu — comentou Smith, sorridente.

— Tenho simpatia pela tribo — admitiu o sacerdote. — Um filisteu é apenas um homem que tem razão sem saber porquê (…)

— Se assim for — retorquiu o general —, não vejo por que o senhor vem me falar disso. Devo lhe dizer que sou protestante convicto.

— Aprecio muito os protestantes convictos — disse o padre Brown. — Vim vê-lo porque tenho certeza de que o senhor contaria a verdade (…)

— Padres querem sempre meter o nariz em casos especiais — resmungou Sir John — Não sabe a minha amiga que são como os ratos que vivem no forro das casas, procurando sempre se introduzir em nossos próprios quartos?

Aí está — disse secamente o Padre Brown — a grande diferença entre a caridade humana e a caridade cristã. Devem me perdoar por não me deixar esmagar por seu desprezo desta manhã em relação a minha falta de caridade cristã e pelos sermões que me fizeram sobre o perdão devido aos pecadores. Acho que vocês só perdoam os pecados que não consideram pecados. Perdoam os criminosos quando eles cometem delitos que vocês não consideram crimes, mas convenções. Por isso, toleram um duelo convencional ou um divórcio convencional. Perdoam quando não há nada a perdoar”.

Mas foi a capacidade de escutar do Padre Brown, a maior surpresa que emergiu na tertúlia. A capacidade de ouvir até o final, sem querer dar respostas ou soluções precipitadas. Uma virtude que todos invejamos, e da qual estamos tão distantes. A força dos silêncios, a sua eficácia. Anota Chesterton: “O padre Brown olhava agora para o vazio, com um ar inexpressivo, quase idiota. Sempre assim fora: quando parecia mais idiota era sinal de que estava a ser mais inteligente(…) O padre, no entanto, não pareceu muito chocado. Já era habitual nele mostrar-se inexpressivo (…) Nunca se importava em saber se suas atitudes eram ou não ridículas, e nem ligava para isso”.

Escuta e reflexão, embrulhados em silêncio, que lhe permite aprofundar na condição humana. “É precisamente dessas pessoas que é preciso desconfiar, daquelas que esquecemos com facilidade — avisou o amigo —, são precisamente elas que nos colocam em desvantagem (…) As pessoas que se lamentam não passam de uns pobres diabos que nos incomodam. Com essas não se preocupe. Mas as que se queixam de nunca se lamentarem, essas são o diabo (…) A Idade das Trevas tentou criar uma ciência das pessoas que praticavam o bem. Em contrapartida, a nossa era, tão humanitária e esclarecida, só se mostra interessada na ciência dos que se dedicam ao mal. No entanto, penso que a experiência nos ensina que todas as espécies concebíveis de homens têm sido santos e desconfio que igualmente se verificará que todas as espécies concebíveis de homens têm sido assassinos”.

Em conclusão, esse é o grande recado que Chesterton nos transmite através da simpática personagem: a realidade da condição humana, e necessidade do conhecimento próprio para entender que, todos, somos capazes de produzir os maiores desastres. Algo que me fez lembrar da “Banalidade do Mal” em Hannah Arendt: não são os seres demoníacos os que produzem tragédias, mas os homens comuns quando deixam de refletir, quando não se conhecem na sua intimidade.

Tudo isso, com grande elegância, o resume o Padre Brown em alguns parágrafos memoráveis, desvendando assim o seu segredo. “Um homem só pode se considerar realmente bom quando descobrir até que ponto é mau ou pode vir a sê-lo, até perceber exatamente que direito tem de se mostrar arrogante e desdenhoso e de se referir aos “criminosos” como se fossem gorilas numa floresta a dez mil quilômetros de distância, até se libertar do infame convencimento com que fala de tipos de baixo nível e mentes débeis, até espremer da sua alma a última gota do óleo dos fariseus, até a sua única esperança consistir em ter capturado um criminoso, conservando-o são e salvo, sob sua alçada”.

Quer dizer: o criminoso é igual a mim, posso ser eu, porque somos da mesma espécie e condição. Por isso consigo me colocar no seu lugar e elucidar o aparente mistério. “É certo — prosseguiu o padre Brown após uma pausa — que outros tinham desempenhado esse papel antes de mim e me transmitido a experiência. Eu era uma espécie de ator suplente, sempre a postos para desempenhar o papel do assassino. E tinha a preocupação de estudar a fundo o meu papel. O que pretendo dizer é que, sempre que eu tentava imaginar o estado de espírito em que fora cometido certo ato, chegava à conclusão de que eu mesmo poderia tê-lo cometido em determinadas condições. E então, claro, percebia logo quem tinha sido o autor. De um modo geral, nunca era a pessoa de quem se desconfiava (…) Vocês podem considerar que um crime é horrível porque nunca seriam capazes de cometê-lo. Eu penso que ele é horrível porque eu também poderia cometê-lo”.

O interlocutor tenta ainda uma saída, porque o método do padre Brown parece-lhe excessivamente comprometedor, implica o próprio investigador, o questiona sobre a sua estatura moral: “Não lhe parece — exclamou de repente — que essa ideia que defende, de nos colocarmos na pele do criminoso, pode nos levar a uma excessiva tolerância ao crime? O padre Brown se sentou e começou a falar mais pausadamente: — Tenho certeza de que produz precisamente o efeito contrário. Vem resolver todo o problema do tempo e do pecado. Produz no homem o remorso antecipado”. E ainda esclarece, a modo de fechamento, um recado que é uma verdadeira carga de profundidade: “O homem mundano, que de fato só vive para este mundo e não acredita que haja outro, para quem os êxitos mundanos e os prazeres representam o que ele pode extrair do nada, esse homem será capaz de tudo se um dia se vir em perigo de perder esse mundo e ficar de mãos vazias”. Traduzindo para o nosso quotidiano: será que eu, nas condições que aquele perpetrou o crime, faria diferente? A vertigem que esse exame de consciência produz é de imensa fecundidade: leva ao conhecimento próprio, à compreensão com os outros, engrandece a nossa capacidade de escutar. Esses são, entre outros, os objetivos de Chesterton personificados no Padre Brown.

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