Um herói: Honra e Integridade perante a indiferença.

Pablo González BlascoFilmes 3 Comments

Ghahreman – Irán, 2021 Diretor: Asghar Farhadi. Amir Jadidi, Abolfazl Ebrahimi, Mohsen Tanabandeh, Sarina Farhadi, Fereshteh Sadrorafaei 127 min.

Devo confessar que o estímulo para assistir este filme foi o nome do diretor, Asghar Farhadi. Não porque eu tenha uma especial sensibilidade pelo cinema do oriente médio, mas porque já comprovei que o diretor iraniano sempre faz filmes sérios, que aprofundam e tocam a sensibilidade ocidental -a minha, sem dúvida- e imagino que também a oriental. E tudo sem perder a elegância, a classe, sem apelações, convidando o espectador a ler nas entrelinhas, sem desdobrar-se em palavreado inútil, ou em reações histriónicas, sendo seus dramas de inegável profundidade.

Deste modo Farhadi consegue pilotar atores franceses misturados com os iranianos, como em O Passado; constrói dramas de fundo oriental mas com valores universais como em A Separação, e até comanda um elenco de atores espanhóis -todos fetiche de Almodóvar, quem diria- para entregar aquele drama superior, Todos já sabem. Enfim, um diretor que prestigia suas raízes mas consegue atingir o público ocidental, e até com um cruzado de esquerda, porque te faz pensar.

Um herói, é um filme aparentemente sem pretensões. Ou melhor, um micro drama familiar que, imagino, deve ser situação não incomum na sociedade iraniana. Um homem preso porque não consegue pagar a dívida. O credor tem suas razões -afinal, cadê o dinheiro que ele me deve? – e o presidiário tem as suas, e os seus sonhos. O protagonista, Soltani, tem  também um filho, doce, gago, esforçado que é um recurso delicado com o qual o diretor conecta com a compaixão ocidental. “Não quero me projetar nem instrumentalizar a gagueira do meu filho” -diz ele a certa altura.

Assisti o filme em voo solo, e senti que muita coisa ficava no ar. Voltei a assistir, agora com um seleto grupo de amigos cinéfilos, para checar se a minha suspeita -aquilo que estava no ar- erra correta. Acertei. Tem desdobramentos que, sempre, se manifestam no dia seguinte, através de comentários, a modo de glossas sobre o argumento. “Um homem -escutei- que tenta insistentemente fazer o correto, e quanto mais se empenha em ser honesto, menos é compreendido”. Um golpe contundente que me fez evocar outros filmes, e algumas leituras. Porque a arte é assim, transitiva. Necessariamente se conecta nas ideias de fundo, com os recursos que nos apresenta para esclarecer a vida, para tornar a condição humana transparente.

Lembrei de outro filme que assisti recentemente, Crise,  que também aborda o preço amargo da integridade. Recordei um livro que lemos este ano na Tertúlia literária, Um tambor diferente, a história de um homem que não negocia com os seus valores. E, minha última leitura, Michael Kohlhaas, outra história onde se busca a justiça, e somente se encontra indiferença e maquiagens jurídicas que acabam prejudicando o homem que deseja a honestidade como pauta de vida. Depois dessa última leitura, decidi voltar sobre o filme de Farhadi e escrever.

Tudo corre de modo muito natural, e ao mesmo tempo, muito torto para o protagonista que busca mudar a situação. Planos e projetos, carinho familiar, amor pelo filho, a ajuda de uma mulher que pretende ser a futura esposa. “Você tem um coração de ouro” -diz ela. “Amanhã -responde Soltani- estarei de volta à prisão e com saudades de você”. Novas tentativas de negociação, todas lógicas e saturadas de virtude, que acabam entortando. Quanto maior o esforço, menor é a compreensão, e os que apostavam nele, acabam deixando o barco quando percebem que começou a afundar. “Não quero o dinheiro. Quero somente a minha honra”. Uma frase que poderia ser de efeito, não fosse as consequências de manter a honra, no calabouço.

Não é costume nestas linhas deter-se no argumento do filme, e sim nas reflexões que provoca. Agora não é exceção; apenas dando um zoom no desenrolar da trama que, como disse, é bastante corriqueira, mas transpira heroísmo, daí o título.

Mas, qual é o efeito que o desenrolar da trama causa no espectador? Difícil encontrar uma pauta, já que as respostas serão muitas, variadas, em amplo espectro. Haverá revoltas, haverá quem encontrará aqui a justificativa para tomar a justiça pelas próprias mãos -visto que o modo sensato de consegui-la não leva a parte alguma. Outros, talvez, sentir-se-ão deprimidos, entendendo que a incompreensão do mundo perante os bons desejos é sempre cruel, acaba em tragédia. O mundo cão, tão levado e trazido.

Talvez haja quem pense ser isto tema distante, do oriente médio, da Pérsia que tecia tapetes preciosos na antiguidade, e tinha governantes sublimes. Ingenuidade simplória do ocidental urbano que desconhece a condição humana. O professor Ratzinger, o Papa Emérito Bento XVI recentemente falecido, intelectual cuja talha imensa ainda estamos por apreciar, dizia que vivíamos tempos da ditadura do relativismo. Eu, sem querer me comparar, guardando as distâncias de anos luz com a sua inteligência, me atreveria a dizer que também vivemos tempos da ditadura da mediocridade, da superficialidade, terreno onde o ocidental urbano se movimenta confortavelmente, pensando que o mundo –a vida como ela é  que diria o nosso Nelson Rodrigues- se reflete na suas redes sociais, assépticas, confortáveis, à la carte…..

O que me provocou o filme, em dupla sessão, meditada, pensada, apoiada por leituras e pensamentos? É disso que posso falar, pois afinal, é a única reação que posso avaliar com propriedade. Uma mistura de realismo com inveja saudável. Essa inveja, boa, que os clássico chamam de emulação. O realismo de saber que a vida não é como a sonhamos, mas como nos chega -como nos é disparada a queima-roupa, que dizia Ortega- e, no final, o que fazemos com ela quando cai no nosso colo, como afirmava Fernando Pessoa. E a emulação, a inveja sadia, de responder a essa vida que nos é disparada, com integridade, privilegiando a honra. Lembrei -novos arcos voltaicos da cultura que vamos acumulando- daqueles versos de Calderón de la Barca, um dos imensos expoentes teatrais do século XVII espanhol: “A honra e patrimônio da alma, e a alma é somente de Deus”.

Pode parecer delírio juntar dramaturgos, com filósofos e poetas, no Irã,   algo que corre por conta do espectador. Mas essa é a magia da arte, o peso da cultura refletida e assimilada. Tudo, obviamente, facilitado pelo cinema de Asghar Farhadi que nunca te deixa indiferente.

Comments 3

  1. Deus nos propõe uma série de situações ao longo do dia. Cabe a nós dar as respostas à elas. E quanto mais rica for a alma, mais adequadas elas serão. E, como a “alma é de Deus” , quanto mais em Deus, mais corretas serão e mais grandioso o homem!

  2. Lindas histórias.
    Lembrei dessa frase, onde Rui Barbosa dizia; um dia as pessoas iriam sentir vergonha de ser honestos, essa hora chegou. Nosso Brasil afundando nas mães de pessoas desonestas, é aí que faço a pergunta, tanto sacrifício para se manter íntegro, justo, honesto e principalme se manter firme na fé. Será que valeu apena? Um povo que pensa, minha mesa tá farta o resto que se dane, onde se encaixa essa frase, amai uns ao outros como eu vos amei? Pois é, povo covarde, povo sem fé. Enquanto isso o comunismo correndo solto e as poucas pessoas que tem poder de mudar tudo isso se corrompendo na calada da noite. Gravem essa mensagem, chegará em breve o dia, em que as pessoas terão dinheiro mas não conseguirá comprar um prato de comida. Que tal asistir Dr: Givago?

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