O PRÍNCIPE DAS MARÉS

Pablo González BlascoFilmes Leave a Comment

O PRÍNCIPE DAS MARÉS (The Prince of Tides) . Diretor:  Barbra Streisand . Nick Nolte, Barbra Streisand. USA 1991 132 min.

Neuroses e complexos estão na ordem do dia. Hoje, quem sabe mais do que nunca, porque carecemos de uma das melhores profilaxias: falar dos sentimentos, abrir o coração sabendo que alguém nos escuta e nos compreende. Não mudou a necessidade: mas hoje faltam “ouvidores”, e os poucos que há, esforçam-se o mínimo por compreender. Poucos são os privilegiados que têm quem lhes escute as mágoas com paciência, com um sorriso animador e aconchegante, ponto de partida para as correções necessárias.

As indigestões da vida requerem sua válvula de escape. A água parada fatalmente apodrece. Passar batido por emoções mal assimiladas -formigueiro de dúvidas e medos- sem ventilá-las, é perigosa bomba relógio. Algo assim como colocar uma rolha num vulcão, e viver num “faz de conta”, enquanto nas entranhas da personalidade vai se elaborando em silenciosa gestação o estouro inevitável. Erupção que será violenta ou muda mas, de qualquer modo, mutiladora. Essa costuma ser a origem dos traumas psíquicos que existem e se fazem notar, com maior ou menor virulência.

Barbra Streisand, atriz e diretora do filme, coloca a temática com felicidade, numa produção plasticamente bonita e de grande qualidade cinematográfica. Ajuda, sem dúvida, a interpretação muito acima da média de Nick Nolte. O príncipe das marés é uma obra bem trabalhada, cuidadosa nos detalhes, bom cinema. Sabe pôr à mostra o mundo interior do ser humano, com suas misérias e riquezas, sofrimentos e alegrias. Assim de complexo é o homem e confusos são os seus sentimentos. Somente as personagens de plástico -dessas que o cinema atual produz em série- carecem de problemas, porque não possuem interioridade, são ocos.

Ensinamento claro do filme é que a distância profissional é garantia de eficácia. Quando se descuida, os interesses confundem-se e, mais do que prestar um serviço acaba se atrapalhando. Já dizia alguém -talvez um professor ignorado, desses que destilam sabedoria sem assinar direitos autorais, cedendo-a para o saber popular-  que o bom profissional, no caso o bom médico-psiquiatra tem de ser como a calçadeira. Quer dizer: deve ajudar o paciente a colocar o pé dele no próprio sapato. O que não pode  ser feito e emprestar nosso sapato para o paciente,  ou, pior ainda, colocar o nosso pé no sapato dele que está “carente”. Calçadeira que é elemento de transição: facilita a operação e, depois, retira-se discretamente, sem deixar vestígios; quando muito, agradecimento. Boa didática esta da calçadeira, que não sendo modelo de elegância, é absolutamente diáfana.

Essa mesma distância atua como um bom separador de águas, conseguindo o que é tão sabido: que o médico doente pode curar um paciente que padece da mesma moléstia. E mais ainda, extensivo a todos: que ocupar-se dos problemas dos outros é bálsamo eficaz para minimizar os próprios. Afinal, a porta da felicidade abre-se para fora, para os demais, e pretender abri-la para dentro -meter-se em si mesmo- é fechá-la mais ainda. Palavras de Kierkegaard, filósofo existencialista, lampejos de excelente senso comum.

Não são simples os sentimentos humanos. Nem simples, nem puros: é preciso um verdadeiro garimpo para separar a amálgama em que se apresentam na vida, nas cargas afetivas. Definitivamente, não somos clichês de livro de psicologia. A tristeza, quando domina, não costuma vir sozinha. Traz consigo um pedido desesperado de ajuda, e, como todas as fraquezas do homem, nem sempre sabe procurá-la pelos meios recomendáveis. É mais um recado do filme que, neste ponto, perde pulso e da ocasião a algumas concessões de cenas fortes, até incômodas. Um desejo, talvez, de mostrar a força da paixão quando os sentimentos se confundem? Poderia ter se recorrido à elipse para manter a elegância que está presente em todo o filme. De qualquer forma e apesar do ônus que poderia ser nos poupado, serve para lembrar que, na vida, “as coisas acontecem assim”, e não de outro modo. Tristeza, ajuda, sentimentos dúbios, consolo, infidelidade.

Os recados do filmes são esses. E, contudo, não é uma apologia deslavada da Psicoterapia. É melhor prevenir do que curar; é preferível, por não dizer necessário, ventilar, arejar, compreender, desculpar, ouvir em primeiro lugar. “Não existem faltas imperdoáveis em família… Afinal, devemos aprender a querer a todos com os seus defeitos”. Não é tarefa desprezível, nem cômoda. Requer adiantar-se, conhecer o interesse dos outros, intuir as necessidades afetivas, ser ponto de apoio e confiança. Requer um bom ouvidor.

Um filme que mostra valores, arsenal necessário para enfrentar os problemas que fatalmente surgem. E mostra também que é preciso virtude -e muita- para que os divisores de águas dos sentimentos se mantenham firmes, com norte claro. Um filme que alerta para questões do dia a dia e requer saber ler nas entrelinhas. Casos do dia a dia e não exceções nem casos patológicos: essa postura -a de ouvinte surdo- é, de per si, geradora de problemas futuros, manufatura de bombas relógio.

O filme não pretende resolver problemas, apenas avisar. Mas afinal, como todos devemos lidar com os sentimentos – próprios e alheios-  O príncipe das marés se constitui numa lição eficaz de vida, num estímulo para, com afinco, estarmos sempre atentos às necessidades afetivas dos que nos rodeiam. E quando existe bom senso, os valores afloram como no final, em reconhecimento verdadeiro: “Isso é o que eu gosto em você. Que você é do tipo que sempre volta para a família”. Ter família, saber-se querido, compreendido, desculpado: uma das maiores conquistas de que alguém pode se orgulhar nestes tempos de marés que arrastam as almas para a solidão, para o desespero.

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