OS  ÚLTIMOS PASSOS DE UM HOMEM

Pablo González Blasco Filmes Leave a Comment

OS  ÚLTIMOS PASSOS DE UM HOMEM (Dead Man Walking) Diretor: Tim Robbins. Susan Sarandon, Sean Penn, Robert Presky, Raymond T. Barry, Celis Western. USA 1995. 120 min.

Tim Robbins assume o comando na direção e coloca sua mulher -Susan Sarandon- no corredor da morte para conquistar o Oscar de melhor atriz. Susan, metamorfoseada em freira, quer ser o contraponto de esperança lá onde a palavra de ordem é uma só: “homem morto caminhando”. Tarefa difícil que não admite ação nem soluções espetaculares, pois o destino é iniludível. Não há, no filme, compromisso com cinema denuncia nem com posturas revisionistas; ou, se existem, são naturalmente deslocadas pelo volume da trama, que gravita em órbitas mais profundas. São cartas marcadas, descobertas, que abortam desde o início qualquer tentativa de virada aventureira. Sobra pouco espaço para agir. Apenas resta -eis o miolo da fita- trabalho de faxina, nos bastidores da alma.

            Por isso o prêmio de Susan é um reconhecimento de expressão mais do que interpretação. São sempre primeiros planos, e o mérito da atriz corre por conta da expressividade: olhos, boca, sorrisos, gestos quase imperceptíveis. A frio, sem trilha sonora, da qual somente se permite a entrada, a modo de intermezzo, fora do ápice do clímax.

            Um filme bom, denso, quase indigesto. Concentrado de valores, atitudes em estado puro, geografia da alma, agreste, selvagem. Um excelente filé sem guarnição, nu de acompanhamentos, que é preciso mastigar sozinho. Por isso não é um filme para qualquer público, nem para qualquer ocasião. Não é espetáculo para assistir num momento livre, de bate pronto. A indigestão pode ser fatal.  Mas é um filme superior. Susan compra o desafio e propõe-se arrancar o assassino das garras do pior verdugo: o ódio que inunda suas entranhas. E nestes resgates as armas são poucas e precisas: a doação, o amor. Toneladas de amor despejadas sobre o próximo, à custa de sangrar a própria alma até a exaustão. Esse é o único detergente eficaz, que penetra as crostas do orgulho -do próprio e do alheio- dissolvendo-as. 

             “Você é culpado, sim. Mas Deus te perdoa, você é filho de Deus. As ações miseráveis não conseguirão te arrebatar esse título.” “Nunca amei ninguém, nem fui amado. Vou ter que morrer para saber o que é o amor. Obrigado por amar-me” – são as palavras do condenado que mostram a alma, lavada, com o solvente do amor que recebe. E, em ajuda sublime, quando mais nada é possível, Susan encara o homem-quase-morto e diz: “Olhe para mim!! Olhe para mim enquanto te fazem ….isso. Eu serei o rosto de amor enquanto entregas tua vida”. Neste mundo de misérias e injustiças, de atrocidades diárias, dizer que nada mais é possível, é postura cômoda, lavar-se as mãos, eximindo-se da responsabilidade que a solidariedade alheia nos pede. Sempre é possível fazer algo mais, muito mais: é possível ser o rosto de amor. Para o criminoso, para o moribundo, para o solitário e abandonado. Belíssima proposta, propósito que compromete uma vida de serviço: ser o rosto de amor.

            E na transparência do amor -“devolvendo um pouco do muito que recebi”-  surge a intimidade. O filme mostra, com elegância, como se pode chegar ao topo da intimidade sem contato físico. Não deixa de ser um excelente e corajoso recado para um mundo regido pelo consumismo, que geme sob a ditadura dos sentidos, ávido de prazer. O ensinamento é sutil, pode passar despercebido, mas está lá para quem for capaz de entender.

            A intimidade é auto possessão, santuário do próprio eu. Intimidade é o que nos permite guardar nosso interior para oferecê-lo a alguém, em doação desinteressada e total. Um cinto de segurança da personalidade, de quem aprendeu a crescer para dentro sem espalhar-se em devassidão dos sentidos, que é diluir-se, anular a racionalidade. Por isso a intimidade é própria das pessoas, nunca das coisas, nem dos animais. Uma propriedade do espírito e não do corpo. Os corpos entrelaçam-se em intimidade através da ponte que o espírito lhes empresta, e que se ancora nas almas.

            Dividem-se, na intimidade, sentimentos, ideais, afetos; transcendência e amor. Abrem-se horizontes novos. Atingem-se regiões onde o amor tem garantia de ser autêntico: um amor que não se “faz”, por usar uma expressão na moda, mas que é pura doação, sem receber em troca uma simples carícia. Um amor verdadeiro, despojado de si mesmo, que procura apenas o bem do amado. Este é o amor que supera ódios e nos prepara para entender o amor de Deus, que nada ganha nos amando. Já dizia Miguel de Unamuno: “A maior humildade e o maior amor é a de um Deus que cria um mundo e nele coloca o homem para que o critique”.

            Apaixonante questão esta da intimidade. Um resguardo do interior, daquilo que nos torna únicos, irrepetíveis, e que oferecemos a alguém quando estamos enamorados. Esse é o chamariz do amor duradouro, daquele que vai além da morte. Intimidade que se adivinha, perscrutando nos recantos da pessoa, e à qual se chega quando o seu corpo nos oferece passagem livre. O assunto parece complexo, mas é de fácil compreensão e de experiência diária.

            Os estudiosos do tema asseveram que existem no corpo partes transparentes, que permitem olhar dentro, no vestíbulo da alma: são os olhos, a face, as mãos, que impregnam sua materialidade de  carga espiritual. A personalidade é transcrita nos gestos e nas mãos, a alma parece tornar-se líquida no olhar. Os olhos são o espelho da alma; por isso fitamos o olhar alheio quando queremos conhecer o interlocutor, e nos ruborizamos quando, por trás das pupilas, adivinham nosso sentir.  E certificam também esses autores, a presença de partes opacas, que denominam impessoais: aquelas que, por dizê-lo de modo simples, nos distinguem menos dos outros humanos: o trivial comum. O joelho, por exemplo, desperta pouca poesia porque nada nos transmite da personalidade do seu proprietário. A opacidade é total quando o que se expõe absorve completamente o olhar, reduzindo a busca da pessoa a simples reflexo retiniano, estímulo visual que  desperta o instinto, afogando a racionalidade de quem olha. São, na geografia do corpo, o que curiosamente se denomina com o qualificativo de íntimo: porque sendo ímãs que atraem com veemência a atenção, absorvem o olhar monopolizando-o; e, por isso, manda o recato ocultá-las para que não embacem a transparência do corpo que permite chegar até o núcleo da pessoa. São partes íntimas por afinidade; são, na verdade, condição de intimidade.

            A transparência do corpo, que permite abeirar-se da intimidade, reclama um trato nas formas e no visual que não ofusque a pessoa: aquele que olha, e também quem é olhado, que deve mostrar sua riqueza interior sem esconder-se por trás de maquiagens. Não vá acontecer que façamos com o espírito o que dizem fizeram os franceses do século XVIII com aversão pelo banho cotidiano: inventaram os perfumes. Descontando a maldade da comparação é um interrogante que paira com viva atualidade. Assusta pensar o que podemos encontrar por trás de exuberantes e produzidos visuais: miséria, pobreza interior, mesmo vazio. Achado, este, que explicaria – sem justificá-las, naturalmente – as condutas da moda, carentes de pudor: afinal quem nada tem por dentro, tem mesmo que fechar as janelas da transparência e desviar o olhar para a carcaça cintilante. É o único recurso, expediente agonizante de uma humanidade que se esvaece.

            Voltemos ao filme, centremo-nos no tema. Oferece-se um verdadeiro festival de generosidade que beira o absurdo, que não tem limites racionais. Aliás é próprio de a generosidade ser ilimitada. Colocar fronteiras à generosidade -diz Gregório Marañón- é como matá-la, porque essa virtude não resiste nos espaços fechados. Vive da sua própria ilimitação, da sua purificação constante do egoísmo, pecado do nosso tempo histórico.

             Um amor aberto, em doação franca, que é purificador. O verdadeiro arrependimento não nasce de comprovar as próprias limitações e erros. Esse é o atalho que desemboca no orgulho dos vencidos. Nasce de um sentimento maior que nos ultrapassa, de um referencial que nos engrandece e nos abre à compreensão, ao perdão; e que por isso mesmo necessita e almeja o perdão de Deus.

            Um filme corajoso, definitivo. Um exemplo de como o cinema pode mostrar saídas vitais. Também para os que vivem fechados à esperança, sufocada a alma, num verdadeiro corredor da morte ….do espírito.

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