UM GOLPE DO DESTINO
(The Doctor). Diretor: Rainda Haines. William Hurt, Christine Lahti, Elizabeth Perkins. USA 1991. 123 min.
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Os filmes de médicos sempre tiveram seu espaço no cinema e, em termos gerais, uma aceitação razoável da crítica. Talvez por trazer à tona uma situação na qual, antes ou depois, todos nós -humanos e mortais- estaremos envolvidos. Ninguém foge à doença e, via de regra, acaba caindo nas mãos de um médico. A solidariedade de qualquer ser humano com semelhantes circunstâncias explica a fácil sintonia do espectador com a temática do “filme-médico”, ou do “filme-hospital”.
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A dimensão humana do médico costuma ser nota comum deste filmes, desde sempre. Já no ano l939, era levado ao cinema o conhecidíssimo romance de A.J. Cronin, A Cidadela, um protótipo de gênero. No fundo, falar do médico como homem, é falar do paciente como pessoa. Eis a mensagem que vai implícita, e de importância singular. O doente é muito mais do que uma patologia ou um diagnóstico: é um ser humano que padece. Como tal, espera encontrar no médico muito mais do que competência científica. Espera compreensão, afeto, consolo e ânimo para defrontar-se com a moléstia que o acomete.
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Quem sabe os filmes de médicos têm audiência porque todos gostamos de ver retratados neles o médico ideal, o médico que gostaríamos de ter quando, porventura, assumamos a condição de paciente. Destacar as virtudes que deve possuir, diminuir os defeitos, que sempre denunciam a despersonalização da medicina mais do que simples imperícia, é o que todos almejamos.
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Aliás, de imperícia médica -desconhecimento científico- pouco se reclama nos filmes, ou melhor, mesmo que se enfatize não costuma ser apontado como o maior defeito do médico. Isto, tal vez, porque sendo a ciência em si complexa, e a doença e a morte fato inevitável, é a ignorância um elemento episódico dentro de um mundo desconhecido, sobretudo para o paciente. O que com razão não se perdoa – nos filmes, e muito menos na vida – é a falta de sentido humano do médico, as indelicadezas e brincadeiras de mau gosto com que, não raramente, trata o paciente. Em outras palavras: é de se almejar um médico competente e atualizado, algo que cada paciente, na medida das suas possibilidades, poderá procurar. Mas é de se exigir um médico atencioso, compreensivo, que conforte com sua atitude profissional, independente do conhecimento científico que possua.
Os comentários populares, que encerram não pouca sabedoria, mostram isto claramente. Ouve-se com frequência: “O médico nem me examinou”; ou: “O médico atendeu-me às pressas”; ou ainda: “não me explica nada do que eu tenho”. Rara vez ouve-se: “O médico não sabe nada, é um ignorante”. E isto porque, em geral, não possui o doente, parâmetros para avaliar o conhecimento do médico, mas sim o nível de “humanitarismo”.
Nesta matéria -humanidade- o paciente não é ignorante como na ciência médica. Aliás, a doença e o sofrimento tornam o paciente especialmente sensível e atento para tudo o que se relaciona com a esfera afetiva. E, conhecendo de humanidade, exige-a do médico. Em matéria de carinho e humanitarismo o paciente nunca é um leigo.
Quando surgem as queixas de imperícia por parte do doente, facilmente pode-se comprovar que a ignorância do médico vai associada, em grau notável, à descortesia, à falta de sentimento humano, quando não à grosseria. É assim mesmo: é o fator humano do médico o que cativa o paciente, o que inspira confiança e -muito mais do que se pensa- o que faz o tratamento funcionar. “O meu médico é muito atento e disponível; ouve-me com paciência, explica-me o que tenho, mas, infelizmente, não sabe nada”. Não se tem notícia de semelhante queixa, porque é simplesmente impossível.
“Um golpe do Destino” é um filme acertado que, com leveza, mas também com profundidade, aborda esta questão. Nada melhor do que um médico se tornar paciente para descobrir um universo que, paradoxalmente, desconhece. Conhece-o por fora, na periferia científica, conhecimento que não sendo traduzível em níveis celulares e moleculares, acaba sendo epidérmico, superficial.
É preciso descobrir e implantar esta nova dimensão na atuação médica, que nos vem dada através do paciente: o tratamento humano, a sensibilidade de perceber no “material de trabalho” um ser humano e individual, com todas suas peculiaridades. Dimensão esta que, mesmo não sendo suficiente é absolutamente necessária e, às vezes -como nos prognósticos fechados- a única com a qual o médico pode colaborar. Pelas minhas circunstâncias profissionais -décadas exercendo a medicina junto ao enfermo- sinto-me à vontade para fazer estas considerações. O filme, que elogio sem nenhuma contraindicação, levanta um problema que preocupa, e muito, na classe médica. Sem contraindicação, mas com muito efeito colateral….que surgirá na consciência do espectador.
O progresso científico -e a Medicina no meio dele- assume ritmos alucinantes. É elogiável que os jovens profissionais mergulhem com paixão neste progresso que os levará as conquistas na investigação e ao domínio de sofisticadas técnicas. As super-especialidades proliferam no meio médico, diariamente. Porém, assusta observar o também progressivo definhamento da formação humanística e ética do médico. Caminhamos assim para um âmbito de supertécnica médica, onde os facultativos “sabem muito bem tratar doenças raríssimas e sabem muito mal cuidar do paciente”. O órgão doente é tratado com técnicas ultra modernas e o paciente, a pessoa, corre o risco de ser esquecido no seu conjunto. Às vezes, até parece que atrapalha o progresso quando, timidamente, queixa-se das moléstias e dos sofrimentos, para os quais a técnica não tem resposta. O sofrimento humano usa uma linguagem diferente da técnica. Valeria a pena perguntar-se a serviço de quem está o progresso médico: do paciente ou dos médicos. Deveria deixar-se o paciente falar…
O protagonista de filme é um homem trabalhador e competente, virtudes que ninguém pode lhe negar. No entanto, parece importar-se pouco com o paciente e muito com o seu desempenho. É uma figura comum entre os médicos que, tendo fama de trabalhadores e sacrificados, não poucas vezes escondem por trás desse ativismo, uma enorme pobreza de caráter e imenso vazio interior. Comenta um pensador contemporâneo como é triste a atitude de quem avidamente vai engrossando o seu “eu” e a vaidade, para capitular na maior aventura que é a conquista de si mesmo, a descoberta da sua própria alma.
A família, os amigos, o afeto dos próprios pacientes, não se sustentam -como o nosso protagonista comprova- com técnica, trabalho e fama. São precisas doses maciças de carinho e humanidade para ativar o metabolismo da alma e ter riqueza interior. No fundo, é preciso parar e pensar, voltar-se para dentro, ter a coragem de assumir os sentimentos e os afetos, tornar-se homem e não apenas um supertécnico. Esse é o caminho -e não outro- para ser um bom médico.
Os agradabilíssimos minutos que o filme nos brinda, e com ele estas considerações, não são uma crítica ao progresso técnico, mas à desumanização da medicina. Uma excelente ocasião para que os médicos ponderemos valores que, sendo óbvios, estão caindo no esquecimento. Ocasião também para lembrar que cada paciente tem muito a nos ensinar com suas moléstias: algo que não se aprende nos livros, mas na vida quando observarmos com o desejo de ajudar. Ótimo momento para que todos -que algum dia seremos pacientes- saibamos incentivar os médicos no progresso, lembrando o que esperamos deles, seguindo o velho aforismo: “Curar sempre que possível, aliviar com frequência, confortar sempre”. Missão nobre de dimensões gigantes. Missão que requer empenho, reflexão e magnanimidade: grandeza de alma!
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GRandeza de lembrar a genial interpretaçao de William Hurt no papel do medico que resolveu ser humano e ser tratado como tal quando vira paciente, Filme que nos faz pensar sobre nossas relaçoes .excelente comentario do filme comparado a seus semelhantes nota 10.