FAMILIA E VOCAÇÃO PROFISSIONAL: VARIAÇÕES PROCURANDO CAMINHOS DE COMPREENSÃO

Pablo González Blasco Filmes Leave a Comment

CEU DE OUTUBRO

(October Sky) Dir: Joe Jonhston. Jake Gyllenhall, Chris Cooper, Laura Dern, Chris Owen. 128 min. 1999.


BILLY ELLIOT – QUERO DANÇAR

(Billy Elliot) Dir: Stephen Daldry. Julie Walters, Jamie Bell, Jamie Droven, Gary Lewis. 110 min.

    “Não faz mal que dediques o teu tempo livre a montar foguetes, se isso te faz feliz… sempre que tomes cuidado. Afinal, há hobbies bem piores. Mas, faltar ao trabalho isso é outra questão. Já sabes quanto me orgulha que trabalhes comigo. Você vai ser mineiro como seu pai”. Veredicto final, silêncio, entra a música, e o garoto responde: “A mina de carvão é a tua vida, não a minha. Nunca mais entrarei nesse buraco. Eu quero viajar no espaço”.

            Está situado o núcleo do filme e, mais importante, da questão. De quem é a vida dos filhos? Deles ou dos pais? Problemática antiga, de sempre, com variações acordes com os tempos e as oportunidades profissionais, mas que permanece idêntica na sua essência. É condição humana que os formadores –pais, professores, preceptores- pensemos que sabemos o que realmente convém aos jovens que nos foram confiados. Afinal, o esforço por criá-los, as dificuldades que enfrentamos de contínuo, nos fazem amadurecer e ponderar, com imensa sensatez, os prós e contras das opções que a vida coloca como desafios. Conhecemos muito bem o que fazemos, temos experiência. Nada mais lógico que pretender que aqueles que formamos e amamos aproveitem dela, ganhem tempo, sejam poupados de incômodos que nós tivemos de enfrentar. “Não quero que meu filho passe pelo que eu passei…”. Quem não ouviu –e ouve, a toda hora- essa exclamação como símbolo do amor paterno?

   É impressionante o poder que o cinema traz para promover a reflexão. Lembro de um episódio, durante um curso de treinamento de lideranças, onde uma executiva, após contemplar a cena acima descrita, confessou publicamente: “Parece-me que estou acabando com a vida da minha filha. Ela quer ser jornalista, mas eu insisti em que fizesse engenharia química, como eu. A verdade é que trancou a matrícula em engenharia, e está se preparando para o vestibular em comunicações. E eu, toda noite, em vez de me interessar pela preparação para o vestibular, somente pergunto se a matrícula trancada poderá um dia ser retomada”.

            A vida de um professor está, por natureza, em permanente contato com os jovens que iniciam seus sonhos profissionais. Temos o privilégio de contemplar decisões heroicas –aqueles que decidem não entrar na mina e serem fieis ao chamado, à vocação  profissional- e situações tristes, pressões familiares que infelizmente não seguem o exemplo da nossa engenheira que soube refletir e reconhecer o seu erro. E, diante das pressões, muitos capitulam, entregam os pontos. Também é compreensível, pois não se pode pedir heroísmos diários, a todo momento, com risco de comprometer a concórdia familiar. Melhor ser mineiro, e continuar a tradição familiar, do que organizar uma guerra civil, por teimosos sonhos de astronauta.

            Mesmo assim vale a reflexão, pois os atritos que a escolha profissional suscita,  são apenas a ponta de um iceberg que pode trazer consequências de maior envergadura, em outros terrenos. Afinal, o desfecho trágico da Sociedade dos Poetas Mortos pela briga familiar, não é coisa comum, para felicidade de todos. Mas a questão é outra: qual é o papel do formador, dos pais, do professor? O pretender saber o que “é bom para eles” não será uma projeção das próprias frustrações, um querer reproduzir a qualquer custo um modelo para se espelhar, construir na vida de outros o próprio sucesso? “Veja só, os meus filhos”, frase que carrega o acento nos MEUS, e quase esquece o protagonista – os filhos.

            “Nós não concordamos em quase nada, mas quero que saibas que sou teimoso porque me pareço com você. Você me fez assim. Somos muito mais parecidos do que você imagina. E te agradeço me teres feito assim”. O comentário do jovem cientista traz à tona o que o pai realmente passou para ele: determinação, perseverança na vontade, capacidade de sonhar. Esses são os valores que um formador deve imprimir na alma dos jovens e não tanto o conteúdo, que é o que mais preocupa. E o pai percebe, e encontra seus caminhos de compreensão, para entender realmente o filho.

            A dobradinha vem à calhar com o outro filme, Billy Elliot, em variação sobre o mesmo tema. A problemática é ressaltada quando os gostos profissionais são absolutamente não convencionais. Imagine só, um garoto, filho também de um mineiro, que decide dançar ballet.  Já não é uma simples questão profissional, mas agora o que se questiona são os gostos, a afetividade, as emoções. “Como você sente isso… sem me pedir licença?” – parece dizer o pai, e o irmão de Billy. A mãe, já falecida, deixa em testamento uma carta que a professora – novamente a personagem que tem o privilégio de ser testemunha de grandes decisões e sabe apoiá-las- lê com entoação materna. “Seja você mesmo. Siga o seu coração”. A distância da eternidade, da mãe que contempla o garoto da outra vida, confere o sentido real à questão, como sugerindo que para ganhar a verdadeira perspectiva no tema, é preciso distância e, como já alguém disse de modo belíssimo, contemplar o mundo com olhos de eternidade.

            O cinema nos traz, em versão dupla, uma questão de atualidade perene. E, mais do que isso, nos brinda caminhos de compreensão, de verdadeiro entendimento do outro –o jovem, o filho, o aluno- para poder ajudá-lo de verdade. Com desprendimento, generosamente, sem querer “carimbá-lo” com nosso selo de fabricação. As catedrais da Idade Média nos oferecem uma analogia de enorme valor pedagógico. Quem construiu Notre Dame? E a Catedral de Colônia? E a de Burgos? Não tem assinatura, o arquiteto fez convergir o sentir do povo,  verdadeiro artífice dessas obras de arte, que têm a humildade do anonimato do arquiteto.

            “O que você sente quando dança Billy?” – pergunta o professor do conservatório. “Não sei, é como se eu desaparecesse, é como eletricidade, é a música que se torna protagonista e eu acompanho” Palavras de um garoto que tem alma de artista e que intui que deve desaparecer –como os arquitetos medievais- diante da própria arte. Formar pessoas, encaminhá-las profissionalmente é também arte que requer saber desaparecer para que os monumentos –as pessoas que nos são confiadas- apareçam, sejam elas mesmas. Foguetes, ballet, e um tributo necessário aos mineiros que, com humildade, sabem ceder e tornar-se artistas anônimos. A sua obra, os seus filhos, carregarão para sempre a marca de fábrica na alma: a certeza de ter sido compreendidos e amados.

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