AS CONFISSÕES DE SCHMIDT

Pablo González Blasco Filmes Leave a Comment

AS CONFISSÕES DE SCHMIDT (About Schmidt). Diretor: Alexander Payne. Jack Nicholson, Hope Davis, Katy Bathes. 124 min.

Cada filme tem o seu público. Alguns, propositadamete ou não, tem um alvo claro. Já dizia Kant que não vemos as coisas como elas são, mas como nós somos. Cada um ve a realidade do seu jeito, e lhe atinge de acordo com o local onde lhe aperta o sapato. Quando cito esse pensamento de Kant nas minhas aulas, costumo complementar o raciocíonio com uma breve poesia de Fernando  Pessoa que surpreendi na escrita na parede do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, junto do restaurante do segundo andar. Diz: “A vida é o que fazemos dela/ As viagens são os viajantes/ O que vemos não é o que vemos/ Senão o  que somos” É o mesmo que afirmava o filósofo alemão, de modo mais poético. Vemos o que somos, digerimos a realidade de acordo com a nossa sensibilidade que governa a percepção.

            Se dizer que as viagens são os viajantes –dependendo com quem se viaja, o resultado é completamente diferente- , é algo sobre o que estamos todos de acordo, e não merece maiores comentários, já o pensamento de que a vida é o que fazemos dela encaixa perfeitamente com o filme sobre Schmidt e, esse sim, tem provocado crises. O público do filme, quando beira a idade do protagonista, soberbamente interpretado por Jack Nicholson, entra em resonância com as reflexões colocadas em cima do tapete. E quando a audiência é jóvem, bastam alguns comentários simultâneos para obrigar a todos a pensar.

            Schmidt se aposenta, sem pena nem glória, como um cidadão a mais sobre a face da terra. Ouve um discurso pasteurizado –com elogios e agradecimentos nos quais ninguém acredita, nem mesmo o interessado- e iniciam-se as reflexões. “Quem é esta mulher que dorme na minha cama há tantos anos?” E, com sabor de tragédia, sem conseguir responder satisfatoriamente a semelhante interrogação, fica viuvo da noite para o dia. Uma correspondência de alguma ONG caritativa lhe oferece a oportunidade de “adotar” uma criança africana e o bom Schmidt fará dele o seu confidente, através de cartas que são o altofalante da voz da própria consciência em reflexão vital.

            As coisas não correm como ele gostaria; a bem da verdade nem sabe direito o que quer, e vem descobrir que talvez nunca o soube. A filha casa com alguém que não aprova, descobre cartas de um antigo affaire amoroso da sua mulher já falecida com o melhor amigo, e o sentimento de fracasso aflora com força total na chamada terceira idade. Compara sua vida com a dos pioneiros do velho Oeste e sente-se insignificante, fraco, desprezível. No museu  depara-se com o cartaz que é um divisor de águas, entre as vidas úteis e outras, como a sua, cinzentas. Fala dos fortes, dos audazes que empreenderam o caminho, dos fracos que desistiram, dos conquistadores que foram magnânimos. As cartas ao afilhado africano são já claras, sinceras, de coração aberto: “Quando penso se fiz alguma diferença com a minha vida, não encontro nada. Sou um fracassado. Posso durar alguns dias, quem sabe anos. E quando com sinceridade me pergunto o que está melhor no mundo por minha causa a resposta é nada. Fiz alguma diferença? Francamente , nenhuma!”.

            As Confissões de Schmidt é uma oportunidade magnífica para refletir sobre o que realmente importa na vida. Uma reflexão profunda, sincera, no silêncio da consciência, sem enganar-se. Saõ poucas as coisas que realmente pesam na vida, e poder ser útil é uma delas. Algo aparentemente simples mas de difícil realização, porque a frivolidade, a vaidade, e a avareza se encarregam de nos distrair daquilo que é primordial. E depois o silêncio –interior e exterior- uma conquista cada vez mais difícil nos dias de hoje, condição indispensável para a reflexão.

            Vivemos tempos de griffe, de modas. As pessoas se amontoam nos points que estão em alta, onde o barulho é tanto que dificilmente se consegue conversar com o interlocutor que está do lado. Alguém já perguntou como é possível frequentar esses locais para fomentar a vida social, se não há como manter um bate-papo. A resposta é que provavelemente não há do que conversar, não existe tema; a conversa não é algo que se contemple nesse contexto. Lembro de uma ocasião –a primeira e, se mal não recordo, a última que ousei aparecer num desses locais- em que um aluno expôs-me sérias dúvidas sobre a honestidade profissional do seu pai, com quem tinha andado trabalhando nas férias. Percebendo eu que o tema era sério convidei-o a tomar uma cerveja na boteco da esquina, porque no “barzinho” o barulho era ensurdecedor e não havia possibilidades de lhe dar a atenção devida. O ruido invade as vidas, abafa o silêncio, amputa as possibilidades de reflexão. Entra-se no carro e liga-se o rádio, e em casa a TV para não sentir o silêncio, que assusta. E depois, na internet, os mesmos que emudecem com o barulho do point, ficam horas a conversar….Conversar? Do que?

            Concedamos que a idade de Schmidt –e do público que com ele se identifica- não é a mesma dos que vivem envolvidos no barulho. Mas o vício de não pensar –nem refletir, nem conversar para expor suas opiniões- acaba cronificando. E o jóvem mudo, ou que grunhe ao invés de falar, converte-se no adulto superficial, no madurão frívolo, no velho cansado e cinzento. É uma questão de tempo. Sim, porque o tempo não dá sabedoria a não ser que se faça algo de positivo; apenas rende barriga, falta de cabelo –ou cabelos brancos- e, sempre, rugas, também na alma.

            Onde fiz a diferença, o que está no mundo melhor por minha causa? Está ai a grande confissão de Schmidt –a pergunta  que cada um terá de responder com sua vida. Quanto antes o fizer, e de preferência todos os dias, melhor; ganhará tempo. Uma última lembrança vem à mente. O comentário de outro aluno, num seminário de ética na Universidade. Alguém perguntou como ser melhor a cada dia, como estar certo de estar dando o melhor de nós, e esse aluno respondeu: pare no final do dia, esqueça os elogios que os outros lhe fizeram, e pense no que fez de errado, reconheça-o e tente melhorar. Um sábio conselho: esqueçamos os discursos plastificados da aposentadoria, e enfrentemos a pergunta de Schmidt com coragem e respondamos com prontidão, gastando a vida em permanente utilidade. Será um verdadeiro privilégio e a garantia da felicidade.

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