A Última Fortaleza: uma metodologia da liderança

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A última fortaleza(The last castle) Diretor: Rod Lurie. Robert Redford. James Gandolfini, Mark Ruffalo, Delroy Lindo. 120 min.Estas linhas são um acerto de contas comigo mesmo, o pagamento de uma antiga dívida que até então carregava comigo. Refiro-me ao filme “A Última Fortaleza”, ao qual assisti há alguns anos – seis, talvez sete –, e do qual gostei muito, embora, à primeira vista, de um modo genérico, inespecífico, sem fixar-me em nenhum detalhe em particular. Como sempre procuro fazer quando um filme me empolga, comecei a recomendá-lo aos amigos, mas naquela primeira ocasião não cheguei a escrever nenhuma linha a respeito. Talvez seja exatamente por isso que até hoje não havia atinado com as razões da minha satisfação pelo filme. Com efeito, escrever é algo que nos leva a refletir e a dissecar a realidade. À base de “dialogar” com as idéias que acodem à mente vamos pouco a pouco transferindo ao papel frases de significado mais ou menos intenso, conforme o grau de lhaneza com que encaramos a realidade. “Você consegue colocar em palavras o que a gente sente” – dizem, às vezes, os que se aventuram a ler o que escrevo. Na verdade, ocorre-me exatamente o oposto: são as palavras que me levam pela mão a compreender os sentimentos humanos. Na palavra escrita, as intuições tornam-se transparentes e as emoções assumem uma forma serena, acessível, convidativa. No final de sua vida, Borges dizia que mesmo cego continuava comprando livros, pois gostava de rodear-se do aconchego e da amável presença que os livros lhe proporcionavam.

Lembro que na época em que assisti pela primeira vez “A Última Fortaleza” eu atravessava momentos difíceis na vida acadêmica. A resistência lenta e temerosa de certos acadêmicos a tudo o que implicasse mudança do status quo, perpetuando-se e até perdendo-se num obstinado convencionalismo, era a minha batalha pessoal e diária. Naqueles dias, recebi um e-mail da minha irmã, professora de filosofia num país da Europa, em que me dizia: “Assisti ‘A Última Fortaleza’. Muito bom! Por que você insiste em contar a sua vida através de filmes?” Eu, particularmente, nunca imaginei que estivesse contando a história da minha vida por meio dos filmes sobre os quais escrevo, mas uma observação desse naipe, vinda de quem te conhece e te quer, deu-me no que pensar, e incentivou-me a assistir novamente “A Última Fortaleza”. Foi quando várias cenas me tocaram e me serviram de lição sobre como superar aquelas resistências do mundo acadêmico, cenas, inclusive, que passei a utilizar em minhas aulas como exemplos vitais de liderança humana. A despeito da grata reprise, acabei não conciliando tempo para escrever sobre o filme, de modo que, mais uma vez, escapou-me a oportunidade para tentar plasmar no papel as densas inspirações que a película me proporcionou. Talvez não tivesse chegado ainda a hora propícia para fazê-lo…O fato é que, hoje, abro meus arquivos cinematográficos e vejo as cenas de “A Última Fortaleza”, prontinhas para serem aproveitadas na formação humanística dos jovens médicos que tenho à minha volta. O tempo transcorrido desde o meu primeiro contato com o filme e as reflexões acumuladas sobre liderança, hoje bem mais maduras que naquela época, deram um novo colorido às passagens que selecionei. Um colorido e uma lógica, pois não se tratam apenas de cenas de impacto, brados espasmódicos, mas aulas magistrais de como se constrói a verdadeira liderança, o caminho a ser percorrido por quem sente a convocação – quase sempre incômoda – a tornar-se líder. Enfim, e servindo-me de uma expressão bem ao gosto dos acadêmicos, diria que “A Última Fortaleza” representa uma consistente “metodologia da liderança”.fortaleza_2A “bandeira”: eis o primeiro passo da liderança. A bandeira levantada, a bandeira pessoal, de cada um. Saber quem somos e o quê queremos, para depois transformar o mundo que nos rodeia. Sem “bandeira” não há liderança possível. Sinto calafrios só de pensar nos “cursos de excelência” que hoje pululam por todos os cantos, para não dizer em qualquer “fundo de quintal”, todos eles carentes de sentido, de “bandeira”. Analisam-se processos, ministram-se aulas sobre como se comunicar melhor, criam-se plataformas de relacionamento virtual para se conversar com outras pessoas – muitas pessoas! –, as quais, desde logo, já são chamadas de “amigos”. Esquece-se, porém, de um único detalhe: do conteúdo, da “bandeira”. Há disfarces, fantasias carnavalescas, apelidos simpáticos, mas não há “bandeiras”. “Você sabe de onde vem a saudação militar”? – pergunta o general de três estrelas que compartilha a prisão com os soldados punidos – “Vem da época medieval: quando dois cavaleiros se encontravam, ambos levantavam a viseira do elmo mostrando a face, um ao outro. Era o modo de dizerem ‘aqui estou eu!’, ‘este sou eu!’”. Liderança é “bandeira”, é identidade, é dizer “este sou eu!”. Algo que não se improvisa nos momentos difíceis, mas se constrói dia a dia, na rotina sem brilho e sem transcendência aparentes. Liderança que parte do saber içar diariamente a “bandeira” da própria identidade. Susanna Tamaro, em seu delicioso “Vá aonde seu coração mandar” – uma coletânea de cartas de uma avó à sua neta rebelde – escreve com precisão: “Toda vez que, crescendo, você tiver vontade de transformar as coisas erradas em coisas certas, lembre-se de que a primeira revolução a ser feita é aquela dentro de nós mesmos, a primeira e a mais importante. Lutar por uma idéia sem ter uma idéia de si mesmo é uma das coisas mais perigosas que alguém pode fazer”. Eis o início da verdadeira liderança, o princípio da genuína sabedoria: “Seja qual for a extensão de teu saber, sempre te faltará o conhecimento de si próprio para atingir a plenitude da sabedoria. Não merece o nome de sábio quem não o é para si mesmo” – escreveu um monge do século XII, Bernardo de Claraval, grande líder de seu tempo, que desejava ardentemente dedicar-se com exclusividade à contemplação, no silêncio de seu mosteiro, mas não lhe deixavam um momento livre sequer, pois o levavam de um lado a outro para apaziguar brigas de reis e querelas de teólogos. A liderança requer observação, entender o que está acontecendo, despojar-se de preconceitos e desconfiar de diagnósticos pretensamente geniais, para então conseguir penetrar no cerne dos problemas humanos. Requer aprender a ouvir as pessoas até o fim, sem pressa. Demanda reflexão, “trabalhar” os silêncios, que também são manifestação de sabedoria e liderança. Lembre-se de Thomas More, Lorde Chanceler da Inglaterra, reflexivo e silencioso quando interpelado sobre “a questão do Rei” (o divórcio com a Rainha para poder se casar com Ana Bolena): “O silêncio de More ecoa por toda Europa” – queixava-se o Rei, Henrique VIII.

A liderança tem fundamento, não é mero impulso temperamental ou simples motivação anímica. Algo bem diferente da “animação de massas”, tão comum em nossos dias, nos assim chamados “cursos motivacionais”. Um velho amigo, importante executivo de uma multinacional, disse-me certa vez: “Quando me convidam para dar palestras sobre motivação eu nunca aceito, sabe por quê? Porque a motivação que proporciono à audiência, de tão efêmera, dura o tempo exato em que eu me retiro do auditório e desço de elevador até o andar térreo. Eu não motivo ninguém, apenas procuro ajudar as pessoas a encontrar a sua própria motivação”.Aquela cena em que o general expõe, com o código militar na mão, as razões para uma tomada de posição no presídio comandado pelo tirano é um belíssimo exemplo do que acima denominei de “metodologia da liderança”. Uma vez mais me acodem as palavras de Thomas More, eminente jurista e humanista de cultura ímpar: “Eu daria ao próprio demônio o privilégio da lei, para com ela conquistar os meus direitos”. Liderança é pôr a mão na massa e caminhar à frente das pessoas, estimulando-as com o nosso exemplo de vida. O maior inimigo da liderança não é a mediocridade, mas a pseudo-liderança dos teóricos. “Quem possui uma coleção desse tipo – diz o general, olhando a vitrine de armas e projéteis – nunca colocou os pés num campo de batalha. Para eles, uma bala é apenas um artefato de museu, mas para um veterano, uma bala representa a tremenda dor causada a um infeliz”. Lembro que esta cena me comoveu muito já na primeira vez em que assisti “A Última Fortaleza”. Na ocasião, eu não saberia identificar o motivo de minha emoção, hoje, porém, vejo com clareza que estava relacionada com o meu desgastante convívio com os “teóricos” – teóricos da educação, teóricos da saúde, teóricos da própria vida!!! –, convívio que se me afigurava nauseante, e que lhe caia como uma luva aquelas sábias palavras do general prisioneiro – “para eles, uma bala é apenas um artefato de museu, mas para um veterano, uma bala representa a tremenda dor causada a um infeliz”.fortaleza_3Liderança é “individualizar” cada pessoa que se encontra sob nossa responsabilidade, identificando e concentrando-se no lado bom de cada um para lembrar-lhes as suas potencialidades. Só desse modo é possível comandar um time: “É preciso comprar as pessoas na alta e apostar que vão subir ainda mais ” – ouvi certa vez alguém comentar. Não existe outro modo de liderar senão atentar às particularidades de cada pessoa, tratando desigualmente cada um, na medida de suas desigualdades. Caso contrário, não seremos líderes, mas boiadeiros que se dedicam apenas a tocar gado.Há quem tenha como único objetivo na vida conservar o poder que exerce sobre certas pessoas que gravitam seu entorno por razões profissionais ou sociais. Quem assim vive, não trata seus próximos como uma “equipe de colaboradores”, mas como um “grupo de servidores” que devem ser conduzidos com muita cautela, sob pena de um dia se converterem em ameaça real à perpetuidade de seu poder. “Quando tenho dúvidas sobre o meu poder” – diz o tirano, o falso comandante–, “leio o prontuário de um prisioneiro para saber o que ele fez de mau. Isso me lembra do que ele é capaz, da miséria que encerra. Então, sou capaz de decidir; isso cristaliza minha missão”. O líder tem consciência de que depende de seus homens, de sua equipe: “Não fui eu quem salvou teu pai. Foram aqueles homens, todos, com seus apelos os que me mantiveram a mim vivo”- diz o general ao jovem a quem o pai já lhe tinha falado da categoria humana desse homem. O líder não é nada sem a equipe que soube formar cuidadosamente, como o joalheiro lapida o diamante. É desse modo que se ensina a levantar a “bandeira”, a construir a própria fortaleza, tornando-a inexpugnável aos embates da mediocridade epidêmica que nos espreita a todo o momento. Espero com estas linhas ter quitado cabalmente uma dívida que se vinha avolumando até não poder mais. Talvez eu devesse tê-lo feito muito antes, levantando esta “bandeira” e deixando-a ondear ao sabor do vento logo em seguida ao meu primeiro “encontro” como o filme. Seja lá como for, uma coisa é certa: somente hoje – não assim naquela primeira vez – alcancei compreender a profunda mensagem que “A Última Fortaleza” encerra: uma autêntica metodologia da liderança.

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