Oscar 2020: Lições para a Educação Médica
Chega no meu e-mail um pedido da assessoria de imprensa da SOBRAMFA para “escrever alguma coisa sobre o Oscar 2020 e as lições que os filmes indicados trazem para a Educação Médica”. O pedido não me surpreende, mas é um desafio e tanto. A culpa é toda minha, por insistir nos últimos 20 anos em que o Cinema traz recados importantes para a formação do médico.
“Mas -perguntam alguns- o que você ensina exatamente com os filmes? São filmes médicos? De doenças, epidemias, biografias de cientistas famosos?”. Essa pergunta também faz parte da minha rotina docente, nestas duas décadas. “Não são filmes médicos. As pessoas aprendem muito bem sobre o progresso da medicina nas faculdades e cursos de pós graduação. Nada a acrescentar sobre o conteúdo impecável. O meu foco é apenas lembrar de um detalhe que, com frequência, passa desapercebido no meio desse turbilhão cientifico: a figura do paciente, o ser humano perdido no meio da doença….e dos próprios médicos”. E, quase sempre, acrescento: “Minha irmã que é professora de filosofia, sempre me diz que o que pretendo ensinar é algo que os médicos já faziam 80 anos atrás….e acabaram esquecendo”.
Esse é o contexto desde o qual enfrento este desafio -que também não é crítica cinematográfica, nem avaliação técnica das produções- mas simplesmente extrair dos fotogramas o que pode aproveitar para lembrar aos médicos esquecidos daquilo que realmente importa: o protagonismo do paciente.
Não vi todos os filmes, o tempo não chega, e o meu instinto me conduz até alguns que me piscam o olho de modo convidativo. A prioridade que concedo à idade e à experiência, levou-me até O Irlandês. Uma aula de interpretação por conta de três septuagenários -De Niro, Pacino, Pesci- comandados por outro com a batuta: Scorsese. Um luxo para os olhos nas três horas longas de fita. O recado para nosso propósito educacional chegou-me dias atrás quando lia uma reportagem do diretor de fotografia, o mexicano Rodrigo Prieto, publicada na imprensa. Prieto relata os malabarismos que teve de fazer para filmar em espaço de cinco décadas com os mesmos atores: jogos de luz, câmaras diferentes, filtros, e todo tipo de técnicas avançadas. O responsável foi mesmo o diretor, Marty Scorsese que se negou a utilizar atores diferentes, mais jovens, para as primeiras épocas Parece que disse algo como: Têm de ser eles mesmos, o tempo todo, vire-se. E bateu o pé. Isso é a postura de um veterano, com muitas horas de voo: desafia tua criatividade, te tira da zona de conforto, te faz crescer. Prieto se mostrava exultante com o resultado que, talvez, nem ele mesmo acreditava seria capaz de atingir.
A pergunta que paira é: como andamos de criatividade na educação médica? O professor desafia o aluno, estimula seu engenho, põe para funcionar seus recursos? Não é o que vejo todos os dias no campo de batalha. Os médicos jovens aplicam protocolos, guidelines, consensos, mas são analfabetos em criatividade. A culpa, como sempre, é nossa, dos professores, que nos limitamos a passar uma dúzia de slides (seriam amarelados se o tempo os desgastasse), sugerimos alguma bibliografia para o chamado trabalho individual (de duvidosa eficácia na maioria das vezes), aplicamos uma prova de múltipla escolha, ou testamos sua habilidade numa espécie de gincana que está na moda, despachamos eles com o diploma….e boa sorte. Conversar com o paciente? Entender a fenomenologia do sofrimento? Isso é muito complicado, difícil de medir, e também não temos tempo porque o conteúdo do programa é imenso. Como é possível exercitar uma criatividade na hora da verdade -na trincheira diária- se nunca se lhes ensinou a fazer isso antes?
Se Marty coloca o desafio à criatividade, outro veterano, chegando quase aos 90, chuta o pau da barraca -com perdão da expressão, mas penso que se acopla perfeitamente à figura em questão- e detona os protocolos, as rotinas, o fazer de conta que te ensino, para você fazer de conta que aprendes.
Clint Eastwood nos brinda O Caso Richard Jewell, com base numa história real, onde o herói passa a vilão…..por conta dos protocolos e das avaliações de sociólogos de meia boca. Clint já tinha feito tudo isto quando dirigiu Sully outra história real contra o sistema de processos cegos e protocolos validados. Vale a pena recordar como pano de fundo, (ou assistir se temos essa lacuna imperdoável) antes de aventurar-se com o gordinho simpático, patriota, devoto servidor da lei, que é surpreendido pelas instituições corruptas, um funcionalismo público patológico, cuja função é encontrar um culpado a todo custo. Não interessa quem é o aluno, nem o que realmente fez ou sabe; eu tenho que prestar contas ao poder público e cumprir as exigências. Qualquer semelhança com o pacto medíocre da academia formadora de médicos com as exigências reguladoras que vem de cima, não é mera coincidência, mas retrato fiel dessa pantomima.
O filme de Clint não concorre a Oscar, salvo numa pequena fatia que fica por conta da mãe do gordinho, a magnífica Kathy Bathes, reivindicando a estatueta de melhor atriz secundária. Embora sua atuação é impecável, não creio que leve, porque a cutucada de Eastwood no sistema é politicamente incorreta, como sempre. Aliás, essa é a motivação para filmar aos 90 anos: que todo americano deve ser patriota, é coisa admitida, ponto pacífico; mas que alguém implique com o patriotismo por conta de um sistema podre é tentação à qual Clint não quer resistir e dispara uma nova produção.
Sendo como for, a figura de Barbara Jewell nos brinda uma ótima oportunidade para lembrar um artigo que publicamos há algum tempo, sob o sugestivo título de Selecionando Candidatos para as escolas médicas: o que as mães dos alunos tem a nos ensinar? . Lá se relatam várias histórias onde as mães fazem toda a diferença na formação dos futuros médicos e sugere-se seguir o exemplo delas, cuidar dos estudantes e, antes de tudo, escutar. Porque ninguém escuta nada, não tem tempo, estão ocupadíssimos para cumprir o programa previsto.
E de mães e educação médica, a safra 2020 do Oscar nos brinda com vários exemplos. Sem dúvida positivos, em Adoráveis Mulheres, onde a matriarca das March que escuta incansavelmente os sonhos e aspirações das quatro filhas, tão distintas como audazes. É curioso ver como uma produção que reedita uma temática já filmada várias vezes, tem presença, não é mais do mesmo. Talvez porque os recados sobre a fortaleza que decorre da família, a capacidade de escutar e compreender, e de apoiar com um sorriso, essenciais no suporte da vocação escolhida são, cada vez mais, predicados que brilham pela sua ausência. Um parêntese: a atuação, brevíssima e contundente de Meryl Streep, é um brinde de luxo. Essa não se importa mais com o Oscar….
Temos na safra 2020 também exemplos negativos, como em Coringaonde a mãe é lastro que, junto com as durezas da vida, arrasta o palhaço triste Happy para o abismo. Vale dizer que explica, embora não justifica a virada para o mal. As circunstancias são adversas mas a diferença é como se reage a essas circunstâncias.
Cabe lembrar a conhecida frase de Ortega –eu sou eu e as minhas circunstâncias– que raramente se cita por completo….. e se não salvo elas, não me salvo a mim mesmo, diz o filósofo espanhol. As adversidades não são justificativa para descambar. Tem muita gente que sofre, e conserva a cabeça alta e a dignidade, não se esconde atrás das circunstâncias ou da tristeza de uma infância infeliz. Sobram exemplos. Quer dizer, a ausência de mãe explica mas não justifica. Joaquim Phoenix, enche a tela por duas horas, quase um solilóquio, é candidato forte ao Oscar, apesar das circunstâncias….e da mãe.
Na lista dos favorecidos aparece também outra mãe, a de Almodóvar, aquela que segundo conta a lenda amoestava a Pedro: filho, com esses filmes que você faz não consigo nem falar com as vizinhas. Deste vez, o diretor espanhol, incarnado em Antonio Bandeiras, seu alter ego rende um tributo carinhoso à mãe em Dor e Glória
Junto com as mães também as famílias fazem presença entre os filmes candidatos. As brigas homéricas -interpretação tão impecável como carente de motivos reais- em História de um Casamentotrazem um ensinamento importante para os médicos. É preciso cuidar do paciente, dedicar-se e buscar o seu melhor; mas nesse empenho tropeçamos diariamente com os problemas que cada família tem. Saber focar-se no que temos de fazer, e olhar com respeito o que não podemos consertar, é parte essencial da sabedoria do médico. Os desentendimentos familiares que a doença provoca, podem ser esclarecidos e melhorados. Mas sentir-se frustrado porque não consegue “consertar uma família que leva décadas arrastando problemas” é perder o foco, sair do seu círculo de influência, esquecer qual é o seu papel.
Este turbilhão familiar, e os problemas que cada um arrasta quando sai diariamente para trabalhar, lembrou-me um comentário que escutei numa sugestiva apresentação durante um congresso de Educação Médica em Viena, no passado ano. A professora que fez a exposição comentava algo óbvio, que a gente esquece. “Todos temos problemas -dizia- , muitas vezes grandes, nos sentimos onerados, e não sabemos como resolver. E como o trabalho é o que temos à mão todos os dias, acabamos culpando o trabalho de todos nossos males, porque é o mais fácil. Isso é o que fazem com imensa frequência as jovens gerações de médicos”. Vale uma reflexão.
A interpretação impecável de Renée Zellweger em Judy: Muito Além do Arco-íristambém nos fala de mães problemáticas, de famílias destroçadas. Pode ter um Oscar em jogo, sem dúvida; mas, muito mais importante, é o pedido de ajuda que nos chega na sintonia de Over the Rainbow, a canção que imortalizou Judy Garland em O Mágico de Oz.
É preciso dar esperança, não sentir-se sozinho nas lutas diárias. Esse é um tema que atinge em cheio muitos dos jovens profissionais: saem com o diploma em baixo do braço em busca de dinheiro, para fazer um pé de meia, ou pagar as dívidas enormes que supõe hoje custear uma faculdade de medicina. Mas, no final, atropelam a sua formação ainda deficiente. Dão plantões aqui e acolá, participam numa espécie de bolsa de atividades-bico ao melhor pagador, mas estão sozinhos nas empreitadas. Um modelo que carece de sustentabilidade, maltrata os pacientes, esmaga a esperança, esvazia o prazer de ser e sentir-se médico. Tem quem com menos de 50 anos já anda fazendo contas de aposentadoria…. A solidão é mortal, trabalho em grupo é a única saída, integrar uma equipe requer confiança e dedicação. Algo disso me veio à cabeça quando assistindo Star Wars: A ascensão Skywalker, que não concorre para nenhum Oscar, vi a jovem Ray dizer: sinto comigo a força de todos os Jedis. Sem dúvida, um exemplo de integração num time de excelência, o que na prática é para poucos, porque ser Jedi compromete a existência por inteiro. A vida e vocação médica se confundem; ou melhor, se fundem num único propósito.
O polivalente Tom Hanks da vida a Fred Rogers, apresentador famoso do programa infantil, Um lindo dia na vizinhança. As lições que podem se extrair são muitas e variadas, mas destaco uma que está na linha da frente nas batalhas da educação medica: a empatia. Cada vez com maior frequência publicam-se trabalhos e ensaios avaliando a empatia dos estudantes e médicos, mostra-se a erosão desta qualidade, e surge o desafio: como prevenir este desgaste, que faz com que o estudante sai da faculdade pior do que entrou no quesito de relacionamento empático.
Os pesquisadores buscam recursos, sugerem intervenções criativas. E a maioria converge para um ponto que Tom Hanks utiliza eficazmente: aprender a preocupar-se dos outros, abandonar o narcisismo de olhar para o próprio umbigo. Aprender a sentir-se útil, para poder ajudar os outros. Algo sabido -também por aquelas mães que pregam com o exemplo- mas que a formação oficial esquece. Como dizia há anos uma aluna que frequentava nossas reuniões: gostaria de não esquecer o que aprendi com a minha avó! Um desafio educativo em tempos de egoísmo global. Deixo para o final o imenso filme de Sam Mendes -por sinal, baseado na história que seu avô lhe contou- 1917. Aqui está talvez o núcleo duro, o hardware, do maior recado para os que militam na educação médica. Ensinar a ter consciência de missão. Como diz Fernando Pessoa em Mensagem, falando dos reis de Portugal: “Minha missão me fez, como Deus ao mundo”. Somos a missão, a vocação que escolhemos, que aceitamos.
Enquanto contemplava emocionado as cenas do filme, acudiam à memória aquelas outras do admirável filme de Spielberg O Resgate do Soldado Ryan, que tenho desgastado de tanto usar em palestras e conferências. Quando se assume o compromisso da missão, não há obstáculo que nos freie, superam-se os medos, encontra-se tempo para cuidar dos que vão se atravessando no caminho, como faz o soldado britânico em desprendimento total da sua pessoa. E, encontra-se persistência, uma teimosia heroica, para avançar mesmo em contra da falsa prudência dos que militam do teu lado e que teoricamente querem o melhor para você. “A vida -diz novamente Pessoa – é o que fazemos dela”. Ninguém pode viver a nossa vida por nós. Nem carregar as nossas responsabilidades.
O exemplo é fonte de inspiração para os jovens profissionais, e a carência que hoje padecemos nesse quesito explica muitos dos descaminhos e desânimos. Como sempre, a culpa é dos que deveríamos dar exemplo, e nos omitimos, porque os dissabores acumulados nos anos de serviço, se não digeridos e sublimados, nos tornam céticos, esvaziam nossa esperança e sugam os sonhos dos jovens que temos do nosso lado. Uma síndrome curiosa de Drácula, que rende profissionais anêmicos de ideais.
Longe deixamos o Oscar, envolvidos neste turbilhão de considerações. Já advertimos que não queríamos nestas linhas dar palpite de vencedores, nem fazer avaliações técnicas. Porque, afinal, quem for levar o Oscar é um simples detalhe. Para nós, médicos e educadores, uma ideia deve estar clara: o Oscar corresponde sempre ao paciente. O médico, se for bom, se assumir o seu compromisso vocacional, pode aspirar, no máximo a um Oscar de ator coadjuvante. O protagonismo é, por direito, sempre do paciente. Mesmo que a academia -não a de Hollywood, mas a outra, a formadora de médicos- tenha a tentação de esquecer.
Comments 12
Magnífica exposição humanista, mostrada aqui, em relação à vida e à medicina!
Uma análise sintética porém intensa, dos filmes avaliados.
Parabéns, Pablo, colega e amigo, por seu discernimento!
Parabéns!!!! Valeu!!!
Parabéns!
Aprendemos a sentir o mundo de uma forma diferente quando assimilamos as vivências dos outros. Desta forma, conseguimos ajudar melhor as pessoas, pois compreendemos o que é relevante para elas.
Sempre, desde pequeno, primeiro, orientado pelo meu tio, acabei por ganhar uma profunda admiração por John Weyne. Seus filmes sempre me motivaram, principalmente em por a última pedra em todos os empreendimentos, apenas para não esticar muito em outros ensinamentos que aprendi com eles, como por exemplo, deve ser um homem no seu trabalho, nos seus relacionamentos, no como conduzir uma conversa agradável e firme, como deve ser um pai de família, um gestor, etc.
Os Bons filmes, deixam saudades, por que nos ajudaram a olhar a vida pela ótica da responsabilidade pessoal e do respeito profundo ao próximo, à sua pessoa, direitos e necessidades! Nada como conseguir passar estes ensinamentos e ao mesmo tempo ter quem nos ensine a aprendê-los e secundá-los em nossas vidas.
He leído en diagonal tu artículo. Como palpitaciones de un corazón sano a pesar de los stem, que me llenan de alegría y de nueva esperanza para la lucha en esta pasión por la educación de los que tenemos al lado en casa y de los quee rodean en el trabajo. Mil gracias
É sinceramente formidável e impressionante como o Prof. Dr. Pablo Gonzáles Blasco utiliza a “sétima arte” no ensino do humanismo na medicina.
Utiliza da observação e análise criteriosa de persongens dos mais variados filmes para expor aquilo que não vemos.
Nada obstante, ele percebe nas relações entre os seres humanos e traz para a vida diária da relação médico paciente.
Trazendo a nossa percepção que nós médicos precisamos entender que somos seres humanos para cuidar de seres humanos .
Como siempre una extraordinaria reflexión sobre la vocación de los médicos. Así como la dinámica en la relación alumno maestro. Pero de manera fundamental la ejecución de la misión a la estamos llamados… En favor de los más importantes: los pacientes.
Gracias
Y por si fuera poco tantas enseñanzas enmarcadas en el séptimo arte.
Muchas gracias
Meu inesquecível amigo Dr Pablo que sempre traz lição de vida e de humanidade, seja no trato entre médico e paciente, seja no olhar cotidiano das pessoas que buscam sentido em suas vidas, encorajando a todos a serem mais humanos e divinos. Meu abraço fraternal e agradecimento eterno!
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