Maurice Leblanc: “Arsène Lupin. Ladrão de Casaca”

Pablo González Blasco Livros 1 Comment

Maurice Leblanc: “Arsène Lupin. Ladrão de Casaca”Nova Fronteira, São Paulo, 1976. 170 págs.

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Alavancado pela ótima série de Netflix, inspirada nas aventuras do ladrão e elegante cavalheiro  –gentleman et  cambrioleur– , agendamos para a tertúlia literária mensal a primeira entrega de Maurice Leblanc, onde nos apresenta Arsène Lupin. O prefácio do livro, situa-nos no contexto: “Vivo, audacioso, impertinente, desafiando sem cessar o comissário (que aqui se chama Inspetor Ganimard), arrastando corações atrás de si e pondo os que riem do seu lado, zombando das posições conquistadas, ridicularizando os burgueses, socorrendo os fracos (….) Arsène Lupin, cavalheiro furtador, é um Robin Hood da Belle Époque.  Um Robin bem francês: não se leva muito a sério; suas armas mais mortíferas são as do engenho; não é um aristocrata que vive como anarquista, mas um anarquista que vive como um aristocrata; nunca é solene, sempre brincalhão; não dá o coração à mulher de sua vida, mas às mulheres de suas vidas”. 

Essa descontração do protagonista, que deixa em segundo plano até as consequências morais dos seus furtos -que nunca são propriamente crimes, mas sempre brincadeiras para acordar os interlocutores- surgiu como um destaque nas nossas conversas de pensadores. Excepcionalmente, por internet, porque no momento que vivemos, é a única maneira de montar uma tertúlia. Lembro de alguém falar: “Vendo o protagonista, pensei que eu também quero bom humor, e gratidão. Não levar-me tão a sério, que não vale a pena. Sem polarizações, sem ódios que dividem, que é o nosso quotidiano destes momentos. Levamo-nos, infelizmente, muito a sério. Um desperdiço”. 

Quem apresenta o livro escreve no prefacio com ar de saudades: “Pessoas da minha idade falam entre si de Arsène Lupin como de um herói tão conhecido, que o menor erro de memória a propósito de suas aventuras soa como uma incongruência. E, de uns anos para cá, as novas gerações vêm sentindo o mesmo fervor por esse velho amigo de seus avós e pais, e que para eles tem a mesma idade de Ivanhoé, do Mourron vermelho ou de Fantomas, a idade em que os heróis imaginários entram sem uma ruga na imortalidade”. 

Os diálogos são engraçados e elegantes, propiciando um esboço adequado das personagens. “Ouvi dizer que não há ladrão que não deixe atrás de si um indício qualquer. — Há um, Arsène Lupin. — Por quê? — Por quê? Por não pensar apenas no roubo que comete, mas em todas as circunstâncias que poderiam denunciá-lo (…) Meu caro senhor, Arsène Lupin não deixa nada atrás de si. O acaso não existe para ele”.  Lembrei da nossa última tertúlia, onde comentamos os conselhos do diabo de Lewis ao aprendiz, e o cuidado necessário com o detalhe. É justamente isso que constitui a marca registrada de Lupin: o detalhe. 

E também o humor embutido em cada ação. Nada é violento, nem seco. Suas ações rodeiam-se desse savoir faire, impregnado de suavidade. Doucement, por utilizar os termos corretos. “Tudo isso tinha um ar de mágica, e denunciava a maneira humorística de Arsène Lupin, ladrão, vá lá, mas também diletante. Trabalhava por gosto e vocação, mas também para divertir-se. Dava a impressão do autor que se distrai com a própria peça e, nos bastidores, ri francamente de suas saídas espirituosas e da situação que imaginou”. 

O ladrão de casaca, o homem das mil faces, que chega a duvidar da sua identidade. “Eu mesmo não sei mais quem sou. Num espelho, não me reconheceria”. E que nunca perde a esportiva quando se depara com a autoridade, que respeita….e até ajuda em casos complicados. Porque Lupin, joga em ambos times: rouba quando necessário, e encontra o vilão, o mau da história, quando a polícia parece perdida. Afinal noblesse oblige. “Meu Deus, como me alegra descansar os olhos no rosto dum homem honesto! Não aguento mais essas caras de espiões e delatores que passam revista dez vezes por dia em meus bolsos e em minha modesta cela, para ter certeza de que não estou preparando uma evasão. Puxa, como o governo se preocupa comigo!” E o inspetor, que reconhece a classe do adversário e os serviços prestados, acrescenta: “Felizmente não existe uma dúzia como você, senão teríamos de fechar a loja”. 

Um dos capítulos traz à baila o que, depois, seria um duelo clássico. De um lado Lupin, do outro Sherlock Holmes, aqui disfarçado com um nome – Herlock Sholmes– que não faz senão dar um zoom na luva que o francês joga no britânico. O encontro resulta na perda do relógio do inglês: “Esqueceu o seu relógio. — Meu relógio? — Sim, ele se perdeu no meu bolso. Entregou-o, desculpando-se: — Perdoe. .. um mau hábito. .. Porque tiraram o meu, não é razão para que eu o prive do seu – Justamente, senhor — disse o inglês com nobreza —, quando se trata de um adversário como Arsène Lupin, Herlock Sholmes não aproveita as oportunidades. .. ele as cria”. E o raciocínio final: “Tem razão. Quem foi sempre há de ser. Arsène Lupin não é e não pode ser outro senão Arsène Lupin, e entre você e ele não pode sequer haver uma lembrança. .. Perdoe. Deveria ter compreendido que até a minha presença ao seu lado é um insulto”. 

O inspetor Ganimard está obcecado com Lupin. Seus colegas lhe criticam: “Você somente pensa nele, suspeita dele a todo momento, o vê em todo canto….Sim, o vejo por todo lado, porque está em todo lado”. Essa é a arte de Lupin. Mesmo ausente, ele se faz presente na suspeita que faz pairar nos seus adversários. E esse é talvez o atrativo desta leitura, que traz um aprendizado essencial: “As coisas mais simples são aquelas em que pensamos por último”. Se aprendêssemos de Arsène Lupin, além de não nos levar muito a sério e disfrutar da vida com bom humor, saberíamos apreciar o encanto das pequenas coisas –le  piccolé cose, dizia Franco Zefirelli quando dirigia seus filmes, cheios de luz e de minúcias, aquarelas que alegravam a vida. O demônio mora no detalhe, sem dúvida; mas a alegria também. É lá que acontecem as grandes batalhas da felicidade humana. 

Comments 1

  1. Excelente! Ontem comecei a ver esta série e logo me interessei em ler o livro! Vem a calhar muito bem está resenha que me empurra,mais ainda, a lê-lo! Valeu!

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