Charles Dickens: Um conto de Natal

Pablo González Blasco Livros 1 Comment

L& PM Pocket. 111 pgs.

A releitura do Conto de Natal, o clássico de Dickens, é sempre uma tentação convidativa nesta  época do ano. Sabendo disso, e com a certeza de que muitos dos participantes da tertúlia literária já o tinham lido, decidimos escalá-lo para nossa conversa alguns dias antes do Natal. Afinal, todos somos um pouco como o protagonista, Scrooge, que precisa da lembrança atual dos natais passados para entender o presente, visualizar o futuro, e mesmo assim esquece.

O homem é um ser que esquece , diziam os clássicos latinos. Não esquece os detalhes, a lista de agravos, as desfeitas que fizeram com ele; tudo isso ele o guarda ciosamente, e muitas vezes acaba azedando. O esquecimento é, lamentavelmente, das coisas importantes: dos sonhos, dos projetos, dos propósitos de melhora. Enfim, Scrooge personalizado em cada um. Por isso, a pequena obra maestra de Dickens nunca perde atualidade.

A maestria de Dickens está muito bem descrita no prefácio: “Colocou-se sempre ao lado dos velhos, dos órfãos desamparados, das crianças desumanamente empregadas na indústria, dos pais de família desempregados. Em sua literatura, lamentou sobre a simplicidade e a inocência perdidas e, de modo engajado e edificante – na melhor acepção do termo –, tentou trazer à tona os melhores sentimentos das pessoas, sem nunca deixar de lado o entretenimento. São estes conflitos modernos da vida real, de perda de valores ancestrais e familiares, de degradação dos laços sociais, que Dickens resolve na literatura e, especificamente, em Um Conto de Natal, mas sem jamais manchar, ofender ou criticar abertamente as instituições vitorianas. Dickens esteve entre os primeiros a detectar os males da sociedade moderna, ainda mais partindo do coração da poderosa Inglaterra vitoriana, e Scrooge, com sua ganância pelo lucro, é o seu símbolo maior para toda a crueldade do capitalismo selvagem. Deste modo, onde ainda houver sentimentos  de solidariedade para com os excluídos, amor às reuniões familiares, vontade de congregação entre as pessoas e estranheza frente às frias relações de comércio e trabalho, Um Conto de Natal continuará atual”.

O que nos leva ao esquecimento, perguntou-se logo de início na tertúlia? Talvez ir tocando a vida,  estar muito ocupados  -focados, se diz agora- com o que julgamos que realmente importa (e depois vemos que carece de importância). Avaro e carrancudo, Scrooge é intratável. Cuida da sua vida, despreza os outros -que considera frívolos e dispersos- vai ao que interessa, está “focado”. Alguma semelhança com o nosso atarefado dia a dia?

 Anoto a descrição magnifica da personagem: “Scrooge nunca mandou apagar de seu escritório o nome do antigo sócio. E lá estava ele, anos depois, gravado sobre a porta da firma: Scrooge & Marley. A firma era conhecida como Scrooge & Marley. Às vezes, os novatos chamavam Scrooge de Scrooge e, outras vezes, de Marley, mas ele atendia sempre, pois dava tudo no mesmo (…) Scrooge era um tremendo pão-duro! Um velho sovina, avarento, mesquinho, unha de fome e ganancioso! Duro e áspero como uma pedra de amolar, não era possível arrancar dele a menor faísca de generosidade. Era solitário e fechado como uma ostra. A sua frieza congelou o seu rosto e encompridou ainda mais o seu nariz pontudo, murchou suas bochechas e endureceu seu caminhar; deixou seus olhos vermelhos, azulou seus lábios finos e tornou ferino o tom de sua áspera voz. Uma camada de gelo cobria sua cabeça, suas sobrancelhas e seu queixo áspero. Aonde ia, levava consigo sua frieza, que gelava o escritório nos dias mais quentes do ano e não degelava nem um grau no Natal”.

A ironia, humor fino de Dickens desenha a personagem que pilota o conto do começo ao fim. “O que ele mais gostava neste mundo era passar através da multidão sem precisar demonstrar qualquer simpatia humana”. Afinal, pensava -pensamos?- para que perder o tempo com essa gentalha que nos distrai do que é importante. O diálogo com o sobrinho é cómico, mas tremendo, talvez pela sinceridade que destila: “Que motivos você tem para estar feliz, sendo pobre desse jeito? – Se for por isso, que motivos tem o senhor para estar tão mal-humorado, que razões para estar tão ranzinza, sendo rico desse jeito? – respondeu o sobrinho, alegremente”. Scrooge volta à carga, mais para convencer-se ele mesmo, do que para conquistar o interlocutor: “O que é o Natal para você, senão a época de não ter dinheiro para pagar sequer suas contas? A época de se dar conta de que está um ano mais velho e nem uma hora mais rico; o momento para fazer um balanço nos livros de contabilidade e ver que cada item, nestes doze últimos meses, só lhe trouxe prejuízo?”.

Como bem foi apontado pelos pensadores da tertúlia, ninguém nasce sendo Scrooge. Forma-se desse jeito, e até por caminhos tortos, inesperados. A criança do Natal passado -Scrooge menino- que não foi cuidado. A criança que todos nós temos e que descuidamos também; e, com o passar dos anos, temos vergonha de ser crianças, de renovar-nos, de cuidar desse infante que todos levamos dentro. Lembrei de Fernando Pessoa, quando dizia que a vida é o que fazemos dela. O que eu fiz, o que eu faço, com a minha vida? Pergunta inevitável nesta época do ano, no balanço natalino, agora catalisado pela leitura de Dickens.

Surgem propósitos honestos, como acontece com o protagonista: “pensar nas pessoas mais pobres como seus legítimos companheiros na viagem para o túmulo, e não como uma raça estranha, viajando para um outro lugar”. E as fichas caindo: “A busca da fraternidade e do bem comum é que deveria ter sido o meu negócio. A caridade, a misericórdia, a tolerância, a paciência, a bondade, tudo isso era parte do meu negócio e eu não sabia”

 E, enquanto caem, doem: a visão nua e crua da nossa pobre realidade, das toneladas de omissões, pesam muito: “Seu sofrimento, e de todos os outros, era querer fazer o bem na Terra e não conseguir, por ter perdido esse poder para sempre ….Ele percebeu mil odores que flutuavam no ar, cada um ligado a mil pensamentos, esperanças, alegrias e afetos esquecidos havia muito, muito tempo….Sua riqueza não lhe serve para nada, nem para fazer um bem qualquer a alguém. Sequer lhe serve para tornar a sua própria vida mais confortável”.

A questão, como sempre, em todos os Natais (e em todas as leituras do conto de Dickens) é quanto vai durar essa visão que nos leva a mudar. As distrações nos fazem esquecer, e o Natal apresenta um menu farto de distrações que amputam a reflexão necessária : “A verdade é que ele tentava ser engraçado para distrair a sua própria atenção e diminuir seu terror”.

A data de validade dos propósitos de melhora costuma ser curta….porque o homem é um ser que esquece. Talvez por isso, Dickens apresenta a Scrooge o Natal futuro -como vai ser quando você não estiver por aqui, o que você deixou, qual é o teu legado. Imaginar-se no além túmulo tem um curioso poder de prolongar a eficácia dos propósitos. E Dickens injeta realismo nesse momento, além de bom humor, e esperança. Sem tragédias, mas com o pé no chão. Anoto textualmente: “Oh, Morte fria, rígida e terrível, faz aqui o teu altar, enfeitado com todos os terrores que estão sob o teu comando, pois este é o teu domínio! Quando um morto é amado, reverenciado e honrado, tu não consegues tocar em um único fio de cabelo dele para alcançar teus perversos objetivos, nem tornar odiosas as feições de alguém. Quando tu chegas, não importa que o pulso e o coração não batam, nem que a mão esteja pesada e imóvel, mas que tenha sido aberta, generosa e sincera, que o coração tenha sido corajoso, sincero e afetuoso, e que o pulso tenha sido o de um homem. Podes golpear, sombra, golpeia à vontade! E das feridas que fizeres verás jorrar apenas as boas ações que semeiam no mundo a vida imortal!”.

Tive oportunidade de consultar, em outro livro que trata do universo de Dickens, como uma lição de humanidade, onde o autor aponta: “Os livros de Dickens são uma ótima terapia para as pessoas que tomam as coisas muito a sério e não sabem rir-se de si mesmos”.

De volta para o Natal presente, Scrooge sente-se outro. “Nunca tinha imaginado que uma simples caminhada pudesse lhe trazer tamanha felicidade. Tornara-se sábio o bastante para entender que nunca algo de bom acontece neste mundo sem que alguém encontre nisso motivo de riso e zombaria”. Um belo resultado que emula, no nosso interior, a mudança necessária. Sem garantias, porque esquecemos. Sempre. E por isso, uma vez e outra, a leitura do Conto de Natal torna-se novidade. O livro é o mesmo, mas, como dizia Borges, quando voltamos uma vez e outra sobre o mesmo livro, traz novidades porque somos nós os que mudamos. Tomara que de modo eficaz!!

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