Frank Wynne: “Eu fui Vermeer”.

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

Frank Wynne: “Eu fui Vermeer”. (A Lenda do Falsário que enganou os nazistas). Companhia das Letras. São Paulo, 2008. 295 págs.

Um escritor e jornalista irlandês leva-nos até o difícil mundo da arte. Não que a arte seja difícil, mas o difícil mesmo é acreditá-la como tal nos cânones prescritos. O que não quer dizer que sejam os melhores, ou irrefutáveis; simplesmente são os vigentes e, justamente por isso, são prato cheio para o mercado negro da arte, para a falsificação. Anota Wynne: ” Falsificação é o lado escuro da arte, o vício sem o qual a virtude é impossível. Enquanto a humanidade cobiçar objetos por sua história, sua beleza, sua proximidade com o gênio, o falsário estará a postos com um sorriso zombeteiro, pronto para satisfazer a demanda”. A vida e arte de Han Van Meegeren, o falsário que incarnou Vermeer com perfeição, é o tema deste instigante livro.

O escritor mergulha, a modo de preambulo, no mundo das falsificações, já que “o porquê da falsificação é mais espinhoso que o como. Para os críticos de arte, o falsário é um artista medíocre em busca de vingança; para a mídia, é um trapaceiro interessado unicamente em dinheiro; para o apologista, é igual aos mestres que forjou; para o público, muitas vezes, é um herói popular”. Entrevista outros falsários, que lhe ilustram acerca desse mundo, escuro e, ao mesmo tempo, sugestivo: “O que realmente me fascina  é o ‘efeito varinha mágica’; você rabisca a assinatura do pintor certo no lugar certo e, de repente, as portas se abrem. Eu custo a crer que criei Picassos autênticos. Mas toda vez que folheio o catalogue raisonné, lá estão eles”. E continua: “A maioria das falsificações são vendidas de uma pessoa para outra, e nesse processo, elas se tornam mais autênticas: quanto mais vezes são vendidas, quanto mais tempo ficam numa galeria, mais autênticas são”.

Um artista não reconhecido, que vive no século XX,  quando a fotografia desloca o realismo pictórico que reage com o movimento impressionista. Essa era a época que lhe tocou viver a Han van Meegeren. O conselho que lhe deram quando jovem, é o estopim para esse anacronismo pictórico: “não basta desenhar, nem desenhar bem. Você não pode competir com a câmara em termos de precisão mecânica -nem deve. O pintor, para ser grande, tem de ir além da superfície, tem de pintar o que está dentro, o que ele vê dentro do seu tema”.

Não compete com a câmara, nem embarca nos estilos do momento. Simplesmente se transporta 3 séculos atrás, na imitação das pinturas do século de ouro holandês. “Mesmo em seus tenros dezoito anos, Han aspirava a ser um gênio, não um artista. Saber fazer as próprias tintas era uma das grandes habilidades do verdadeiro artista e, para ele, uma ferramenta inestimável para o falsário”

O sucesso de Han não é sorte, mas competência. O livro descreve com minúcia os processos de reprodução dos grandes mestres, com delicada perfeição. Uma dificuldade evidente, como escreve o autor: “O artista se arma apenas de talento; o falsário é um verdadeiro homem do Renascimento. Todo falsário anseia por reconhecimento, por um lugar no catálogo, por um espaço numa galeria ilustre para chamar de lar. Embora haja os que se contentem com produzir uma batelada de copias reconhecíveis ou pastiches, o bom falsário é perfeccionista. Para ter sucesso precisa ser competente como historiador de arte, restaurador, químico, grafólogo e documentalista; só assim consegue aproveitar seus talentos de charlatão. Essa não é uma carreira para indolentes”.

Uma vez disparada a primeira tentativa Van Meegeren é tomado pelo próprio entusiasmo, e também pelo sucesso. “Acreditava que por ser artista não tinha de acatar a moralidade burguesa convencional….seus próprios pecadilhos eram plenamente perdoáveis, (daí ter um caso e roubar a mulher de um dos mais eminentes críticos de arte)”. Escreve o autor: “uma parte de Han acreditava que descobrira esses quadros (de um período desconhecido da vida de Vermeer) e não que os criara (veio preencher esse vazio, que os críticos ansiavam)”.

Porque afinal, o grande motor da ação do protagonista, aliado a sua inegável destreza artística, é mesmo zombar dos críticos que o subqualificaram quando pintava sem imitar ninguém. “A opinião especializada de críticos equivalia a pouco mais que um palpite sacramentado O crítico podia falhar, mas contra seu julgamento não havia recursos. O destino de um quadro, de um artista, podia depender do instinto de um único homem (…) O falsário só precisa identificar os desejos mais profundos dos críticos e realizá-los; agora que sabia o que eles mais queriam, Han tinha apenas de transformar seus sonhos em realidade. O mundo quer ser enganado”.

A arte não é inofensiva e transforma o próprio artista. É notável o episódio com o camponês que lhes serve de modelo para o Cristo da Ceia de Emaús. O lavrador recusa o dinheiro (não se sente digno) e Han reza pela primeira vez em vinte anos. A arte transforma até o artista. Depois, quando o quadro estava numa galeria, como um Vermeer, Han entrou na exposição e ficou parado catando migalhas de elogios. Até tentou se aproximar demais do quadro e um guarda o agarrou pelo braço: não toque, é uma pintura muito valiosa. Aquilo era a glória

Descoberta a falsificação, ou melhor, a possível colaboração com os invasores nazistas, vendendo obras primas para eles, Van Meegeren é colocado em pauta de juízo. E aqui surge o impasse: “Este era o dilema de Han: se contasse a verdade, sua vida seria poupada, mas seus quadros seriam ridicularizados e, em conformidade com a lei holandesa, destruídos. Se não dissesse nada, morreria, porém a sua obra continuaria viva. O morte ronda o falsário, seja literalmente, como pena capital, seja culturalmente, como censura”.

O diálogo com o tribunal de críticos, é emblemático.

-“O senhor nos fez de bobos, mas a sua obra foi meticulosamente concebida para preencher a lacuna entre duas fases importantes de Vermeer, um período sobre o qual nada sabemos. Para alguns de nós, as suas criações satisfizeram uma ambição pessoal e secreta de descobrir, uma vez na vida, uma obra prima grandiosa. Ciente dos nossos desejos o senhor nos preparou uma armadilha; e caminhamos para ela, alguns com ansiedade, outros com menos pressa, mas todos acabamos caindo. Foi a nossa dedicação, o nosso entusiasmo que nos levaram ao engano; a nossa busca da verdade e da beleza nos cegou o nos traiu”.

– O processo que inventei era tão satisfatório que eu perdi o controle sobre mim mesmo. Não tinha força de vontade, estava impotente, obrigado a prosseguir.

-Mas ganhou um bom dinheiro com isso

-E não tinha escolha. Se as vendesse barato estaria provando que essas obras eram falsas. Não tive escolha. Os críticos me difamaram de tal maneira que eu não podia mais expor. Críticos que não entendiam coisa nenhuma de arte me destruíram sistemática e maldosamente.

O reconhecimento da “academia” de que foi enganada provocou-me reflexões suculentas no mundo da educação, a minha praia quotidiana. Afinal, o que é hoje excelência em educação, fora preencher uma série de protocolos, processos, e prescrições “dos autorizados”? Algo que, sabemos e comprovamos diariamente, não atende à realidade. Diplomas concedidos, com louvor, a ignorantes supinos; não incomodar o aluno que, na verdade é o cliente que não se pode perder; certificações embasadas em “produção científica” do mais questionável, ignorando a incapacidade docente que pretende, sem sucesso, formar profissionais. E por ai afora. De fato, sintonizei com o falsário e, como outsider neste universo da educação, a vontade de driblar os protocolos surge como tentação convidativa. Na verdade, o mercado faz isso todo dia, ignorando as certificações e atendendo ao valor que as pessoas apresentam. É só consultar as empresas de sucesso.

A propósito desta sugestiva analogia, arte e educação, recolhe-se a conhecida frase de Picasso: “toda criança é artista. O problema é: como continuar sendo artista, depois de adulto”. Rapidamente, como um arco voltaico, minha memória transportou-me até  aquele TED de um conhecido educador britânico, onde afirma que as escolas -a educação formal da academia- matam a criatividade. O que nos leva a outro, que descortina o verdadeiro papel de um educador, que nada tem a ver com protocolos e processos. Vale conferir, para colocar mais lenha na fogueira.

Anota Wynne, “ o legado de Han van Meegeren para o mundo da arte é a dúvida. Sua obra, mais do que qualquer outro falsário, abalou os alicerces de um universo dependente da autenticação de peritos”. Eu modestamente penso, que a dúvida semeada pelo caso de Han não é apenas para o mundo da arte, mas para a própria vida. E para este mundo em que vivemos -e parece que gostamos- onde todos opinam sobre tudo, precisamos da aprovação social daquilo que fazemos, investimos de autoridade personagens ridículos. No fundo, tudo fruto de uma imensa carência afetiva.

Como um grande amigo costumava me dizer há muitos anos: “não esqueças que as pessoas precisam -querem precisar- de plateia”. Um mundo assim, é um ótimo caldo de cultura para os falsários, visto que, contra todo bom senso, “a atribuição de um esperto tem o dom de converter uma falsificação sem valor num velho mestre inestimável”.

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