Fred Vargas: “Um Lugar incerto”.

Pablo González BlascoLivros 1 Comments

Fred Vargas: “Um Lugar incerto”. Companhia das Letras. São Paulo 2011. 368 págs.

A tertúlia literária deste mês, leva-nos até uma autora francesa, historiadora, especialista na primeira guerra mundial…..que gosta de escrever romances policiais. Evidentemente, sobre gostos não há nada escrito, cada um tem suas manias, mas confesso que me surpreendeu o curriculum acadêmico da escritora que, aliás, tem imenso sucesso de vendas, sendo traduzida para mais de 30 idiomas. Um velho amigo já falecido, grande leitor,  tinha me comentado sobre ela. Os comentários dos bibliófilos sempre devem ser levados em consideração.

A livro agradou a todos. Um sucesso. Mas os motivos do apreço coletivo foram diferentes. Quer dizer, é possível ler um livro, gostar dele, e ver coisas completamente diferentes, ser captado por aspectos variados. Por tanto um sucesso em duplo. Esse é o cerne da tertúlia literária, saber apreciar a literatura, permitir-se interpretar, gostar, parar de ler, voltar sobre o lido, ou simplesmente deixar nas entrelinhas, e continuar  contemplando outras nuances.

Houve quem se encantou pela história, digamos, pela trama policial. Outros prenderam-se às personagens, e alguns apontaram acerca da atualidade da narrativa. Também não faltou quem considerou o inspector Adamsberg um fenômeno da sagacidade e rapidez mental, enquanto outros referiram ser uma personagem vaga, difusa, pouco definida. 

Eu pessoalmente, devo confessar que a história pareceu-me com pouco nexo, vaga, salpicada de aspectos quase bizarros. Mas, o trato que Vargas faz das personagens, esse sim, é o ponto alto do romance. E mais do que um romance -com princípio, meio e fim- pareceu-me o capítulo de uma série televisiva, pois com frequência remete a outras obras da mesma escritora, que tem Adamsberg por protagonista. Isto não implica em nenhum desabono, há séries ótimas, também policiais.

Adamsberg é um sujeito curioso. Chamou-me a atenção como alguém de notável inteligência e com raciocínio rápido, que consegue coordenar uma equipe onde todos são diferentes -e com peculiaridades variadas e curiosas- faz questão de mostrar que não fala nenhuma língua (fora o francês, é claro), e que tem lacunas culturais que poderia, sem muito esforço, preencher. Mas imagino que faz parte do charme do inspector que comanda o romance…e os outros capítulos das séries policiais de Fred Vargas.

Vamos a alguns destaques das personagens, que são divertidos, prendem a atenção. Danglard, o comandante, braço direito do inspector, toda uma figura, anglófilo, além de um poço de cultura (não de sabedoria). “O comandante estava ancorado na elegância do vestuário britânico por trinta anos, com o qual contava para compensar sua natural falta de estilo. Exceto quando ele abandonava toda contenção, que é o que faz a diferença entre o francês anglófilo e o inglês real (…) Adamsberg imaginou a mente de Danglard como um bloco de fino calcário no qual a chuva de dúvidas havia perfurado inúmeras cavidades onde preocupações não resolvidas se depositariam como poças. Todos os dias, três ou quatro dessas cavidades estavam simultaneamente ativas. A energia que Danglard gastou para resolver essas questões e secar as lacunas era em vão, porque assim que uma lacuna era curada, liberava espaço para criar outras, cheias de novas perguntas penetrantes”. Por tanto, cultura, erudição, mas falta-lhe senso comum para preencher as lacunas. Que é justamente a peça que Adamsberg sempre tem à mão.

Outro elemento da equipe, um tenente jovem e simplório:  “Estalère, tão obtuso quanto curioso, foi o único membro da Brigada incapaz de distinguir o útil do inútil em Adamsberg. Incapaz de ignorar uma única de suas observações. Para o jovem, cada palavra do comissário necessariamente tinha um significado, e ele o procurava. E para Danglard, cuja mente elástica acelerava as ideias, Estalère representava uma perda de tempo irritante e constante”. E mais adiante, um mano a mano entre Estalère e outro membro da equipe: “Ele sabia que Adamsberg tinha uma tendência a escolher a caneca de aro grosso decorada com um pássaro laranja. Voisenet, um ornitólogo, disse desdenhosamente que essa ave não se parecia com nada razoável e, assim, os hábitos foram ancorados. Não havia servilismo na ânsia de Estalère para memorizar o gosto de todos, mas sim uma paixão pelos detalhes técnicos, por pequenos e numerosos que fossem, o que talvez o tornasse inapto para a síntese”. Quer dizer, conhece todas as árvores, mas é incapaz de visualizar o bosque.

Junto com as personagens, Vargas cria situações cómicas, que te fazem rir sozinho, como a derivação de um nome, que é possível pista para o crime, para uma interjeição usada a toda hora: Plog! “O que você entende por “Plog”? — É uma palavra cujo significado varia de acordo com o contexto. O que pode significar “certamente”, “exatamente”, “ok”, “compreendido”, “encontrado” ou às vezes “absurdo”. É como uma gota de verdade que cai”.

Anota também verdades e reflexões que seriam de peso, não fosse o decorrer da história, que oscila do sério ao ridículo, com imensa facilidade: “Há coisas que o homem não está apto para conceber até que outro homem tenha a louca ideia de fazê-las. Mas, uma vez realizadas, sejam elas boas ou más, entram no patrimônio da humanidade. Utilizável, reprodutível e até superável (..) A palavra é a mais mortal das balas se você souber como colocá-la bem na sua cabeça (…) Não exclua ninguém. Para cada ganância ou medo, todo homem tem uma granada debaixo da cama (..) Ele não vai me contar mais se eu não contar mais a ele. O sigilo profissional bloqueia as manobras dos dois lados”.

Este diálogo por exemplo é um exemplo desse dualismo:

-Sua filha sabe, é claro.

-É claro.

-E ele sabe que ela sabe?”

-É claro.

 -Assim anda o mundo, na espiral da dissimulação. 

Uma experiência interessante o contato com Fred Vargas e suas personagens peculiares. Sem grandes preocupações de se isto é literatura propriamente dita, ou não. Serve para conversar, para ver o mundo com os olhos dos outros. Impossível não evocar aquele grande conselho de Daniel Pennac, no seu livro clássico Como um Romance, “apalpamos os direitos imprescritíveis do leitor: o direito de não ler, de pular páginas, de não terminar um livro, de ler qualquer coisa e em qualquer lugar, de reler, de calar”.

Comments 1

  1. Pela primeira vez, não apreciei a leitura indicada inteiramente. É claro que há muitos pontos positivos, como a caracterização de cada funcionário de Adamsberg; e ele próprio muito empático e intuitivo. Mas a trama muito complicada e muito esquisita, me tentaram a largar o livro. Entretanto fui até o fim. Mas não recomendaria essa leitura para outra pessoa.

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