Evelyn Waugh: A Volta à Velha Mansão
Evelyn Waugh: A Volta à Velha Mansão.(Retorno a Brideshead).Ed. Agir, Rio de Janeiro, 1965. 348 págs.
Também eu voltei sobre o livro de Evelyn Waugh, após muitos anos da primeira leitura. Em semelhança com o protagonista, o Capitão Charles Ryder, que em elegante flashback evoca suas lembranças da velha mansão, de Brideshead. E o faz com pesar, não isento de serenidade, comparando aquelas vivências agitadas e turbulentas, à situação que vive no momento presente: “Deu-se comigo e o Exército fato idêntico, passando pelo namoro insistente até chegar à fase atual, em que restavam apenas os frios laços da lei, do dever e do hábito. Eu representei todas as cenas da tragédia conjugal, e verifiquei que os arrufos dos primeiros tempos se tornavam mais frequentes, as lágrimas menos comoventes, e que a reconciliação já não era tão doce”.
A nobreza inglesa do começo do século XX está aqui retratada. Carente de valores, em frivolidade deslumbrante, e de uma religiosidade postiça que para um Waugh convertido ao catolicismo, era elemento dissonante. Como comentei a propósito de um ótimo livro sobre escritores conversos, Waugh era externamente um esteta, mas sobre ele a Igreja católica não exerceu o atrativo estético. O que procurava e encontrou foi autoridade e universalidade. “Uma Igreja nacional, por maior que fosse o Império, nunca poderia falar com autoridade universal e, sendo territorial, ver-se-á necessariamente limitada…A Igreja de Inglaterra converteu-se simplesmente na igreja do clube de golfe e das tropas”.
O mano a mano entre Charles e Sebastian, a amizade que nasce nos tempos de estudo em Oxford, é a pista de decolagem para este romance. “Tenho vergonha de mim mesmo — disse Sebastian sério. — Não quero você metido com minha família. Eles são tão diabolicamente encantadores! Desde que me conheço, roubam-me tudo que desejo. Se você se deixar fascinar por eles, deixará de ser meu amigo para ser amigo deles, mas não vou deixar isso acontecer (…) Você pode achar que não é da minha conta, mas sinto uma certa responsabilidade. Você sabe tão bem como eu que seu… bem, desde a guerra, seu pai perdeu um pouco a noção das coisas, vivendo meio alheio. Não posso ficar de braços cruzados vendo você cometer erros que uma palavra oportuna poderia evitar (…) Quando você chegou, lembro-me que o aconselhei a se vestir como se estivesse em uma casa de campo. Sua indumentária atual parece uma combinação desastrada de um traje próprio para um sarau de arrabalde e o de um concurso coral de algum parque suburbano”.
As lembranças da infância surgem na mente do protagonista, enquanto se depara com uma família de formação católica, onde o patriarca a abandona, para se envolver com a amante. Sua deficiente formação no anglicanismo não ajuda muito: “Em minha infância, levavam-me toda semana à igreja, e no primário ia diariamente à capela, mas, em compensação, quando comecei a frequentar o ginásio fui dispensado de assistir aos serviços religiosos durante as férias. Meus professores de teologia ensinaram-me que os textos bíblicos não eram absolutamente dignos de crédito. Nunca insinuaram que eu devesse rezar. Meu pai só ia à igreja em acontecimentos de família, e ainda assim fazendo troça. Acho que minha mãe era piedosa. Em tempos passados, estranhei que ela tivesse julgado ser seu dever deixar-nos, meu pai e eu, para seguir com uma ambulância para a Sérvia, e morrer de exaustão na Bósnia. Percebi, mais tarde, que eu era como ela. Só muito depois reconheci umas tantas coisas que, em 1923, nunca levei a sério; passei, então, a aceitar tanto o sobrenatural como a realidade. Naquele verão em Brideshead eu não podia compreender tudo isso”.
A reflexão rende temas de fundo: “Somos pouco generosos em nossas reminiscências, esquecendo os sentimentos puros de nossa mocidade, e recordando apenas os longos dias de verão vividos em irresponsável dissipação! Faltará sinceridade na história de todo adolescente, se se omitir a saudade da inocência perdida, os remorsos e as boas resoluções, as horas negras, que, como o zero na roleta aparecem com uma regularidade quase previsível”.
O mundo feminino, o despertar para o amor-paixão, é centro deste romance. “A convivência com um homem ensina a conhecer as mulheres que ele amou” -diz em certo ponto. “Assim como podemos observar uma pessoa a distância com o auxílio de um binóculo, lhe estudar o rosto e a roupa nos menores detalhes, e ter a impressão de que ela está ao alcance de nossa mão, ficando mesmo espantados porque ela não nos ouve, nem sequer olha para nós quando nos mexemos, e depois, a olho nu, lembramo-nos de repente que para ela nós somos apenas um ponto no espaço, uma figura vaga. Eu a conhecia, mas ela não sabia quem eu era”
O mundo interior de Julia, sua paixão, e seu caminho posterior de conversão: “Ela estudava sem paixão, e inteiramente divorciada da realidade, quem deveria escolher para marido. Da mesma maneira que os estrategistas hesitam debruçados sobre o mapa a respeito da mudança de alguns alfinetes e linhas traçadas a giz colorido, porque fora daquela sala, longe das vistas dos oficiais estudiosos, um milímetro de diferença poderá acarretar a ruína do passado, do presente e do futuro; ou a vida. E, assim, acabara criando em sua imaginação uma figura fantástica, o homem de seus sonhos; em sua fantasia, ele era um diplomata inglês, cuja beleza, sem ser muito máscula, chamaria a atenção; devia estar servindo no exterior, e possuir uma casa não tão grande quanto Brideshead, porém mais próxima de Londres; devia ser velho, uns trinta e dois ou trinta e três anos; viúvo de data recente, vítima da fatalidade; Julia achava preferível que fosse um homem amadurecido pela dor; com um futuro brilhante diante de si, mas que a solidão tornara apático. Ela tinha suas dúvidas se ficaria bem incluir nesse retrato que ele corria o risco de cair nas mãos de alguma aventureira estrangeira sem escrúpulos; enfim, ele precisava da influência de sangue novo para levá-lo à embaixada em Paris. Agnóstico não muito convicto, seria simpático às demonstrações do culto católico, e concordaria de bom grado que seus filhos fossem educados dentro da Igreja; contudo acharia mais prudente limitar sua família a dois meninos e uma menina, que deveriam nascer com um intervalo regular entre cada um, num período de doze anos, e não exigiria, como um marido católico poderia fazer, um filho por ano. Além do ordenado, possuiria ainda uma renda anual de doze mil libras, e não teria parentes próximos. Um homem assim seria o ideal, pensava Julia, e ela andava à sua procura, quando me encontrou pela primeira vez na estação. Eu não correspondia ao retrato. Foi o que ela me disse, sem pronunciar uma palavra, quando tirou o cigarro de minha boca”.
Outras personagens magnificamente descritas, fazem aparição no romance. O administrador que teoricamente ajuda para Sebastian não delapidar o patrimônio: “Dizia gostar do passado, mas sempre me deu a impressão de considerar um pouco disparatada a brilhante companhia de seres vivos ou mortos de sua convivência; só ele, Mr. Samgrass, realmente existia, os outros eram apenas figuras fantasmagóricas num cortejo fantástico. Ele era o turista da era vitoriana, sólido e patrocinador, assistindo de camarote a essa estranha parada”. A velha babá, um dos poucos redutos de bom senso entre aristocratas desvairados: “— Bem — disse ela —, você está com um ar malacafento. Deve ser essa comida estrangeira que não lhe fez bem. Agora, que está de volta, precisa engordar. Pelo jeito, também andou farreando, é o que eu vejo nos seus olhos, naturalmente andou dançando. — Na opinião da babá Hawkins, a alta sociedade passava uma boa parte da sua existência nos salões de baile. — Essa camisa está pedindo conserto. Acho bom você me dar essa camisa antes de ela ir para a lavadeira”. Os estudantes de Cambridge, fanfarrões e vazios: “Um grupo de estudantes de Cambridge, que naquela tarde se apresentara ao Serviço de Transporte, estava de costas para outro grupo numa mesa ao lado; este fazia parte da polícia especial. De vez em quando, um grupo lançava desafios ao outro, mas como não é fácil entrar numa briga séria quando os contendores se dão as costas, o negócio ficava, por isso mesmo, em grande troca de gestos, copázios de cerveja em punho”
Vai se configurando uma crítica enorme à aristocracia britânica, na sua superficialidade epidérmica. “— Não sabemos nada a respeito dele. Pode até ser descendente de negros; aliás, tem um moreno suspeito (…) O esnobismo inglês, em minha opinião, ainda é mais fúnebre que a moralidade britânica”. E aponta com acerto feliz: “O mal da educação moderna é que não se pode saber o grau de ignorância das pessoas. Num indivíduo de mais de cinquenta anos, tem-se quase certeza do que ele aprendeu ou deixou de aprender. Mas essa mocidade de hoje tem uma cultura superficial, quando o verniz estala de repente, aparece lá no fundo um verdadeiro caos de que nem se suspeitava”.
Mas o cerne do livro, a reconstrução das memórias sagradas e profanas do Capitão Charles Ryder, é outro: o caminho da perplexidade, a destruição do seu agnosticismo, a conversão para a transcendência. Ao meu modo de ver, tudo feito um pouco rápido, num giro de 180 graus, algo que pode surpreender o leitor, se não conhece o caminho que o escritor trilhou pessoalmente. As histórias de redenção estampadas na ficção dos conversos, são, habitualmente, rápidas e espetaculares. Como aponta o prefácio introdutório a esta obra: “Seu tema, a manifestação da graça divina sobre um punhado de personagens distintas e estreitamente ligadas entre si — Por isso, uma grande parte do livro é um panegírico desfiado à beira de um caixão vazio”.
Waugh faz dizer a outra personagem que encara sua situação acomodada como um meio para servir e redimir-se: “Quando eu era menina, não tínhamos muito dinheiro, mas, mesmo assim, nossa situação era mais folgada que a de muita gente, e quando me casei fiquei muito rica. Isso me preocupava, e chegava a achar errado possuir tantas coisas lindas, quando outros nada tinham de seu. Hoje, sei que os ricos podem pecar cobiçando os privilégios dos pobres. Os pobres sempre foram os preferidos de Deus e dos santos, mas acredito que santificar todas as coisas, inclusive a riqueza, é um dos principais atributos da graça divina. A riqueza na Roma pagã tinha de ser forçosamente perversa; mas hoje é diferente”
E nas páginas finais, o escritor descreve o giro para a transcendência: “Foi exatamente essa palavra que eu apliquei a você e Julia: Paixão fracassada”. E Julia acrescenta o ponto final: “Quanto mais pecar, mais precisarei de Deus. Não posso fugir da misericórdia divina”. E acrescenta a modo de reflexão: “Quem sabe se todas as nossas paixões não passam de meros avisos e símbolos; palavras soltas rabiscadas nos pilares dos portões e nas calçadas ao longo da estrada fatigante que outros palmilharam antes de nós (…) A gente não pode fazer uma ideia do que seja uma pessoa sentir-se tão impotente, perder toda a dignidade, perdendo a força de vontade. Ninguém consegue ser santo sem sofrer”.
Vale invocar outra lembrança anotada no livro citado anteriormente para colocar um ponto final nestas memórias de Charles Ryder. Waugh afirmava que “na sua longa história a Igreja tinha desenvolvido uma liturgia que permitia ao homem corrente e sensual (em oposição ao santo que fica à margem de qualquer generalização) aproximar-se de Deus e ser consciente da santidade e da divindade”.
A tertúlia literária que girou sobre este livro, confirmou-me que, para mim, tudo isto foi uma volta não à Brideshead, mas à experiência de leitura da obra de Evelyn Waugh. Da primeira vez, incomodou-me o aparente final feliz e trágico ao mesmo tempo -uma variante piorada da cena do aeroporto em Casablanca. Agora, com serenidade, escutando os pensadores da Tertúlia, comprovei que um livro considerado um clássico, tem seu tempo, seu momento. Há diversos momentos na nossa vida, e os livros -que talvez não tiveram impacto em certo momento, revelam-se luminosos quando os anos passam. Por isso são clássicos. E também por isso, é preciso paciência para educar, para promover o hábito da leitura. Voltar sobre um livro, após os anos; encontrar o momento, o estado da alma, para debruçar-se sobre aquele que se deixou de lado. Como dizia Borges, os livros são os mesmos, mas com o passar do tempo, somos nós os que mudamos.
Comments 1
Brilhante crítiica sobre um livro que traz questões como a vida fútil e esnobe da aristocracia inglesa e como um jóvem recorda de sua mocidade passada nessas condições. Um mundo interior empobrecido e fantasioso. Mas, revisitar o passado e revitalizar as memorias nem sempre traz uma visão verdadeira. As lembranças são muito individuais e as sensações são particulares. A memória, na verdade, transforma o passado.