Thomas Mann: Os Buddenbrooks

Pablo González Blasco Livros Leave a Comment

Thomas Mann: Os Buddenbrooks. Círculo do Livro. Abril. São Paulo.   1975. 743 págs.

A Tertúlia Literária mensal, leva-nos até a obra magna de Thomas Mann. E digo magna, não porque esqueça de outros romances seus magníficos, como A Montanha Mágica, mas porque foi assim que em 1929 a Academia Sueca justificou o prêmio Nobel de Literatura. Mann escreve Os Buddenbrooks com 26 anos. Algo notável que, nos dias de hoje, onde a leitura está em baixa – a escrita, então, nem se fale- causa certa vertigem.

Não é possível resumir a saga desta família, distribuída em mais de 700 páginas, nem também é o propósito neste espaço. Uma saga de 4 gerações, ao longo de quase 50 anos (no meio do século XIX), que, pensei, poderia servir para uma boa série de TV; aliás acabo de ver que existe a tal série, mas de difícil acesso. O local é o norte de Alemanha, próximo do mar Báltico. Uma saga telúrica, pois Mann se inspira na sua cidade natal (Lubeck), cidade imperial e livre, próxima de Hamburgo.

A leitura, longa, corrida de fundo, compensa pela qualidade das descrições que o escritor alemão faz: tanto dos cenários externos, das liturgias aristocráticas, como também do mundo interior -pensamentos, receios, suspeitas- das personagens. Todo um mundo a ser revelado, onde o argumento é meio século da história de uma família de comerciantes que vai mantendo o negócio, a projeção social, e o respeito que se lhe deve. E, sempre, a preocupação da sucessão, onde nada pode se perder.

As descrições das personagens são magníficas e precisas. Pelo modo externo de se apresentar, as mulheres são toda uma oportunidade pictórica, um retrato falado. “De um modo estranho, no decorrer dos anos, suas feições tinham-se tornado parecidas com as do marido(..) A melancolia pensativa com que observava agora, envelhecido, o rosto transformado, inexpressivo e horrivelmente indiferente da velha senhora, dessa mulher que nunca lhe proporcionara grande felicidade, nem grande dor, mas que vivera ao seu lado durante muitos, longos anos com tato e prudência e que, naquele momento, se ia embora, vagarosamente”

A governanta dos Buddenbrooks, que acompanha várias gerações é também daquelas que esgota a sua espécie: “Pela sua lealdade e pelas ideias prussianas que tinha acerca das classes sociais, estava, no fundo, talhada para a sua posição naquela casa. Ida era uma criatura de princípios. Ida Jungmann, como sempre, mesmo nos dias mais ensolarados, numa capa de chuva comprida e aberta, e com um guarda- chuva na mão, tinha a mentalidade de uma autêntica governanta: não somente fingia acompanhar os sentimentos infantis, mas sentia-os tal qual a criança”. E a velha professora, que também acompanha a saga da família: “Therese Weichbrodt era uma mulher culta e quase sábia, que tivera de passar por pequenas lutas bem sérias para conservar a sua crença ingênua, a sua religiosidade positiva e a confiança de que seria indenizada, no outro mundo, pela sua vida cheia de dificuldades e sem brilho”

Os anos passando e o envelhecimento se estampa no rosto das mulheres: “O rosto comprido já começava a mostrar linhas acentuadas, e o cabelo liso e dividido ao meio — cabelo que nunca fora louro, mas sempre de um cinza embaciado — contribuía muito para completar o retrato de uma solteirona. Ela estava satisfeita com essa evolução, nada fazendo para remediá-la. Talvez tivesse necessidade de envelhecer rapidamente para fugir logo de qualquer dúvida ou esperança (…) A consulesa, que se aproximava dos quarenta e cinco, queixava-se amargamente do destino das mulheres louras, que envelheciam tão rapidamente. A tez delicada que corresponde aos cabelos ruivos murcha nessa idade, apesar de todos os cosméticos refrescantes, e o próprio cabelo encaneceria inexoravelmente, se não possuíssemos, graças a Deus, a receita duma tintura parisiense para evitar provisoriamente esse mal. A consulesa estava decidida a jamais embranquecer (…) O véu preto ondulava em torno dela, e a vasta crinolina achava-se estendida ao seu lado com um pitoresco um tanto enfático. Só Deus sabia quanto luto e religiosidade e, ao mesmo tempo, quanta vaidade de mulher bonita se revelava nessa atitude abandonada”.

Mas também os homens, alguns figuras pitorescas, são objeto de descrições precisas, até cruéis, como um dos pretendentes de Antoine Buddenbrook: “As bochechas eram extraordinariamente gordas, carnudas e tufadas; pareciam içadas até os olhos que elas comprimiam até formarem duas frestas azul-claro, muito estreitas, criando-lhes ruguinhas nos cantos. Tudo isso dava ao rosto, inchado deste modo, uma expressão misturada de ferocidade e de bonacheirice leal, desajeitada e comovente. Por baixo do queixo pequeno descia uma linha oblíqua até a gravata fina e branca: a linha de um pescoço papudo que não teria suportado colarinho alto. A parte inferior da cara e o pescoço, o occipício e a nuca, as faces e o nariz, tudo se confundia numa massa túmida e falha de forma… Tesamente esticada por todas essas intumescências, a pele do rosto mostrava em algumas partes, por exemplo nos lóbulos e aos lados do nariz, uma vermelhidão gretada… Numa das mãos brancas, curtas e gordas, o cavalheiro segurava a bengala e na outra um chapeuzinho tirolês verde, enfeitado com uma barba de cabrito montês (…) Esforçava-se — com certo sucesso — por exibir uma cabeça feroz, perfeita e diabólica de intrigante, uma figura de característicos perversos, cínicos, interessantes e temíveis, mistura de Mefistófeles e Napoleão”.

Um caso aparte é Christian, a ovelha negra, o irmão indolente, reclamão, hipocondríaco: “Como nos tempos passados, sofria com frequência de uma indeterminada e invencível sensação de medo: receava que a língua, o esôfago, as extremidades e até o cérebro pudessem de repente ser acometidos por uma paralisia. É verdade que essa paralisia não veio a ser realidade; mas não era o medo dela ainda pior? Coisa que, porém, não observava nem verificava, e de que não se dava conta, era a estranha falta de tato que, com os anos, se lhe tornava cada vez mais peculiar. Não somente contava no círculo da família anedotas que, quando muito, convinha narrar no clube, mas existiam também sintomas evidentes de que o seu senso de vergonha física estava diminuído (…) Saúde e enfermidade, eis a diferença. Trepamos audazmente na maravilhosa multiplicidade das alturas denteadas, eretas e alcantiladas, para experimentarmos a nossa força vital, da qual nada ainda se gastou. Mas repousamos sobre a vasta simplicidade das coisas exteriores quando estamos cansados pela confusão das íntimas”. Por parte de Thomas, ciúmes se misturam com receio: “Desprezava tanto o irmão que não lhe permitia amar o que ele mesmo amava”.

Essa atitude é preocupação constante na família, que descarta Christian como possível continuador da empresa e do prestígio dos Buddenbrooks. “Christian ocupa-se demasiadamente consigo mesmo, com os acontecimentos no interior do seu próprio eu. Às vezes é acometido por verdadeira mania de revelar e divulgar os mais insignificantes e ocultos desses acontecimentos, coisas de que um homem sensato não se importa, das quais não quer saber, e isso pelo simples motivo de que ficaria embaraçado se as comunicasse (…)Sempre haverá homens que têm direito àquele interesse pelo próprio eu e a essa observação minuciosa dos seus sentimentos: poetas que sabem dar forma segura e bela à sua vida interior privilegiada, enriquecendo assim o mundo sentimental de outras pessoas. Mas nós nada mais somos do que simples comerciantes; as nossas auto-observações são desesperadamente insignificantes”.

Das magníficas descrições físicas externas, Thomas Mann avança até as interioridades, dissecando pensamentos e atitudes, em variações enormes que atingem todas as personagens da família, e os coadjuvantes. A revolta do marido que perde a mulher no parto, um relato cruel: “O cônsul não podia compreender isso. “Ela morreu”, pensou, “cumprindo com o mais alto dever da mulher. Eu, no lugar dele, teria transferido o meu amor carinhoso para o ente a quem ela dera a vida, e que lhe legara ao morrer.” O pai, porém, nunca considerara o filho mais velho senão como o destruidor execrável da sua felicidade”.

A liturgia familiar que constitui todo um modo de pensar, de ser, de posicionar-se no mundo. “A mentalidade feudal da família materna ressurgia na menina quando, sentada numa cadeira de balanço, podia dar ordens à empregada ou ao mordomo (..) Ali se encontram crença em Deus, caridade, religiosidade íntima, em poucas palavras, verdadeiro espírito cristão, que é o meu ideal. E essa família, sabe conciliar tudo isso com uma nobre mundanidade, uma distinção e uma elegância brilhantes, qualidades que eu acho encantadoras”.

E a história familiar, escrupulosamente registrada no diário, os anais da saga: “Tomou o diário, folheou-o e, subitamente, ficou absorta pela leitura. O que lia eram, na maioria, coisas simples, que conhecia há muito tempo, mas cada um dos que as tinham escrito herdara dos seus antecessores um modo de narrar solene e sem exagero; formara-se assim, por instinto e sem propósito, um estilo de crônica em que se expressava o respeito que uma família tinha a si mesma, assim como à tradição e à história, respeito discreto e por isso sumamente cheio de dignidade. Relatado na letra pequena, fluente e comercial do cônsul, com diligência e um respeito quase que religioso pelos fatos: pois mesmo o fato mais insignificante não emanava da vontade de Deus, sendo obra dele, que dirigia maravilhosamente os destinos da família?”

Os conselhos que se transmitem de pai para filho: “Sempre me lembrava do lema que herdamos do nosso antepassado, o fundador da firma: “Meu filho, dedique-se, de dia, com gosto aos negócios, mas faça-o de maneira que, de noite, possa dormir tranquilamente!”. E o pavor do insucesso: “Somente nesse instante deu-se de fato conta de tudo quanto encerrava a palavra bancarrota, de tudo quanto, já como criança, provara de sentimentos vagos e pavorosos a tal respeito… Bancarrota… isso era coisa mais horripilante do que a morte, isso significava tumulto, derrocada, ruína, ignomínia, vergonha, desespero e miséria”.

Dentro dos padrões aceitos pela sociedade, Antoine -Tony Buddenbrook- tem que fazer contínuos equilíbrios, pelos descalabros que a vida lhe proporcionou: “Apesar de ela, segundo o julgamento humano, não ter culpa do destino que Deus lhe enviara como provação, a sua posição de mulher divorciada lhe impunha, em primeiro lugar, extrema reserva. Mas Tony possuía o belo dom de adaptar-se com talento, habilidade e vivo prazer a qualquer situação da vida. Comprazeu-se logo no papel de uma vítima de desgraça imerecida”

Manter as formas a qualquer custo: “Não era hipócrita nem desmancha-prazeres, e lembrava-se perfeitamente dos pecados da sua própria mocidade. Conhecia a sua cidade paterna, onde os burgueses, respeitabilíssimos nos seus negócios, arvoravam fisionomias inimitavelmente honestas, ao andarem com as suas bengalas pelas ruas. Sabia bem que essa cidade portuária e comercial absolutamente não era um abrigo da moralidade imaculada”. E o humor que Mann também arrisca: “De resto, não se irrite. Irritação causa rugas. É realmente muito triste que a gente viva só uma vez, que não se possa recomeçar a vida. Faríamos muitas coisas com mais jeito”.

O cônsul Thomas Buddenbrook, último elo da saga, ocupa muitas das páginas do romance. Sente a pesada responsabilidade de continuar a empresa familiar; não encontra na mulher Gerda o apoio que gostaria, e o filho Hanno, muito mais parecido com a mãe -artista e músico- distante do homem que o pai almeja. Uma descrição magnífica que vale ler com vagar: “Comerciante, em vez de ‘sábio’; não frequentara o ginásio; não era jurisconsulto, nem fizera estudos universitários. Mas ele, que, desde tempos imemoriais, passara as suas horas ociosas na leitura de livros históricos e literários, ele, que, em espírito, inteligência e cultura interna como externa, se sentia superior a todo o seu ambiente, não deixava de se ressentir com a falta de qualificações regulares que o impossibilitava de assumir o primeiro lugar na pequena comunidade onde nascera.(…) Tinha aquela sensação de presteza e contentamento com que um ator vai ao palco, depois de se ter esmerado em todos os detalhes do disfarce… Realmente! A existência de Thomas Buddenbrook já não era senão a de um ator — de um ator para quem a vida inteira, até às mínimas e mais triviais bagatelas, se tornou mera representação que, exceção feita de algumas breves horas de solidão e descanso, constantemente lhe exigia e devorava todas as forças”.

A família, do cônsul e depois também senador, é objeto de observação contínua: “Nos salões e quartos, nos clubes e cassinos e até na Bolsa falava-se de Thomas e Gerda Buddenbrook, tanto mais quanto menos se sabia a seu respeito”. E as desavenças dentro da sua própria família: “Até então, o fato de Gerda tocar violino, assim como os seus olhos misteriosos de que ele gostava, o basto cabelo ruivo e toda a sua aparência invulgar significavam para Thomas apenas um suplemento interessante da personalidade singular da esposa. Mas agora tinha de constatar que a paixão pela música, alheia a ele próprio, se apoderava do filho desde o início e por completo. Essa percepção transformou a música numa força inimiga que se pôs entre ele e a criança (…) Thomas Buddenbrook se podia fiar na devoção e compreensão do filho sempre que se tratasse de angústia e tormentos, mas nunca quando envolvia energia, aptidão e vitalidade desembaraçada”

Quando o romance está já desenhando o seu final, é Tony a que intervém numa reflexão que é um grande recado, uma ruptura com as formas das quais está cansada, já que “sentira como dói a beleza, como nos mergulha profundamente em vergonha e desesperança cheia de saudade, devorando-nos, ao mesmo tempo, a coragem e a capacidade para a existência vulgar”. É Tony falando com o irmão, de modo corajoso, abrindo a alma: “Será que, na vida, apenas é vergonhoso e escandaloso aquilo que se torna público e do que se fala? Ah, não! Muito pior é o escândalo clandestino que silenciosamente nos corrói e devora o respeito que temos por nós mesmos! Será que nós, os Buddenbrook, somos pessoas que só por fora querem ser, como se diz aqui, “piramidais”, enquanto, dentro dessas quatro paredes, engolimos toda espécie de humilhações? Sim, Tom, sentimo-nos nobres; temos um sentimento de distância e não deveríamos procurar viver em lugar algum onde nada sabem de nós e não são capazes de nos apreciar, pois receberemos apenas humilhações, e eles nos acharão ridiculamente altivos. Pois, embora seja uma mulher estúpida, sei, pela minha própria experiência e pelo que observei em outras pessoas, que nessa vida só nos exasperamos e irritamos quando não nos sentimos inteiramente seguros na nossa resistência”.

A saga acaba, e dois pensamentos -entre muitos outros- pairam no ar desta obra de Thomas Mann: “Unicamente a morte é capaz de inspirar aos demais a reverência diante dos nossos sofrimentos; por ela, os mais desprezíveis males fazem-se veneráveis”. O segundo, colocado em boca do pequeno Hanno, que é uma carga de profundidade, saturada de decepção do mundo que lhe toca viver: “Até a compaixão nos fica impossibilitada pela infâmia desse mundo”.

Ler Thomas Mann, sempre uma empreitada enciclopédica. Um passeio vital que nos fala das variantes do ser humano: das misérias e do heroísmo quotidiano, de lealdades e desenganos, enfim, desse espectro sempre surpreendente que encerra o coração do homem. Muitas horas de leitura, muitas páginas, mas no final, percebemos que amealhamos algumas moedas de sabedoria. Mais, infinitamente mais, do que consultar -em tediosa rotina- os Instagram dos influencers, que afinal, é o modo moderno de guardar as formas. Não na Alemanha do XIX, mas em pleno século XXI.

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