Byung-Chul Han : No enxame- Perspectivas do digital

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Byung-Chul Han : No enxame- Perspectivas do digital. Petrópolis, RJ : Vozes, 2018. 85 págs.

Petrópolis, RJ : Vozes, 2018. 85 págs.

Após ter lido várias obras deste engenheiro-filósofo, sul coreano-alemão, cai nas minhas mãos mais um dos seus livros. E mantém as caraterísticas dos anteriores: curto, mais um ensaio -aula do que um livro, e repetição de ideias anteriormente abordadas ( o que não é nenhum demérito, mas sim foco: água mole em pedra dura…..). A variante desta obra é o mundo digital…e as suas consequências para o ser humano, se for capaz de conviver sadiamente com ele, no fim, de sobreviver aos desafios que lhe apresenta. E assim o apresenta no prefácio: “Embriagamo-nos hoje em dia da mídia digital, sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual”.

O mundo digital que devassa a intimidade é consequência da falta de respeito. Assim explica Han: “O respeito pressupõe um olhar distanciado, um pathos da distância . Hoje, ele dá lugar a um ver sem distância, caraterístico do espetáculo . O verbo latino spectare , ao qual espetáculo remonta, é um olhar voyeurístico, ao qual falta a consideração distanciada, o respeito ( respectare ). A distância distingue o respectare do spectare . Uma sociedade sem respeito, sem o pathos da distância, leva à sociedade do escândalo. A falta de distância leva a que o privado e o público se misturem. A comunicação digital fornece essa exposição pornográfica da intimidade e da esfera privada. Também as redes sociais se mostram como espaços de exposição do privado”. Lembrei do comentário de Ortega quando diz que é preciso essa distância sentimental que se denomina respeito, “porque cada coisa no impõe uma distância peculiar e uma determinada perspectiva; quem quiser ver o universo como ele é, tem de aceitar essa lei de cósmica cortesia”.

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Ferenc Molnár: “Os meninos da Rua Paulo”.

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Ferenc Molnár: “Os meninos da Rua Paulo”. Companhia das Letras. São Paulo. 2016. 183 págs.

Por conta da nossa Tertúlia Literária mensal , volto sobre este livro após mais de quinze anos da primeira leitura. Mas, agora, meus olhos -e o meu coração- são outros, em maior sintonia com o povo húngaro (não com a língua, obviamente) após ter lido Sándor Márai, Magda Szabo e, principalmente, a magnífica biografia de Paulo Rónai. Ele é o último responsável por termos hoje este livro entre as mãos, traduzido num português magnífico, que agrada crianças e adultos.

Dele é também o prefácio desta edição, onde se pode ler o seguinte comentário, contrapondo que embora os livros para adultos possam tornar-se simbólicos para os jovens, “ainda mais raro o caso contrário: livros destinados originariamente a um público de jovens e que passaram a interessar pessoas de todas as idades. Um deles é, sem dúvida, Os meninos da rua Paulo , do húngaro Ferenc Molnár. Como é que um livrinho especialmente escrito para os adolescentes de Budapeste se metamorfoseia numa obra-prima clássica, lida com encanto por pessoas de todas as idades, de todos os países?”. E adverte sobre o escritor: “Foi relatada por um de seus participantes, ainda bastante perto da mocidade para levá-la a sério, já bastante longe para dela sentir saudades (…) Os meninos da rua Paulo é dessas leituras que nos acompanham pela vida afora, livro de aventuras que vale por um estudo de psicologia, livro de memórias em que não se percebe a presença do autor, livro de guerra que nos reconcilia com a humanidade.”

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Alexandr Pushkin: A Filha do Capitão.

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Alexandr Pushkin: A Filha do Capitão. Lebooks Editora.2020. 124 páginas.

Foi a leitura de um livro sobre escritores russos, o que despertou minha atenção acerca de Pushkin, de quem nunca tinha lido nada, a diferença dos outros lá elencados. Anotei o nome desta obra principal, e a escalei para a Tertúlia Literária mensal.

Agora, lido, comentado, discutido e sonhado, volto sobre o meu resumo daquele livro, antes de rascunhar estas linhas. O que têm os russos de peculiar quando escrevem? A resposta já estava lá anotada, deste modo: A literatura russa tem características próprias. As histórias geralmente se passam no vasto império do czar; predomina uma análise crítica da situação social, política e económica; os autores tendem a ser muito descritivos tanto das paisagens como dos costumes da cidade e do campo (..)Mas o que os apaixona é a busca pelo ser nacional. O tema comum de todas estas obras é a Rússia: a sua personalidade, a sua história, os seus costumes, as suas tradições, a sua essência espiritual e o seu destino (…) Se é algo tão peculiar, tão russo, porquê a enorme importância desta literatura? O escritor imortal é normalmente aquele que realiza algo universal numa forma particular;  apresenta o que pode interessar a todos os homens numa forma característica de um único homem ou de um único país. São clássicos, universais, mas atentos à sua missão: estabelecer a identidade nacional russa, que sempre foi um desafio. O império do czar começou a desempenhar um papel importante na Europa  no início do século XVIII.

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Yin Ru Chen Yan (Return to Dust): Amor, silêncio e cuidado em lírica chinesa.

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Diretor: Li Ruijun. Wu Renlin, Hai-Qing, Yang Guangrui, Zhao Dengping, Wang Cailan 131 min. China, 2022

Um filme chinês de mais de duas horas. Apertei o play, e deixei correr, com baixas expectativas. Além de pouca  sintonia com o cinema oriental (sempre digo o mesmo, e vou levando uma surpresa atrás da outra) não conhecia o diretor, e as referências eram difusas, tênues. Algo assim como um filme minimalista, com lirismo chinês. E o título que até agora não sei como traduzir. Return to Dust, inglês, que lembra da nossa condição mortal, não encaixa com o título em espanhol (O regresso das andorinhas -traduzido ao português). Ganhou um prêmio num festival na Espanha, e parece-me que as golodrinas (andorinhas) encaixam melhor no cenário.

Acabou o filme, fiquei pensando, muito. As cenas, suaves, delicadas, voltavam uma vez e outra à minha cabeça. Sentei, anotei alguns insights, desconexos, provocantes. Semanas depois, voltei a assistir. Precisava de me convencer de que aquilo que eu tinha visto nas entrelinhas era real. E com a sensação de que, por conta da minha falta de sensibilidade, do modo tosco com que muitas vezes nos dispomos a assistir um filme -divirta-me!, gritamos por dentro- tinha perdido o espetáculo. A vergonha tomou conta de mim. E me fez pensar sobre o que escrever. Será que o nosso modo rude, até grosseiro, de contemplar a poesia no celuloide, é capaz de assimilar todo este canto maravilhoso? Provavelmente não, falta paciência, sobra casca grossa, temos a alma paquidérmica.

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O Feminismo de um liberal.

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O Feminismo de um liberal. José Ortega y Gasset: “Estudios sobre el amor”

Volto a este livro que me impactou quando o li pela primeira vez, há mais de três décadas. Pensamentos, fichas extraídas, citações inúmeras vezes utilizadas em conferências e aulas, e a memória deste ensaio de Ortega como exemplo sempre atual do verdadeiro feminismo. Um magnífico elogio ao eterno feminino. Lembro-me que em 1995, pouco antes do início da Conferência de Pequim sobre a Mulher, me atrevi a escrever um ensaio tecendo as ideias de Ortega. Acabei de encontrá-lo perdido entre os arquivos do meu computador. Reli com prazer, antes de começar a digitar estas linhas.

Não vou resumir aqui o livro, porque já o fiz, em espanhol -sinto-me incapaz de tentar uma tradução que transmita o vitalismo de Ortega neste tema- e quem tiver gosto e tempo, poderá consultar aqui. Vou apenas tentar alinhavar as ideias de Ortega, de modo algo desordenado, mas que -como quadro impressionista- com tempo, e com distância surgirão os traços mais importantes. Distância que, no dizer de Ortega, é o que nos permite contemplar a silhueta de uma catedral, sem naufragar nas porosidades das pedras que a constroem. Uma distância que ele denomina respeito.

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Georges Bernanos: Diário de Um Pároco de Aldeia

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Georges Bernanos: Diário de Um Pároco de Aldeia. É Realizações. São Paulo. 2011. 288 págs.

A Tertúlia Literária me faz voltar sobre livros que tinha lido há muitos anos. É o caso desta obra de Bernanos, o escritor francês que viveu no Brasil durante a segunda guerra mundial, em Barbacena, onde atualmente sua casa transformou-se no museu que leva seu nome. Li o livro há mais de três décadas e lembro de ter extraído alguma anotação que utilizei várias vezes em palestras e conferências, porque me impressionou o seu contundente realismo. Uma delas diz assim: “Odiar-se a si mesmo não e difícil; o verdadeiro e saudável desafio é esquecer-se de si mesmo”.

Mergulhei na leitura com essa citação em mente, e fui encontrá-la somente no final. É lá que está, seguida de uma consequência que, no dia, não cheguei a anotar, talvez porque me passou batido. Hoje vejo a importância da conclusão de esquecer-se de si mesmo. Anota Bernanos:  “a graça é esquecer-se. Mas se todo orgulho morresse em nós, a graça das graças seria apenas amar-se humildemente a si mesmo, como a qualquer outro dos membros doentes de Jesus Cristo”.

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Amor Esquecido:Um canto de amor à vocação médica.   

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Znachor. 2023. TV-MA. 2 h 20 min. Direção. Michal Gazda. Leszek Lichota. Maria Kowalska. Ignacy Liss.

Foi no passado 18 de Outubro, em que se comemora o Dia do Médico. Uma colega da faculdade enviou o aviso, e o link. Tomei nota, mas os afazeres diários relegaram a pendência. Outra colega do trabalho -sempre as mulheres atentas- , chamou a atenção sobre o filme, tinha visto um aviso na Netflix. Daí não teve como escapar. Ainda bem: um espetáculo imenso, com a delicadeza do cinema polonês, onde o tema da vocação médica surge como um gigante. Fosse pouco, pegou-me no meio de umas gravações que estava fazendo no momento, sobre A felicidade de ser médico. Juntou-se a fome com a vontade de comer, sobreveio um arco voltaico tremendo, golpeou-me na alma, despertou inúmeras lembranças, e um torrente de reflexões.

Não tem como relatar o filme -prática que sempre evito neste espaço- não apenas para não ser spoiler, mas porque poderia amputar as reflexões de quem se aventure a assistir. Obviamente, o público gostará: é um filme visualmente bonito, elegante, coerente. Mas os médicos -se são capazes de assistir com calma, em silêncio- poderão apreciar muitos outros aspectos, infinidade deles, num carrossel multifacetado. O verdadeiro spoiler é o resumo que as plataformas costumam colocar para dar ideia da trama. Basta conferir -após ver o filme- para comprovar a miopia do marketing cinematográfico. Um desastre.

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Evelyn Waugh: A Volta à Velha Mansão

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Evelyn Waugh: A Volta à Velha Mansão.(Retorno a Brideshead).Ed. Agir, Rio de Janeiro, 1965. 348 págs.

Também eu voltei sobre o livro de Evelyn Waugh, após muitos anos da primeira leitura. Em semelhança com o protagonista, o Capitão Charles Ryder, que em elegante flashback evoca suas lembranças da velha mansão, de Brideshead. E o faz com pesar, não isento de serenidade, comparando aquelas vivências agitadas e turbulentas, à situação que vive no momento presente: “Deu-se comigo e o Exército fato idêntico, passando pelo namoro insistente até chegar à fase atual, em que restavam apenas os frios laços da lei, do dever e do hábito. Eu representei todas as cenas da tragédia conjugal, e verifiquei que os arrufos dos primeiros tempos se tornavam mais frequentes, as lágrimas menos comoventes, e que a reconciliação já não era tão doce”.

A nobreza inglesa do começo do século XX está aqui retratada. Carente de valores, em frivolidade deslumbrante, e de uma religiosidade postiça que para um Waugh convertido ao catolicismo, era elemento dissonante. Como comentei a propósito de um ótimo livro sobre escritores conversos, Waugh era externamente um esteta, mas sobre ele a Igreja católica não exerceu o atrativo estético. O que procurava e encontrou foi autoridade e universalidade. “Uma Igreja nacional, por maior que fosse o Império, nunca poderia falar com autoridade universal e, sendo territorial, ver-se-á necessariamente limitada…A Igreja de Inglaterra converteu-se simplesmente na igreja do clube de golfe e das tropas”. 

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Leonardo Lourenço: “A síndrome do gênio da lâmpada”

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Leonardo Lourenço: “A síndrome do gênio da lâmpada”. Labrador. São Paulo, 2021. 211 págs.

Recebo o  livro de mãos do autor, colega e amigo. Com dedicatória que me fala do amor que constrói. Já conhecia os pensamentos recolhidos neste livro, porque várias vezes vi o Leonardo em ação, falando sobre eles em reuniões e aulas. E, com a confiança que tenho com ele, posso dizer que é um livro que dá recados profundos e importantes, em linguagem accessível. Ciência, ou melhor, neurociência….em linguagem de boteco, para que ninguém diga que não entendeu.

O autor fala da saia justa na qual nos coloca o gênio da lâmpada, para manter-nos no politicamente correto, para elaborar uma segurança, que é tão fictícia como inútil. Anota: “O gênio da lâmpada é um cara que tem todos os poderes do mundo para atender aos pedidos dos outros. Ele devota a própria vida a atender os desejos alheios . Mas talvez justamente por isso ele seja um infeliz prisioneiro de sua própria missão (…) Passamos a acreditar, com o passar do tempo, que somos a nossa própria máscara protetora. O benefício dos escudos de defesa é enorme quando surge, mas vai decaindo progressivamente ao longo do tempo, ao passo que o custo vai paulatinamente crescendo”

Como já disse, todos estes raciocínios, evidentes de per si, tem uma base científica, que Lourenço faz questão de sublinhar: “Não são as ocorrências em si que sensibilizam o maquinário neuronal, mas os sentimentos e as emoções guardadas junto a cada uma. O que em verdade esculpe visceralmente o encéfalo são as roupas, não os manequins (emoções amealhadas na infância, etc.)”.

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Irene Vallejo: O Infinito num junco

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Irene Vallejo: O Infinito num junco. A Invenção do livro na Antiguidade, e o nascer da sede de leitura. Bertrand Editora. Lisboa. 2020. 500 págs.

A leitura deste livro é uma viagem, longa no tempo, mais de 25 séculos, percorrendo as estradas que os livros palmilharam antes de nós. É por tanto, fora de cabimento, qualquer tentativa de resumir o que lá se contém. Até porque, como dizia Fernando Pessoa, as viagens são os viajantes, e o que vemos não é que vemos, mas o que somos. Pode-se apenas, apresentar -a modo de trailer convidativo- algumas fotografias, deste percurso que me atrevi a fazer há alguns meses. Fotos instantâneas, quase polaroid antigas, nunca as modernas “selfies”, que são a versão impressa de um narcisismo por vezes doentio, já que as viagens e o que vemos, é muito maior do que nós mesmos, do que o próprio umbigo!.

Como começou Irene Vallejo, esta professora aragonesa, com cara de menina e cultura enciclopédica, sua viagem pelos livros? “Assusta-me sempre escrever as primeiras linhas, atravessar o limiar de um novo livro. Quando percorri todas as bibliotecas, quando os cadernos transbordam de notas febris, quando já não me lembro de pretextos razoáveis, nem sequer insensatos, para continuar à espera, atraso-o ainda vários dias durante os quais chego à conclusão que é apenas cobardia. Simplesmente, não me sinto capaz (…) O livro superou a prova do tempo, demonstrou ser um corredor de longas distâncias. Sempre que acordámos do sonho das nossas revoluções ou do pesadelo das nossas catástrofes humanas, o livro continuava ali. Como diz Umberto Eco, pertence à mesma categoria do que a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Depois de inventados, não se pode fazer nada melhor (..) Não esqueçamos que o livro foi nosso aliado, há muitos séculos, numa guerra que os manuais de história não registam. A luta para preservar as nossas criações valiosas: as palavras, que são apenas um sopro de ar; as ficções que inventamos para dar sentido ao caos e sobreviver nele; os conhecimentos verdadeiros, falsos e sempre provisórios que vamos arranhando na dura rocha da nossa ignorância”. E conclui, comparando-se aos antigos,  antes de mergulhar na aventura: “Mas parece-me que, ao procurarem o rasto de todos os livros como se fossem peças de um tesouro disperso, estavam a estabelecer, sem sabê-lo, os alicerces do nosso mundo”.

A viagem de Irene Vallejo em busca de livros, tem apenas dois capítulos, cada um de vários séculos: Grécia e Roma. E no percurso cronológico, vai misturando lembranças pessoais, reflexões, uma explosão de cultura -não de erudição arrogante, pois nota-se que o tem muito assimilado e vibra quando o comparte com o leitor. Do muito lido -as contas de quando e como, com a idade que tem não fecham na minha cabeça- posso dizer ao contrário de D Quixote (que passava as noites em claro lendo), que não perdeu o juízo, mas o aprumou, com maturidade e classicismo. A leitura, a viagem da mão dela, é uma verdadeira experiência, uma fenomenologia da leitura degustada.

Vamos por tanto ao álbum de fotografias extraídas desta leitura que, no dizer de Mario Vargas Llosa numa entrevista  que caiu nas minhas mãos, será um livro que se continuará lendo durante muitos séculos. Um álbum de fotografias às quais me atrevi a colocar um pé de foto, uma tentativa de dar nome ao impresso no meu entendimento. Quase um nominalismo fenomenológico.

A primeira, se intitula Dos livros, da tradição oral….e do excesso de informação. “Na época de Sócrates, os textos escritos ainda não eram uma ferramenta habitual e continuavam a despertar receio. Consideravam-nos um sucedâneo da palavra oral — leviana, alada, sagrada. Embora a Atenas do século v a. C. já tivesse um incipiente comércio de livros, só um século depois, no tempo de Aristóteles, é que se chegou a contemplar o hábito de ler sem estranheza. Para Sócrates, os livros eram ajudas da memória e do conhecimento, mas pensava que os verdadeiros sábios fariam bem em desconfiar deles”

“Esta questão inspirou um diálogo platónico intitulado Fedro, que decorre a poucos passos das muralhas de Atenas, à sombra de um frondoso plátano na margem do rio Ilissos. Ali, na hora morna da sesta, com a banda sonora das cigarras, nasce uma conversa sobre a beleza que deriva misteriosamente para o ambíguo dom da escrita. Há séculos, diz Sócrates a Fedro, o deus Theuth do Egito, inventor dos dados, do jogo das damas, dos números, da geometria, da astronomia e das letras, visitou o rei do Egito e ofereceu-lhe estas invenções para ele as ensinar aos seus súbditos. Traduzo as palavras de Sócrates: ‘O rei Thamus perguntou-lhe então que utilidade tinha escrever, e Theuth respondeu-lhe: — Este conhecimento, oh rei, tornará os egípcios mais sábios; é o elixir da memória e da sabedoria. Então Thamus disse-lhe: — Oh Theuth, por seres o pai da escrita dás-lhe vantagens que não tem. O que as letras produzirão é esquecimento em quem as aprender, ao descurar a memória, já que, fiando-se dos livros, chegarão à recordação desde fora. Será, portanto, a aparência da sabedoria, não a sua verdade, o que a escrita dará aos homens; e, quando tiver feito deles entendidos em tudo sem uma verdadeira instrução, será difícil suportar a sua companhia, porque se julgarão sábios em vez de o serem’ (…) Sócrates temia que os homens abandonassem o esforço da própria reflexão por causa da escrita. Suspeitava que, graças ao auxílio das letras, se confiaria o saber aos textos e, sem o empenho de compreendê-los a fundo, bastaria tê-los ao alcance da mão. E assim já não seria sabedoria própria, incorporada a nós e indelével, parte da bagagem de cada um, mas sim um apêndice alheio. O argumento é sagaz, e ainda nos impressiona”

“Neste momento estamos mergulhados numa transição tão radical como a alfabetização grega. A Internet está a mudar o uso da memória e da própria mecânica do saber. Uma experiência realizada em 2011 por D. M. Wegner, pioneiro da psicologia social, mediu a capacidade de recordar de uns voluntários. Só metade deles sabia que os dados a reter eram guardados num computador. Quem pensou que a informação ficava gravada relaxou no esforço para aprendê-la. Os cientistas chamam «o efeito do Google» a este fenómeno de relaxamento da memória. Temos tendência para recordar melhor onde se alberga um dado do que o próprio dado. É evidente que o conhecimento disponível é maior do que nunca, mas armazena-se quase todo fora da nossa mente. Surgem perguntas inquietantes. Sob o aluvião de dados, onde fica o saber? A nossa preguiçosa memória é afinal uma agenda de moradas onde procurar informação, sem rasto da própria informação? No fundo, somos mais ignorantes do que os nossos memoriosos antepassados dos velhos tempos da oralidade? A grande ironia de todo este assunto é que Platão explicou o menosprezo do mestre pelos livros num livro, conservando assim as suas críticas contra a escrita para nós, os seus futuros leitores”.

Mais adiante, em outro trecho, outro fotograma completa este pensamento de excesso de informação e perda de prioridades e de sabedoria na biblioteca de Babel: “E esse é o grande paradoxo. Pelos hexágonos da colmeia vagueiam caçadores de livros, místicos, fanáticos destruidores, bibliotecários suicidas, peregrinos, idólatras e loucos. Mas ninguém lê. Entre a esgotante sobre abundância de páginas ao acaso, extingue-se o prazer da leitura. Todas as energias se consomem na procura e na decifração. Podemos entendê-lo simplesmente como um conto irónico construído a partir de mitos bíblicos e bibliófilos (…) Contudo, para os leitores de hoje, a biblioteca de Babel fascina-nos como uma alegoria profética do mundo virtual, do excesso da Internet, dessa gigante rede de informações e textos, filtrada pelos algoritmos dos motores de pesquisa, onde nos perdemos como fantasmas num labirinto”.

Da alfabetização, uma revolução à qual nos acostumamos e a segunda fotografia tomada nesta viagem fascinante. “Nós, habitantes do século XXI, assumimos que toda a gente aprende a ler e a escrever na infância. Parece-nos um conhecimento acessível, ao alcance de qualquer um. Nem sequer imaginamos que possam existir entre nós pessoas analfabetas. Mas existem (670 000 em Espanha, em 2016, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística1). Eu conheci uma. Testemunhei a sua impotência perante situações quotidianas como orientar-se na rua, encontrar a plataforma correta de uma estação, decifrar a fatura da luz — embora me pergunte se alguns de nós, que sabemos ler, entendemos a confusão das tarifas elétricas —, poder votar ou escolher um prato num restaurante. Só os lugares conhecidos e as rotinas repetidas acalmavam a sua angústia num mundo no qual era incapaz de se orientar como os outros. Dedicava um esforço esgotante a ocultar a sua condição de analfabeta — «esqueci-me dos óculos em casa; não se importa de me ler isto?» —, e essa necessidade de fingir acabava por marginalizá-la das relações normais com os outros. Lembro-me sobretudo do desamparo, do  repertório de pequenas mentiras necessárias para pedir ajuda aos desconhecidos sem passar vergonha, da minoria de idade sem fim”

“Lemos mais do que nunca. Estamos cercados por cartazes, rótulos, publicidade, documentos. As ruas estão a transbordar de palavras, desde os grafites das paredes até aos anúncios luminosos. Piscam nos telemóveis e nas telas dos computadores. Textos em diferentes formatos convivem conosco na nossa casa como calmos animais de estimação. Nunca tinha havido tantos. Os nossos dias estão atravessados por contínuas rajadas de letras escritas e alarmes que anunciam a sua chegada. Dedicamos várias horas da nossa jornada e do nosso ócio a tamborilar sobre diferentes teclados. Quando nos pedem para preenchermos um formulário diante de um guiché, nunca ninguém tem a cortesia de nos perguntar se sabemos ler. Até nas situações mais correntes seríamos excluídos se não fôssemos capazes de escrever com rapidez”

E a seguir uma anedota divertida: “Ana María Moix contou-me uma vez que, nos anos setenta, acabou num almoço com a prodigiosa camada do boom latino-americano: Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, Bryce Echenique, José Donoso, Jorge Edwards… Entraram num restaurante de Barcelona onde era preciso apontar o pedido e entregá-lo por escrito ao empregado. Mas eles, a beber e a conversar, ignoraram o menu e as aproximações interrogativas dos empregados. No fim, o maître teve de interrompê-los, irritado com tanta conversa fiada apaixonada e tão pouco interesse gastronómico. Aproximou-se deles e, sem reconhecê-los, perguntou com uma voz irritada: «Mas nesta mesa ninguém sabe escrever?»”.

A instantânea seguinte a intitulei Da educação Humanística, e assim anotei: “Que tipo de educação recebiam aqueles gregos? Um banho de cultura geral. Ao contrário do que nos acontece a nós, não lhes interessava em absoluto especializarem-se. Menosprezavam a  orientação técnica do conhecimento. Não estavam obcecados com o emprego; depois de tudo, para trabalhar bastavam-lhes os escravos. Quem se podia permitir evitava aprender algo tão aviltante como um ofício. O elegante era o ócio — ou seja, o cultivo da mente, da amizade e da conversa; a vida contemplativa. Só a medicina, inquestionavelmente necessária para a sociedade, conseguiu impor um tipo de formação própria. Pelo contrário, os médicos tinham um claro complexo de inferioridade cultural. De Hipócrates a Galeno, todos repetiam nos seus textos o mantra de que um médico também é um filósofo. Não queriam ficar fechados dentro da sua esfera particular, pois esforçavam-se por se mostrarem cultos e usarem alguma citação dos poetas imprescindíveis nos seus escritos. Para os restantes, os ensinamentos e as leituras eram, essencialmente, os mesmos em todo o império, o que criava um poderoso fator de unidade colonial”. Confesso que senti o golpe e pensei: se aqueles médicos tinham que insistir em que eram cultos (e de fato o eram) imaginemos hoje, nessa fauna de quase analfabetos com certificados dos Conselhos Médicos para exercer uma profissão….Um desastre.

Continua Vallejo: “Este modelo educativo permaneceu vigente durante muitos séculos — o sistema romano foi apenas uma adaptação do próprio conceito —, e encontra-se na raiz da pedagogia europeia. O imperador Juliano, o Apóstata, explicou num ensaio as saídas profissionais que se abriam diante de um estudante formado de acordo com a tradição greco-latina dos conhecimentos amplos. Juliano diz que quem teve uma educação clássica, ou seja, literária, poderá contribuir para o avanço da ciência, ser líder político, guerreiro, explorador e herói. Naquela altura, os leitores aplicados usufruíam de amplos horizontes laborais”.

Quem bancava a educação humanista? Os mecenas da educação, que é a seguinte fotografia. “Já disse que entre os séculos III e I a. C. a alfabetização ganhou terreno, inclusive para além das classes dirigentes. O Estado começou a preocupar-se por regulamentar a educação, mas a sua estrutura era demasiado arcaica e os mecanismos administrativos demasiado fracos para assumirem o desafio de um autêntico ensino público. Os estabelecimentos educativos foram incluídos dentro das competências municipais, e as cidades recorriam à generosidade dos benfeitores — eles chamavam-lhes evergetes — para financiarem este e outros serviços de interesse geral. A civilização helenística, tal como depois a romana, foi essencialmente personalista e liberal. Naquela altura abundavam os Bill Gates que exibiam a força das suas enormes fortunas fazendo donativos para obras públicas — caminhos, escolas, teatros, banhos, bibliotecas ou salas de concertos — e financiando os gastos das festas padroeiras. O evergetismo era considerado uma obrigação moral das pessoas ricas, especialmente quando aspiravam a cargos políticos (…) Uma inscrição do século II a. C. encontrada em Theos, uma cidade da costa da Ásia Menor, recorda um benfeitor que cedeu uma quantia capaz de assegurar «que todas as crianças nascidas livres recebam uma educação». O doador deixou estabelecido que seriam contratados três professores, um para cada grau de instrução, e para além disso especificava que os três deviam ensinar meninos e meninas. Em Pérgamo descobriu-se uma inscrição, datada do século III ou II a. C., que também documenta a presença de meninas nas escolas, já que estão entre as vencedoras nas competições escolares de leitura e caligrafia. Gosto de imaginar essas meninas enquanto desenhavam as letras com ar sério, com a língua a espreitar entre os lábios entreabertos, prestes a conseguirem um dos primeiros prémios da História para meninas. Pergunto-me se sabiam que eram pioneiras, se nas suas fantasias mais ousadas sonhavam que, vinte e cinco séculos mais tarde, continuaríamos a recordar as suas vitórias contra a ignorância.

Outra instantânea necessária é a Biblioteca de Alexandria, e tudo o que circula no seu entorno, começando obviamente por Alexandre Magno:  “Embora não exista informação a esse respeito, atrevo-me a imaginar que a ideia de criar uma biblioteca universal tenha nascido na mente de Alexandre. O plano tem as dimensões da sua ambição, leva a marca da sua sede de totalidade. «Considero a Terra», proclamou Alexandre num dos primeiros decretos que promulgou, «como minha». Reunir todos os livros existentes é outra forma — simbólica, mental, pacífica — de possuir o mundo. A paixão do colecionador de livros é parecida com a do viajante. Toda a biblioteca é uma viagem; todo o livro é um passaporte sem data de caducidade. Alexandre percorreu as rotas de África e da Ásia sem se separar do seu exemplar da Ilíada, ao qual recorria, segundo dizem os historiadores, em busca de conselhos e para alimentar o seu afã de transcendência. A leitura, como uma bússola, abria-lhe os caminhos do desconhecido”

Comenta sobre a Biblioteca: “Talvez àquela altura, o século III a. C., tenha sido a única e última vez em que foi possível tornar realidade o sonho de juntar todos os livros do mundo, sem exceção, numa biblioteca universal (…0 Perguntava a Demétrio de Faleros, o encarregado da organização da Biblioteca, quantos livros já tinham. E Demétrio atualizava-o sobre o valor: «Já há mais de vinte dezenas de milhares, oh Rei; e empenho-me para completar em breve o que falta para os quinhentos mil.» Em Alexandria, a fome de livros desenfreada começava a converter-se num surto de loucura apaixonada (…) Acho que a grande originalidade dos sábios da Biblioteca de Alexandria não tem que ver com o seu amor pelo passado. O que os tornou visionários foi entender que Antígona, Édipo e Medeia — esses seres de tinta e papiro ameaçados pelo esquecimento — deviam viajar através dos séculos; que não se podia privar milhões de pessoas ainda por nascer dos mesmos; que inspirariam as nossas rebeldias, que nos recordariam o quão dolorosas podem ser certas verdades, que revelariam os nossos recantos mais obscuros; que nos esbofeteariam sempre que nos orgulhássemos demasiado da nossa condição de filhos do progresso; que nos continuariam a importar”.

O hábito da leitura, como se ganha o gosto, e o papel das mulheres contando histórias, seria o título de outra instantânea. Irene lembra-se de quando criança, que “embora eu abrisse o livro no lugar oportuno, assinalado pelo marcador, não serviria de nada, pois só veria linhas cheias de patas de aranha que se negariam a dizer-me uma mísera palavra. Sem a voz da minha mãe, a magia não se tornava realidade. Ler era um feitiço, sim; conseguir que esses insetos estranhos pretos dos livros, que então me pareciam enormes formigueiros de papel, falassem (…) Se alguém lê para ti, deseja o teu prazer; é um ato de amor e um armistício no meio dos combates da vida. Enquanto ouves com atenção sonhadora, o narrador e o livro fundem-se numa única presença, numa só voz. E, da mesma forma que o teu leitor modula para ti as inflexões, os sorrisos ténues, os silêncios e os olhares, a história também é tua por direito inalienável. Nunca esquecerás quem te contou uma boa história na penumbra de uma noite”.

O parágrafo sobre a presença feminina contando histórias é magnífico, e não somente Vallejo, como o leitor lembra destes momentos, das histórias das mães, das avós: “Ao longo dos tempos, foram sobretudo as mulheres que tiveram de desfiar a memória das histórias à noite. Foram as tecedoras de relatos e retalhos. Durante séculos enovelaram histórias ao mesmo tempo que faziam rodar a roca ou trabalhavam com a lançadeira do tear. Elas foram as primeiras a expressar o Universo como malha e como redes. Seguravam com nós as suas alegrias, ilusões, angústias, terrores e crenças mais íntimas. Tingiam a monotonia de cores. Entrelaçavam verbos, lã, adjetivos e seda. É por isso que os textos e os tecidos partilham tantas palavras: a trama do relato, o nó do argumento, o fio de uma história, o desenlace da narração; puxar o fio da meada, alinhavar uma história, urdir uma intriga. É por isso que os velhos mitos nos falam da mortalha de Penélope, das túnicas de Nausícaa, dos bordados de Aracne, do fio de Ariadna, da linha da vida que as moiras fiavam, da tela dos destinos que as nornas cosiam, do tapete mágico de Xerazade”.

Mais uma fotografia, desta viagem, Ser professora:  “Anos depois, quando eu própria tive de enfrentar a vertigem de uma aula, compreendi que precisamos de gostar dos nossos alunos para despirmos perante eles aquilo que amamos: para nos arriscarmos a oferecer a um grupo de adolescentes os nossos autênticos entusiasmos, os nossos próprios pensamentos, aqueles versos que nos emocionam, sabendo que poderiam fazer troça ou responder inexpressivamente e com uma evidente indiferença”.

E o poder imenso do livro, da palavra que sana: “Antifonte foi o primeiro a ter a intuição de que curar graças à palavra se podia converter num ofício. Também compreendeu que a terapia devia ser um diálogo exploratório. A experiência ensinou-lhe que convém fazer falar aquele que sofre sobre os motivos da sua dor, porque, às vezes, procurando as palavras encontra-se o remédio. Muitos séculos depois, Viktor Frankl, um discípulo de Freud, sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz, desenvolveria um método parecido para ultrapassar os traumas da barbárie europeia da sua época (…) O próprio Frankl escrevia depois que, paradoxalmente, muitos intelectuais suportavam melhor a vida em Auschwitz, apesar de terem uma pior condição física, do que outros presos mais robustos. Afinal de contas — diz o psiquiatra de origem judaica —, quem era capaz de se isolar do terrível meio à sua volta, refugiando-se no seu interior, sofria menos. Os livros ajudam-nos a sobreviver nas grandes catástrofes históricas e nas pequenas tragédias da nossa vida”.

E também a leitura que inquieta: “A maravilhosa e perturbadora Flannery O’Connor escreveu que quem «só lê livros moralizadores está a seguir um caminho seguro, mas um caminho sem esperança, porque lhe falta a coragem. Se alguma vez, por acaso, lesse um bom romance, saberia muito bem que lhe está a acontecer qualquer coisa». Sentir um certo incómodo faz parte da experiência de ler um livro; há muito mais pedagogia na inquietação do que no alívio. Podemos mandar para o bloco operatório toda a literatura do passado para submetê-la a uma cirurgia estética, mas então deixará de nos explicar o mundo. E se nos metermos nesse caminho não devemos estranhar que os jovens abandonem a leitura e, como diz Santiago Roncagliolo, se entreguem à PlayStation, onde podem matar imensa gente sem que ninguém levante problemas”.

Depois de toda esta viagem com fotos, chegamos a um ponto chave: afinal, o que são os clássicos? “Quantos mais anos leva um objeto ou um hábito entre nós, mais futuro tem. O mais novo, em média, perece antes. É mais provável que no século XXII existam freiras e livros do que WhatsApp e tablets. No futuro haverá cadeiras e mesas, mas plasmas ou telemóveis talvez não. Os clássicos são grandes sobreviventes”.

Após esta afirmação contundente continua Irene Vallejo:  “Na linguagem ultra contemporânea das redes sociais, poderíamos dizer que o seu poder — a sua riqueza, em termos censitários — se mede no número dos seus seguidores. São livros que continuam a atrair novos leitores cem, duzentos, dois mil anos depois de serem escritos. Estão para além das variações do gosto, das mentalidades, das ideias políticas; das revoluções, dos ciclos mutáveis, do desapego das novas gerações. E nesse trajeto, onde seria tão fácil perder-se, conseguem aceder ao universo de outros autores, aos quais influenciam. Continuam a subir para os palcos dos teatros mundiais, são adaptados à linguagem do cinema e emitidos pela televisão, até se desprenderam da encadernação e da tinta para se mostrarem na Internet. Cada nova forma de expressão — a publicidade, a manga, o rap, os videojogos — adota-os e realoca-os”.

E ainda sublinha: “Os clássicos são esses livros que, como os velhos roqueiros sempre em ativo, envelhecem em cima do palco e se adaptam a novos tipos de público. Os mitómanos pagam muito para irem aos seus concertos, os irreverentes parodiam-nos, mas ninguém os ignora. Demonstram que o novo mantém com o velho uma relação mais complexa e criativa do que parece à primeira vista. Como escreveu Hannah Arendt, «O passado não leva para trás, mas sim impulsiona para a frente e, ao contrário do que se poderia esperar, é o futuro que nos conduz para o passado».

“Entender o passado como uma força que modela o presente. «O que é que fica do clássico, se há algo que fica depois de ser historizado, que ainda nos possa continuar a falar através das épocas?», pergunta-se um escritor sul-africano. O clássico ultrapassa os limites temporais, retém um significado para as épocas vindouras, vive. Emerge, ileso, do processo de ser posto à prova dia após dia. Embora atravesse épocas obscuras, a sua continuidade não se quebra. Ultrapassa mudanças históricas, até sobrevive ao beijo da morte da sua consagração por parte de fascismos e ditaduras. Algo continua a impressionar-nos nos filmes propagandísticos de Einsestein para os comunistas soviéticos, ou nos de Leni Riefenstahl para os nazis”. Impressionou-me esta afirmação, que quase parece um dogma ex-cathedra de uma leitora empedernida!

Nosso álbum fotográfico, deve acabar. Já se alongou demais, apesar das tentativas de selecionar as melhores instantâneas. E, para finalizar, ocorre-me que a melhor é esta, onde se revela aquilo que suspeitamos ao longo de toda a leitura desta obra singular: o amor aos livros, ou melhor, os livros como uma manifestação de amor. Copio literalmente: “Quando umas páginas nos comovem, a primeira pessoa a quem falaremos sobre elas será um ente querido. Ao oferecer um romance ou um livro de poemas a alguém com quem nos preocupamos, sabemos que a sua opinião sobre o texto se refletirá sobre nós. Se um amigo, uma amada ou um amante coloca um livro nas nossas mãos, rastreamos os seus gostos e as suas ideias no texto, sentimo-nos intrigados ou visados pelas linhas sublinhadas, iniciamos uma conversa pessoal com as palavras escritas, abrimo-nos com maior intensidade ao seu mistério. Procuramos no seu oceano de letras uma mensagem numa garrafa para nós”.

A familiaridade com os livros, reconhecer que somos seres que contam histórias: “Desde a antiguidade, de geração em geração, os seres humanos contam uns aos outros os acontecimentos históricos que deixaram marcas na memória de gerações, mas temos o hábito recorrente de transformá-los em lendas. Mas, tal como o cinema nos ensinou a apaixonar-nos pelas paisagens poeirentas e grandiosas do Faroeste, pelos territórios fronteiriços, pelo espírito pioneiro e pela vontade de conquistar a terra; Homero comoveu os gregos com as suas histórias violentas e vibrantes do campo, da batalha e do retorno dos veteranos para casa”.

Daí nasce essa intimidade com os livros, o hábito da leitura, que é o saldo magnifico que se recupera no investimento com esta leitura através dos séculos: “Certas leituras são uma forma de quebrar barreiras, certas leituras nos recomendam ao estranho que as ama  (…) Stefan Zweig no final memorável de Mendel, o dos livros: “Os livros são escritos para unir, acima de nossa própria respiração, os seres humanos, e assim nos defender do reverso inexorável de toda a existência: a transitoriedade e o esquecimento”.

Sirva esta última instantânea para colocar o fecho de ouro, no livro de Irene Vallejo: “Apesar do impulso do marketing, dos blogs e das críticas, as coisas mais bonitas que lemos são quase sempre devidas a um ente querido – ou a um livreiro que se tornou amigo. Os livros continuam a unir-nos e a amarrar-nos de uma forma misteriosa”. 

Agora sim: boa leitura, boa viagem para você leitor!