Eça de Queiroz: A Ilustre Casa de Ramires

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Eça de Queiroz: A Ilustre Casa de Ramires (em Obras completas- Centaurus Editora 2015, págs.  2810- 3140).

A Tertúlia Literária mensal me faz voltar sobre esta obra de Eça de Queiroz, após mais de três décadas de tê-la descoberto. E confesso que é um privilégio, uma necessidade -mormente nestes tempos de emojis, grunhidos, acrônimos e outras variedades que beiram o analfabetismo- , como uma lufada de ar fresco, descobrir a riqueza da língua portuguesa. Reaprender a se exprimir, a encontra a palavra adequada, le mot juste- como dizia Flaubert.

Gonçalo Mendes Ramires, um fidalgo de estirpe mais velha que o próprio Portugal, pois sua casa ultrapassa os mil anos, é o companheiro desse passeio onde degustamos o prazer do bem falar, da boa escrita. Os fidalgos decadentes, também como o próprio Portugal a quem Eça rende tributo. “Castanheiro fundara um semanário, a Pátria — com o alevantado intento (afirmava sonoramente o Prospeto) de despertar, não só na mocidade académica, mas em todo o País, do cabo Sileiro ao cabo de Santa Maria, o amor tão arrefecido das belezas, das grandezas e das glórias de Portugal! Devorado por essa ideia, a sua Ideia, sentindo nela uma carreira, quase uma missão, Castanheiro incessantemente, com ardor teimoso de apóstolo, clamava pelos botequins da Sofia, pelos claustros da Universidade, pelos quartos dos amigos entre a fumaça dos cigarros, — a necessidade, caramba, de reatar a tradição! de desatulhar, caramba, Portugal da aluvião do estrangeirismo!”.

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João Guimarães Rosa: Noites do Sertão.

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João Guimarães Rosa: Noites do Sertão. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2013. 10 Ed. 304 págs.

É sempre um prazer -e uma necessidade para entender o Brasil profundo- a leitura de Guimarães Rosa. Desta vez, é o momento de Noites de Sertão, na edição magnificamente coordenada por Paulo Rónai, um húngaro que desvendou como ninguém os segredos do escritor mineiro, com quem teve uma sólida amizade e de quem já falamos em  outra ocasião neste espaço. Por isso, o prefácio que antecede os dois contos, é de leitura imprescindível.

Assim escreve Rónai sobre seu amigo médico e escritor: “Inventor de abismos, o autor de Corpo de baile localiza-os em broncas almas de sertanejos, inseparavelmente ligadas à natureza ambiente, fechadas ao raciocínio, mas acessíveis a toda espécie de impulsos vagos, sonhos, premonições, crendices, vivendo a séculos de distância da nossa civilização urbana e niveladora. São almas ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o milagre. O escritor enfrenta-as em geral num momento de crise, quando, acuadas pelo amor, pela doença ou pela morte, procuram desesperadamente tomar consciência de si mesmas e buscam o sentido de sua vida. Esses abismos inventados dão reais calafrios. No fundo deles se vislumbram os grandes medos atávicos do homem, sua sede de amor e seu horror à solidão, seus vãos esforços de segurar o passado e dirigir o futuro (….) Essa figura mal esboçada grava-se entre todas na alma do leitor: do mesmo modo que ela, o próprio autor, feiticeiro disfarçado em diplomata, em escritor, em homem de sociedade, encerrado entre as paredes da sua repartição, da sua casa, da sua classe, delega para o cenário de sua adolescência não um emissário, mas cem — a turba multicor das personagens de Corpo de baile —, a fim de que lhe tragam os ingredientes indispensáveis à recomposição daquela paisagem. Já sabemos que, graças aos milagres constantes de uma memória excepcionalmente fecunda e criadora, elas se desincumbem a contento de sua difícil tarefa, a busca do tempo perdido, causa e fim de toda poesia verdadeira”.

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Mariano Fazio: De Benedicto XV a Benedicto XVI.

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Rialp, Madrid, 2009. 228 págs.

Tinha este libro na minha lista de pendências. Finalmente, aproveitando um final de semana longo, consigo decolar, passo pelas páginas com rapidez -por vezes quase em diagonal, já explico o motivo- e finalizo com algumas anotações, como é habitual nas minhas leituras. Leio o original em espanhol, escrevo estas linhas em português -em atenção à maioria dos meus leitores-e traduzo, em versão livre, algumas citações que extrai do livro.

A primeira advertência é que não se trata de um livro de História da Igreja, o que seria uma enorme pretensão, nessa ponte de um século entre os dois Papas Bento, o XV e o XVI. Assim o explica o autor na introdução que, parece-me ser essencial, porque contém a chave para entender o que se escreve a continuação: “O lugar que a religião tem a ocupar na esfera pública tem sido alvo de inúmeras reflexões nos últimos anos. Na nova perspectiva que a revelação inaugura, a sociedade política deve ajudar a alcançar a felicidade temporal, mas o cristão sabe que acima dessa felicidade está a esperança de uma Pátria eterna definitiva. Diante do dualismo cristão, baseado na distinção entre as duas ordens, sem confundi-las, mas também sem confrontá-las, surgem duas posições extremas, que assumirão diferentes formas nas mutáveis ​​circunstâncias históricas: o clericalismo e o secularismo (…) Se examinarmos as principais correntes culturais e ideológicas da Modernidade, constatamos de imediato que elas absolutizam um elemento relativo da realidade, transformado em chave explicativa do mundo, da história e da existência humana. Este livro pretende expor os marcos centrais da postura da Igreja no mundo contemporâneo —e em particular no processo de secularização—, por meio da voz autorizada dos Romanos Pontífices”.

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The Lost King (and the Gut feelings): As intuições e a busca da verdade.

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The Lost King. Diretor: Stephen Frears. Sally Hawkins Steve Coogan, James Fleet, , Harry Lloyd, Robert Jack, Jessica Hardwick, Sinead MacInnes, John-Paul Hurley, Phoebe Pryce. Reino Unido, 2022. 108 min.

Tinha lido o comentário deste filme numa revista de Cinema, mas li em diagonal. Primeira equivocação. Pensei tratar-se de uma reportagem sobre questões históricas da Inglaterra profunda, com reis que entram e saem, uns matando os outros, e por trás uma obra de Shakespeare que era a minha única referência de ouvido. Questões monárquicas inglesas cantadas pelo Bardo, mas não é Henrique V, que essa sim conhecia bem. Releguei, por tanto, a um lugar comum. Esse foi o segundo erro e agora, pensando enquanto escrevo, lembrei daquela frase de subida ignorância no magnífico filme de Mel Gibson, O homem sem face que a frívola mãe do garoto aprendiz, pronuncia com desprezo: “deve morrer alguém….sempre é assim em Shakespeare”.

Senti-me essa mãe quando comecei a assistir, sem pretensões, num tempo que me restava no final do dia. Não consegui parar. Fui sendo cativado pelo argumento -sim, uma reportagem da vida da protagonista, a história dela como adverte o diretor no início- alavancada pela soberba interpretação. A busca da verdade histórica, apoiada numa intuição qualificada.

E ai sim, as conexões do que lemos, ensinamos, falamos e proclamamos nos cenários educacionais diários em que estamos envolvidos, começaram a emitir faíscas, como arcos voltaicos, onde a trama do filme -e a criatividade do diretor, colocando a um imaginário Ricardo III como interlocutor de Philippa- desenhava já  um sentido profundo, magnífico, tocante.

Intuição qualificada, algo que tenho baralhado nas pautas de educação médica em que transito, sob um nome elegante, British: Gut feelings. Um sentimento das entranhas -uma “corazonada” se diz em espanhol- de que algo é de um jeito e não de outro. Explico. O paciente aparece na minha frente, os exames dele não apontam nada importante, mas algo me diz, lá no fundo, que temos coisa séria. São os anos de prática, a experiencia do muito já visto, que colaboram para essa intuição. É o mesmo recurso que os médicos veteranos utilizamos para enfrentar com serenidade e sem preocupação o caso contrário: paciente com exames alterados, sintomas floridos, mas sabemos que, no fundo, não é nada que comprometa a saúde de modo crítico. Isso é o Gut Feelings, a intuição qualificada, o mesmo que Philippa Langley sente em relação à vida e sepultura de Ricardo III.

Importante advertir da qualificação dessa intuição, sentimento que é precedido de muita experiência, de leituras de livros, de muitas horas de voo no caso profissional dos médicos experientes. Algo que funciona mas que parece não ser científico, porque não tem como ser provado. E por isso mesmo, ninguém fala em voz alta, dessas intuições que seriam de grande ajuda para os jovens que se iniciam profissionalmente nos caminhos da medicina. Há como uma certa vergonha de explicitar essa intuição, que carece de apoio na literatura da medicina baseada em evidências. E, fosse pouco, enfrentará a oposição da academia, do “templo da ciência”. Por tanto, melhor deixar de lado, usar individualmente, mas não comentar com ninguém. Guarda-se “in pectore” e se utiliza para uso próprio. Uma perda para quem é educador, porque se pensasse em voz alta -se o exterioriza-se- talvez os aprendizes demorariam muito menos tempo do que ele em chegar nesse conhecimento peculiar. E não desprezariam as intuições como material não científico. No final, quem perde é, como sempre, o paciente que é atendido, mal atendido no caso.

Estendo-me nesta explicação profissional da prática médica porque é exatamente o que foi surgindo na minha frente com a aventura de Philippa na busca do verdadeiro Ricardo III. O descrédito dos espertos, as advertências dos acadêmicos que lhe têm simpatia -não fale das suas intuições, dos seus sentimentos, porque não pega bem; menos ainda sendo mulher. E ela, firme, decidida, vai virando o jogo, progredindo, juntando novamente a família a quem consegue entusiasmar com um projeto….baseado numa intuição, isso sim, qualificada. A colocação que faz em certo momento, opondo-se ao “que sempre se acreditou”, é contundente: Se ele assassinou os sobrinhos para tirar gente da frente no caminho do trono, como havia muitos outros, teria de ter matado a todos. Certo?

Intuição qualificada que não é um espasmo emocional de adolescente, ou algo que simplesmente não encaixa nos meus moldes mentais. As emoções, os sentimentos, colaboram sim para buscar a verdade; mas tem de ser apoiadas, para terem credibilidade, pelo esforço do estudo, da prática, das horas na trincheira de vida profissional. Como no caso de Philippa que, indo até a biblioteca, compra todos os livros sobre Ricardo III e seguidamente os devora.

Não há como resumir o filme, e também não é a proposta dos comentários neste espaço. Neste caso particular, é preciso assistir e viver a aventura de Philippa, em experiência quase fenomenológica. Passar pelo sentimento de incapacidade, reerguer-se agarrado a uma ideia que vai tomando corpo, fundamentar a ideia para entender que não é um capricho, dar passo à intuição, nessa altura, já com base, qualificada. E, sem dúvida, enfrentar a oposição do establishment académico, superar os entraves do politicamente correto, marcar presença na liderança. E, também, contemplar como as instituições cometem os erros -os mesmos erros!!!- que atribuem às personagens que lhes antecederam. O pensar comum de Ricardo III como um usurpador do trono, não é capaz de vacinar a própria academia na hora de usurpar o mérito de Philippa como propulsora absoluta do projeto.

Afinal, a intuição qualificada, o Gut Feelings é recurso de patrimônio individual, nunca uma metodologia para mudar as instituições que permanecerão sempre na sombra do conforto, evitando qualquer incerteza que possa ameaçar o trono….acadêmico. Esse tem sido sempre o caminho do progresso da ciência: alguns que arriscam e quando tudo está estabelecido, chega a monarquia acadêmica para chancelar o progresso e colocar o selo de qualidade. O selo da academia, entende-se.

Fleming tropeçou com a Penicilina por acaso, e depois a academia -e os laboratórios farmacêuticos- desenvolveram aquele tropeço casual, produzindo benefícios, e polpudos lucros. No magnífico livro de Jurgen Thorwald, “O século dos cirurgiões”,  conta-se a verdadeira história das primeiras luvas cirúrgicas: William Halsted, professor de cirurgia em John Hopkins, não querendo prescindir da presença da enfermeira Caroline Hampton na sala de operações, encomendou à  Goodyear Rubber Company umas luvas de borracha para protegê-la da alergia que Caroline tinha aos desinfetantes. As luvas ficaram para sempre, e Halsted acabou casando com Caroline. O capítulo do livro onde se recolhe o relato intitula-se Luvas de Amor.

Abraham Flexner, autor do famoso informe que em 1910 provocou a reforma nas escolas de medicina, buscando sistematizar os ensinamentos e ordenar o conhecimento, escreve quase 30 anos depois, um opúsculo que se recolhe naquele ótimo livro de Nuccio Ordine, A utilidade do inútil, onde pode ler-se: “A maioria dos descobrimentos importantes da humanidade devem-se a pessoas que não se guiaram pelo afã da utilidade, mas pela curiosidade. ….Defendo a conveniência de abolir a palavra utilidade (nos laboratórios) e liberar o espirito humano”.

Após comentar minha surpresa com um amigo, professor de História,  fui ver o Filme ensaio de Al Pacino, que ele comentou no momento. E mergulhei na peça de Shakespeare, enfim, tentei qualificar a minha intuição…..de que tinha diante de mim um filme contundente, luminoso, esclarecedor.

A leitura de Shakespeare -buscando qualificar-me na intuição- é também esclarecedora. A figura de Ricardo é repulsiva: “Eu, que fui deserdado de belas proporções, roubado de uma forma exterior por natureza dissimuladora, foi com deformidades, inacabado e antes do tempo que me puseram neste mundo que respira, feito mal e mal pela metade, e esta metade tão imperfeita, informe e tosca que os cachorros começam a latir para mim se me paro ao lado deles. Portanto, uma vez que não posso e não sei agir como um amante, a fim de me ocupar nestes dias de elegância e de eloquência, estou decidido a agir como um canalha e detestar os prazeres fáceis dos dias de hoje (…) E assim vou vestindo minha canalhice nua com antigos clichês daqui e dali, roubados dos textos sagrados, e fico parecendo um santo, quando na maior parte do tempo faço o papel do diabo”.

Mas é bom advertir que os dramas históricos de Shakespeare, mais do que apresentar um estudo apurado dos fatos, são a ocasião para que o bardo inglês nos sirva, com elegância ímpar, os porões da alma humana, onde transitam misérias e grandezas. É isso o que faz de Shakespeare um clássico, -seja o argumento ficção pura ou tenha base histórica. Vale copiar, a modo e exemplo, este diálogo de dois assassinos contratados por Ricardo para eliminar um dos seus oponentes, aliás, seu próprio irmão Clarence:

Primeiro Assassino – Mas, onde está a sua consciência agora?

Segundo Assassino – Ah, na bolsa do Duque de Gloucester.

Primeiro Assassino – Quando ele abrir a bolsa para nos entregar a nossa recompensa, a sua consciência vai simplesmente voar para longe?

Segundo Assassino – Não tem problema, a gente deixa ela ir embora. Poucos vão querer acolhê-la, e talvez ninguém queira.

Primeiro Assassino – E se ela volta para você?

Segundo Assassino – Não vou me meter em seus assuntos; ela faz, dos homens, covardes. O sujeito não pode roubar, que ela o acusa; o sujeito não pode soltar palavrões, que ela o censura; o sujeito não pode se deitar com a mulher do vizinho, que ela fica sabendo. É um espírito que fica vermelho de vergonha, um tímido que se amotina contra o coração de um homem. Deixa o vivente cheio de impedimentos. Uma vez, ela me fez devolver uma bolsa de ouro que encontrei por acaso. Ela faz mendigos dos homens que a acolhem. É tida como perigosa nas cidades, de onde a expulsam. Todo homem que deseja viver bem empenha-se em confiar em si mesmo, dispensando-a de sua vida.

Essa é a força imensa de Shakespeare: verdades contundentes como essa apologia da consciência….e de como os homens se livram dela. O que nada subtrai do marco histórico, e das conhecidas frases que a tradição nos legou: “Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo” É Ricardo, ferido, caído, a pé, na batalha final, que encerra o reinado dos Plantagenetas abrindo passo à dinastia dos Tudor.

O que ficou de tudo isto? O que aprendi? História, narrativas, o que nos contam, o que deixam de contar, mesmo sendo Shakespeare, e a intuição que busca a verdade, e conserta a própria vida e a doença. O que o leitor destas linhas pode aprender? Faça a experiência, deixe-se levar pelas intuições, torne elas sólidas, Gut feelings de qualidade, e não tenha vergonha de compartilhar com os outros. É um caminho para a verdade.

Susanna Tamaro: Alma do Mundo

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Susanna Tamaro: Alma do Mundo Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1997. 288 págs.

Foi há muitos anos, um quarto de século, quando li por primeira vez este livro da Tamaro. Fui um pouco no vácuo e no entusiasmo após ler o primeiro dela que caiu na minha mão, e que me impactou: Vai aonde seu coração mandar, as cartas de uma avó para a neta rebelde. Depois desse primeiro, veio Alma do Mundo, e tudo o que lembrava dele é que era uma história muito dura. Com fundo, muito fundo, mas duríssima. Que tinha essência e que aproveitei está demonstrado nas fichas (anotações) que de alguns trechos encontrei no meu fichário e que incluo aqui, ao longo deste comentário. Lembrava da dureza, mas nada, absolutamente nada, da trama, da narrativa que era a ocasião para servir essa filosofia em estado puro.

Talvez por isso, desta vez, com ocasião da tertúlia literária, prestei mais atenção no argumento que, dito de passagem, é pura desculpa para apresentar a filosofia de vida: uma desesperada busca de sentido.

Walter, o protagonista, pilota a narrativa em primeira pessoa, o tempo todo. A perda de um amigo da infância, que sempre ficou presente, serve de overture à contundente dureza da obra. Assim descreve a ausência sentida quando passa perto da casa dele: “A mãe tinha-se esquecido de tirar a roupa que estava a secar, as calças e as camisas ainda lá estavam, penduradas na corda, fustigados pelo vento como bandeiras de um país desaparecido”.

E a seguir, o relacionamento difícil, quase trágico, com os pais. Um filho único que nunca sentiu-se querido nem desejado: “Com um pouco de sorte genética viria a ser tão alto como o meu pai, tão forte como ele. Então, poderia finalmente pôr-me à sua frente e dizer-lhe «odeio-te». Era o que sentia por ele desde que tinha memória de mim mesmo. Não acho que ele sentisse a mesma coisa, pelo menos até esse momento. Durante uma grande parte da infância, julgo que lhe fui totalmente indiferente. Por vezes um enfado, isso sim, mas apenas isso (…) O meu pai considerava-se tão perfeito que não conseguia imaginar, nem mesmo remotamente, que eu pudesse ser uma coisa diferente de uma fotocópia dele. Ele era o máximo e eu tinha de ser igual a esse máximo. Porque a grande, a terrível contradição é esta: o que os homens mais receiam é a diversidade, mas, apesar disso, continuam a pôr filhos no mundo. No entanto, por força das coisas, um filho é sempre diferente. Por isso, é veneno que uma pessoa mistura na sua própria comida”.

A mãe, que poderia ser um consolo, também não o foi, porque, instintivamente defende o pai: “Foi nesse dia que compreendi uma das leis da natureza, que não está escrita em parte nenhuma: se os filhos se portam bem, são do pai, se não satisfazem, passam a ser para toda a vida um apêndice da mãe (…) Afinal, ela foi a única pessoa com quem tive um mínimo de comunhão. Durante algum tempo, na minha infância, fomos uma ilha feliz, nós dois contra o mundo inteiro. O mundo era o meu pai. Eu era o consolo dela, a sua alegria, fui-o durante um período demasiado curto. Ela tinha-se ido embora e eu não lhe tinha dito adeus”.

Conclusões trágicas que vão tornando-se explícitas com o passar dos anos, ao sabor amargo das lembranças: “Já tinha percebido que, em nossa casa, havia uma bomba que não explodira. Estava sepultada sob toneladas de detritos. Esses detritos eram as palavras não ditas. Quanto a mim, sentia-me órfão desde que tinha nascido. Não conseguia sentir qualquer saudade (…) Meu pai bebia porque era um fracassado,  eu só precisava de uma ajuda para me conhecer melhor. Em casa evitávamo-nos um ao outro, éramos dois espelhos que não se podiam refletir”. E, no momento da morte do pai, do lado dele, o ápice da amargura: “As nossas lágrimas tinham temperaturas diferentes, formavam uma única mancha sobre a fronha. Eu respirava com força, ele, mais lentamente. No dia seguinte, morreu (…) A certa altura, a filha de uma internada veio ter comigo. – Gostava muito dele, não? – perguntou, tentando consolar-me. – Não! – gritei. – Odiava-o. Sempre o odiei. É por isso que estou chorando”

Walter prossegue no relato da história da sua vida, triste, miserável. E as lembranças se misturam com verdades, cruas muitas vezes, sobre o ser humano e a sociedade. “Nessa altura, houve pelo menos uma coisa que percebi: se alguém mata sem uniforme, é um assassino; se mata com uniforme, recebe cruzes de mérito. já nessa altura eu tinha um temperamento a tender para o especulativo (…) Com as pessoas demasiado sensíveis acontece muitas vezes uma coisa estranha: à medida que vão crescendo, vão-se tornando mais cruéis. Se alguma coisa mina a sua solidez, os anticorpos põem-se logo em ação. A violência e o cinismo são apenas isso, invertem a visão do mundo para dar força. Nunca me admirei ao ler a vida dos grandes criminosos, havia gente que exterminava populações inteiras e que, à noite, regava flores, comovendo-se com um passarinho caído do ninho. Em qualquer parte, dentro de nós, há um interruptor. De acordo com as necessidades, liga e desliga a corrente do coração”.

Em certo momento, pipocou uma frase que me era familiar. Fui conferir, e lá estava uma das fichas que copiei do livro há vinte e cinco anos…e que utilizei em outros escritos, em palestras, conferências. O legado do que semeamos, para o bem e para o mal: “Nessa altura, ignorava que as coisas que acontecem nunca são neutras. Podemos pensar assim, podemos até estar convencidos. Uma semente de trevo mantém intacta a sua vitalidade durante oitenta anos. O mesmo acontece com os factos, embora os cubramos com uma manta de indiferença, embora lhes sopremos para os escorraçar, ali ficam, quietos. São o germe de qualquer coisa que, mais tarde ou mais cedo, acabará por aparecer”.

Um relato ácido, de realismo contundente, um exame de consciência em voz alta, mas sem procurar culpados, buscando entender o sentido. “Na cidade, não conseguia encontrar um lugar que me provocasse o mesmo efeito, para onde quer que fosse havia demasiadas coisas que vinham ao meu encontro, coisas demasiado belas ou demasiado feias. O excesso desviava a profundidade dos meus pensamentos. Talvez seja uma estupidez dizê-lo, mas envergonhava-me mais dos meus sapatos do que das eventuais lacunas culturais. Há demasiado tempo que vivo como um urso, pensei, basta a modesta atenção de alguém para me provocar mal-estar”.

O relacionamento com pessoas de naipe variado, boêmios e artistas, gente de proceder escuro, é sua fonte de sobrevivência: “Em breve apareceria outro trabalho e depois mais outro, não era assim tão difícil fazê-lo, bastava tapar o nariz e esquecer que tinha cabeça”. Produz-lhe repulsa, mas é o que aparece. Este tempo de convívio -de coexistência- rendeu mais uma das minhas fichas antigas, contundente, sobre o egoísmo e a solidão: “A solidão era essa. Nenhum deles tinha a percepção do outro, sua situação se assemelhava à dos astronautas, que saem da nave para passear no espaço. Ao redor do corpo têm um super equipamento, com oxigênio, temperatura e pressão adequadas, entre o tecido e o corpo existe uma espécie de microcosmo. Do lado de fora, o silêncio e a escuridão que roçam o eterno. Era assim, as pessoas que eu tinha diante de mim pareciam ter feito a mesma coisa, entre elas e o que estava em volta havia um interstício: dali, provavelmente, retiravam o ar e o alimento. E era sempre graças a esse interstício que se defendiam do mundo circundante. No fundo, eu me dizia olhando-os, são os mais sinceros, não fingem que não estão sós. Por isso, talvez,  incomodem tanto. Ninguém gosta de ter jogada na cara a absoluta e tremenda solidão da vida humana. Para escondê-la, a gente se move e se agita desde o dia do nascimento até o dia da morte. Dança-se com as castanholas  e os tamboris para não ver o cadáver que vem à superfície, para que o cadáver não urre dizendo que estamos sós, que estamos todos desesperadamente sós. Pó em movimento, nada mais”.

A narração vai tomando corpo, esculpindo com nitidez as deficiências, nessa revisão nua da própria vida: “Durante anos e anos tinha vivido como um clone de plástico, esquecera-me do cheiro da terra e das suas estações, do ruído dos passos no chão gelado. Esquecera-me do instante tão breve em que se manifesta a alegria, o ser coisa entre as coisas criadas, respiração entre o que respira à nossa volta (…) Abdicara da verdade para viver na ilusão. De tudo o que tinha aparecido na minha frente contentara-me com o invólucro. Tinha agido como age a enorme maioria das pessoas, escolhendo a retórica em vez da persuasão. já sabia que isso tinha acontecido no preciso momento em que sonhara com a glória, no momento em que tinha querido que a diversidade se convertesse num sinal exterior, no momento em que acreditara que diferente e superior eram a mesma coisa”.

Enganado, ludibriado, não por outros mas por si mesmo, por faltar-lhe um rumo na vida. Eis uma sinceridade contundente, uma das marcar registradas nos relatos de Tamaro, tão necessária naquela época em que li o livro, como hoje, onde as distrações e enganos são procurados a la carte, chancelados pelas redes sociais, com os recursos da internet: “Andava, andava, e, ao andar, tentava colar os cacos. Tinha de colar mais de dez anos, o que eu colava não era um percurso, era um processo de lenta degradação. Em vez de construir ou semear, tinha dissipado, da lucidez tensa da poesia passara para a cama de uma rica enfastiada, tinha-me deixado usar por ela e por todos os outros. Pensava que era importante e era apenas um bobo. Com a minha ingenuidade, com o meu desejo de reparação, tinha sido apenas o fantoche ideal nas mãos deles. Para que eles se divertissem, estivera a um passo da morte (….) Agora sei que bastaria uma pessoa, uma só, para que o meu destino tivesse sido diferente. Bastaria um olhar, uma tarde passada com alguém, o vislumbre de uma compreensão”.

No capítulo final, a luz, o canto à liberdade: “E o homem que, em vez de andar com quatro patas, anda com duas. De quatro para duas tudo muda, o céu fica mais perto, as mãos ficam vazias: quatro dedos móveis e um polegar oponível podem agarrar tudo. E é a liberdade, o domínio do espaço, a ação, o movimento, a possibilidade de gerar ordem ou desordem”. E com ela, assumir a própria responsabilidade, sem eximir-se buscando culpados pelas desgraças da própria vida:  “Delegar, esse é o grande erro. Já passaram dois mil anos desde que Cristo desceu à terra e comportamo-nos todos como crianças, esperamos pela mamadeira. Se a mamadeira não chega, pensamos logo numa traição. Mas quem é que disse que Deus deve agir por nós? Ele deu-nos a possibilidade de escolher. Com isso manifestou o poder amoroso do criador. O bem, o mal, estão nas nossas mãos. Não há ninguém lá em cima a preparar-nos a mamadeira, a nossa existência não é a existência dos lactentes. Seria cómodo, claro, mas que significado daríamos às nossas vidas se tudo estivesse estabelecido desde o início?”.

Uma freira solitária num convento é o espelho onde Walter consegue se enxergar, e mergulhar na própria consciência: “A irmã tinha dito que a inveja é o medo de não se ser suficientemente amado”. Discussões iniciais que dão passo à reflexão serena, dura, profunda: “Tem de se ser estúpido? – Não – respondeu ela. – Tem de se ser humilde. Sabe – prosseguiu, olhando-me nos olhos – o grande erro é acreditar que a inteligência é um mérito nosso e quanto mais inteligente se é, mais se tende a acreditar nisso. A própria inteligência choca dentro de si o germe da superioridade. Mas superioridade em relação a quê? A quem? Não somos nós que criamos a inteligência. A inteligência é um dom, uma espécie de pequeno tesouro que devemos tratar com muito cuidado. Só nos é entregue, temos de a respeitar, confiar nela. Ninguém pode decidir ser inteligente, percebe? Ninguém pode pretender ser inteligente, tal como ninguém pode decidir «até que ponto» será inteligente. Bastava pensar-se nisso por uns instantes para barrar o caminho ao orgulho. Um dia ser-nos-ão pedidas contas da forma como a utilizámos”.

Da prepotência e a revolta, para a humildade que, já dizia Teresa de Avila, é a verdade: “Havia quatro cruzes atrás de mim, a cruz da minha mãe, a do meu pai, a cruz de Andrea e a da minha ambição. Estavam todos sepultados sob uma espessa camada de terra. já não precisava de fazer fosse o que fosse para demonstrar qualquer coisa a alguém, nem sequer a mim mesmo. Já sabia que todas as minhas ações tinham sido apenas reações, que todos os meus movimentos tinham existido por oposição à vontade de outros”.

Encontro, quase no final, outra frase que me é familiar. Mais uma daquelas fichas antigas, que copio aqui para encerrar este comentário, um mergulho quase existencial: “Desde o nascimento se ensina que a vida é feita para construir e isso não é verdade. Não é verdade porque o que se constrói cedo ou tarde se desmancha,  nenhum material é suficientemente forte para durar  eternamente. A vida não é feita para construir, mas para semear. Na ampla roda, da espiral do começo à espiral do fim, passa-se e espalha-se a semente. Talvez nunca a vejamos nascer porque pode despontar quando não estivermos aqui. Não faz mal. O importante é deixar de si alguma coisa capaz de germinar e de crescer”.

Construímos -talvez com a esperança dos aplausos e de apalpar o reconhecimento- ou semeamos? Bela reflexão, a modo de ponto final, neste livro que, mais uma vez, percebi ser duro, forte, mas real. O argumento, ao qual prestei atenção, é simples desculpa para essa filosofia da busca de sentido. Está servido o convite para mergulhar com o Walter nos porões da própria consciência!

Zena Hitz: Lost in Thought. The Hidden Pleasures of an Intellectual Life.

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Zena Hitz: Lost in Thought. The Hidden Pleasures of an Intellectual Life. Princeton University Press. 2020. New Jersey. 220 págs.

Chegou às minhas mãos, em publicação espanhola,  uma entrevista com Zena Hitz  professora de filosofia, pensadora e, pelo que rapidamente intui, uma dissidente da academia, inconformada com os moldes engessados que em nada ajudam na formação intelectual dos jovens….e dos menos jovens. Fui atrás do libro dela, encontrei somente a versão em inglês que li de bate pronto, e comento aqui em livre tradução, por dois motivos. O primeiro para servir de aperitivo nesta aventura do pensamento e da inteligência; e o segundo, para caso cair meu comentário nas mãos de algum editor comprometido, ver se decide publicar em português a obra da professora americana.

Para já, devo dizer que em muitos momentos lembrei do pensamento de Josef Pieper -O ócio a e vida intelectual- e, também, da contundente frase de Ortega que cito frequentemente, cada dia com maior vigor: a cultura é o que nos salva do naufrágio vital. São as ideias de sempre apresentadas com novos embrulhos para poder se comunicar. Isso é realmente importante, porque vivemos tempos onde não é possível apenas confiar no conteúdo do que transmitimos, mas é preciso cuidar as formas, a “interface” com o leitor, jovem, digital, inquieto, sem paciência para longos raciocínios.

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As Linhas Tortas de Deus: As fronteiras sutis da sanidade e a doença

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Los renglones torcidos de Dios. Diretor: Oriol PauloEduard FernándezBárbara LennieAdelfa CalvoPablo DerquiLoreto MauleónJavier BeltránFederico Aguado. Espanha, 2022. 152 minutos.

Este comentário -não me atrevo a chamar critica- era algo esperado, carta marcada na minha agenda mental. Um colega do colégio anda metido em assuntos de cinema, e vez por outra me escreve pedindo opiniões, como se eu fosse -e não ele- o esperto na matéria. Disse-me tempo atrás que estava buscando o modo de levar o livro de Torcuato Luca de Tena ao cinema. Buscava um diretor adequado, elenco, e todas essas variantes com as quais um produtor deve se defrontar.

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Franny & Zooey: Revisitando Salinger.

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J. D. Salinger: Franny & Zooey. Editora do Autor Ltda. Rio de Janeiro, 1970. 170 págs

Tinha lido este livro há mais de dez anos e, na época, fiz um comentário destacando como pessoas diferentes, podem mostrar o mesmo amor, também em diferentes formas. Mas todas verdadeiras. Voltamos sobre o livro, revisitando Salinger, um autor cult, raro, peculiar. O cenário agora é a Tertúlia Literária mensal. E a leitura do livro -assim como os comentários- sem perder de vista aquela primeira impressão que continua vigente, é enriquecedora.

Os diálogos entre os dois irmãos, e a escuta paciente da mãe, são o pano de fundo desta obra que o próprio autor, no mini prefácio, quase suplica ao editor que a publique, como se fosse um pedido do seu filho pequeno Mathew Salinger solicitando um sorvete de limão. Quer dizer, um capricho bem ao modo deste escritor tão peculiar.

Franny é a versão feminina de Salinger, uma espécie de apanhador no campo de centeio de saia. Uma contestadora que reclama de um mundo medíocre. Deixa isso claro ao namorado, que sente lhe escapa das mãos: “Você gosta de mim? Nem uma única vez você o disse na sua horrível carta. Odeio você quando quer bancar o supermacho e fica todo cheio de reticências. Não é que realmente o odeie, mas sou constitucionalmente contra os homens fortes e calados”. E acrescenta o autor: “Por vezes, tinha um trabalho infernal para esconder sua impaciência a respeito da inépcia do macho da espécie, em geral, e de Lane em particular (…) Uma garota que não só era extraordinariamente bonita mas, além disso, não pertencia ao gênero pulôver de malha e saia de flanela”.

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Living: Os sustos que nos acordam para a vida.

Pablo González Blasco Filmes 10 Comments

Living. Diretor: Oliver Hermanus. Roteiro: Kazuo Ishiguro. Bill NighyAlex SharpAimee Lou Wood, Adrian RawlinsTom Burke,  Hubert Burton. UK. 2022. 102 min.

Sabendo que se trata da refilmagem de um clássico, assisto sem pretensões…e fico maravilhado. Contemplo a história construída por Kurosawa nos anos 50, agora em versão britânica, mas sem negar as referências: lá está o nome do grande diretor japonês, outros da  sua linhagem que carregam o mesmo sobrenome e, fosse pouco, convocam um prêmio Nobel, também nipónico- Kazuo Ishiguro- para organizar o roteiro. E para dirigir toda esta sinfonia, um diretor sul-africano, que é garantia de Commonwealth, sabor absolutamente britânico.

O resultado é um filme elegante, delicado, tocante, repleto de recados. E também um saca rolhas de reflexões: aquelas que vão se acumulando com os anos, as leituras, os escritos e, especialmente, com as vivências. Organizar essa enxurrada que acode à mente, enquanto contemplamos os fotogramas do filme  -tarefa nada fácil-  que me atrevo a alinhavar, desordenadamente, nestes parágrafos.

O argumento já tinha sido contado por Kurosawa: um funcionário público que gastou a vida, fazendo de conta que trabalhava, perdido entre papeis, processos que, mal ou bem, empurrava para outros departamentos. De repente chega a notícia: um câncer que lhe coloca um dead line (nunca melhor dito). E com o susto, um despertar para a vida, aquela que nunca viveu.

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Emmanuel Carrère: O Reino.

Pablo González Blasco Livros 1 Comment

Emmanuel Carrère: O Reino. Emmanuel Carrère: O Reino. Alfaguara, Rio de Janeiro, 2016. 440 págs.

Não costumo gastar tempo comentando livros que não recomendo. São tropeços que experimentei, guiado por alguma crítica duvidosa. E visto que eu já sofri o tropeço, não me agrada empurrar outros para deparar-se com a mesma lombada. Por isso, tinha desistido de comentar este livro, do qual fiz a seguinte anotação: Uma conversão, uma desistência, uma permanente hesitação, cercada por uma cultura notável -lendo de tudo, e de todos os lados, de Renan até Santo Agostinho- e uma dúvida persistente, como corresponde a muitos dos intelectuais franceses. A dúvida metódica de Carrèrre, não de Descartes. Mas no final, da na mesma. A desconstrução fruto de intelectualismo e cultura mal digerida, que faz ver as coisas com olhos saturados de racionalismo. Um processo onde se apalpa uma atrofia da humildade, que é o único caminho para descortinar uma lógica que transita num plano diferente: a lógica e Deus.

Mas revendo as anotações que destaquei durante a leitura do livro, pensei que sim, poderia ser útil um breve comentário, pois afinal é o caminho que qualquer homem pode sofrer, se carece dessa lógica acima sugerida. A conversão sincera de Carrère, e a queda posterior no niilismo, traz ensinamentos que podem iluminar este doloroso processo.

É preciso reconhecer que Carrère escreve com maestria, em descrições onde se misturam fatos externos, com o seu próprio interior, e talvez por isso transpira hesitação e dúvida. Na crítica desavisada que comentei, figurava um título sugestivo sobre o estilo do francês: uma mistura do eu literário com a realidade.

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