RAZÃO  E SENSIBILIDADE

Pablo González Blasco Filmes Leave a Comment

 (Sense and Sensibility) Dir: Ang Lee. Emma Thompson, Kate Winslet, Hugh Grant, Alan Rickman. 133 min.

Jane Austen está na moda. Quem diria! Aquela escritora inglesa, discreta, autora de meia dúzia de romances, que estendeu os seus 42 anos de vida em ponte de transição entre o século XVIII e o XIX. São os seus, romances inevitavelmente femininos, pois ela escrevia com o realismo de quem vive o plasmado no papel. Orgulho e preconceito, Emma, Mansfield Park, Persuasão têm na alma feminina o combustível -e o motor- do enredo. Não é diferente Sense and Sensibility, que nos chega convenientemente maquiado por Emma Thompson, entregando o roteiro já tratado, nas mãos de diretor …chinês. Bela mistura que resulta num filme de porte, fiel ao espírito do original, em corte perfeito, esbanjando estética e bom gosto. Enfim, Austen versão cinematográfica e não apenas um livro que vira filme.

            Uma ressalva importante. A tradução do título é infeliz, ou melhor, equívoca. O que paira na intenção da romancista é o apaixonante estudo de um eterno equilíbrio de forças: a razão, de um lado; os sentimentos, do outro. A sensibilidade -que nos colocam no título em português- é termo inadequado: aproxima-se foneticamente mas não no conceito. Pode-se atuar de modo racional, com sensibilidade extrema. Assim como é possível ser perdidamente sentimental e carecer da tal sensibilidade. Razão e sentimentos, como fontes vitais de atuação, de postura de vida. Uma dupla via que nos aproxima do conhecimento da realidade e alimenta o nosso agir. Sensibilidade é caso particular de apreciação de situações e, por tanto, não entra no balanceamento estudado. Valha a metáfora neurológica, prosaica mas eloquente: razão e sentimentos são vias de dupla ação: além de captar a realidade -sensitivas- são também vias motoras, conduzem  à ação, nos posicionam diante da vida. A sensibilidade é canal sensitivo: somente capta, não move diretamente; quando muito, apenas modula a ação. Um esclarecimento conveniente.

            Sense and Sensibility  -razão e sentimento- é uma história de mulheres: a mãe que enviúva e três filhas, que são meias irmãs daquele a quem corresponde toda a herança paterna por lei, vinda do primeiro casamento. Elinor, Marianne e Margareth serão as peças da nossa história. As duas primeiras, os arquétipos do estudo balanceado que o romance e o filme nos brindam.

            Lembrava -vendo o filme- da primeira vez que me deparei com o nome de Jane Austen  em destaque. Foi num livro de filosofia, escrito por um pensador inglês contemporâneo: McIntyre.  Intitulava-se After virtue. Um corajoso ensaio de antropologia,  no qual o autor propõe o modelo de ética que nos convém nestes tempos que vivemos: a ética das virtudes. Quer dizer, não uma ética subjetiva – seja ela utilitarista, hedonista, ou ao serviço de qualquer imanentismo; nem uma ética positiva apoiada na objetividade. Isso -que é bom- torna-se insuficiente. É preciso uma ética de virtudes, onde as pessoas não podem conformar-se com evitar o que é mau moralmente, mas devem se esforçar por praticar todo o bem de que são capazes. Uma ética que desentoca o comodismo, que condena a omissão, que não se contenta com cumprir expediente. Aquilo de “não fazer mal a ninguém” deixa vazios enormes no universo ético. É preciso ir mais longe, comprar o desafio de crescer no bem. Nas páginas de McIntyre aparece Jane Austen com sua proposta de mulher virtuosa. Foi o ponto de partida para ler os romances da escritora inglesa que estava, até esse momento,  colocada num canto cinza da memória.

            Daí arranca a surpresa de ter virado moda, e moda que se aceita, que é gostoso -por entrar na sintonia da sensibilidade, que deixamos tão mal parada há breves instantes- de espelhar-se e de se medir por estes predicados.  A proposta da mulher virtuosa de Austen é, sobretudo, a de uma mulher equilibrada. Quer dizer, normal. E não é pouco, pois a normalidade, infelizmente, -e não só nas mulheres, também os homens- é cada vez menos comum. Tanto é assim que chegamos a perder os parâmetros de normalidade, tomando como normal o que é apenas ordinário, comum. Novo equívoco, de consequências fatais, não só para a ética das virtudes mas para a vida mesma.

            Como são as heroínas de Austen? Mulheres inteligentes, com senso do humor, extremamente ajuizadas. São finas, delicadas, generosas, abnegadas. São, na plena acepção da palavra, virtuosas. Quer dizer: não nascem, se fazem; e isto é mesmo virtude, que os clássicos definem como hábito bom. A virtude não é patrimônio genético; não é traço temperamental, nem fisiológico. Não vem dado, como a cor dos olhos. A virtude se adquire com esforço. São, pois, mulheres esforçadas: mas com esforço sereno, equilibrado, sem estridências. Esforço constante; não existe virtude adquirida por mutirões ou em cursos intensivos. Não há como não pensar nos cursos de ética, onde se tenta -inutilmente- empurrar goela abaixo, em estreita carga horária, comportamentos que não se adquiriram na vida. A virtude é também crescimento quase fisiológico, constante, como o biológico: ninguém estica a criança para que cresça mais rápido . É preciso tempo e, sobre o tempo, educação, nutrição, trabalho que constrói.

            Vem também ao pensamento a curiosa atitude com que os homens invejamos nossos semelhantes. Invejamos aquilo que não depende de nós, como o nível de inteligência, ou a cor dos olhos, a altura. De nada adianta invejar o que vem “de fábrica” e não existe mérito nenhum em possuí-lo. Diferente é a situação de quem é virtuoso –como a lealdade, a pontualidade, a sinceridade, o compromisso- e esses atributos não costumam ser objeto de inveja, nem mesmo de emulação. Aqui sim valeria a pena sentir-se espicaçado pela virtude alheia, e admitir que ser ordenado, ou falar com franqueza, ou vencer a preguiça para levantar-se da cama, não são “modos de ser, jeitos de fulano” mas sim virtudes adquiridas que, igualmente, poderiam ser nossas se houvesse o esforço correspondente. Precisamos, pois, situar a inveja e, seu parente positivo, a emulação, nos objetivos que podem ser construídos e não em utopias irrealizáveis.

            Elinor é a razão, Marianne o sentimento. Mas as coisas não são simples assim, como se de uma fábula se tratasse. Razão e sentimento estão presentes nas duas irmãs e em qualquer ser humano. A questão é como se administram estes dois canais e qual o equilíbrio que resulta. Não é um problema temperamental ou de modo de ser apenas; Austen vai mais longe.  Elinor, em quem o juízo ponderado governa as ações é uma mulher sensível, tem sentimento e muito. Deves supor -diz para Marianne – que sofri. A tranquilidade de espírito que consigo ter agora para analisar o assunto, a consolação que estou desejosa para me conceder, são o efeito de constantes e dolorosos esforços que não brotaram espontaneamente…que não ocorreram desde o início para aliviar meus sentimentos”. Sobram comentários, o texto é autoexplicativo. E Marianne, de quem Austen nos diz: sentia toda a força dessa comparação, mas não como sua irmã esperava, de um modo que a levasse a esforçar-se; sentia-a com toda a dor do remorso contínuo, lamentando amargamente nunca ter se esforçado antes; isso trazia-lhe apenas a tortura da penitência, sem a esperança de poder se emendar. Seu espírito estava tão enfraquecido, que ela achava impossível o esforço atual, que só servia para deprimi-la ainda mais”. Maravilhosa caracterização da virtude que é, pelo visto, esforço, empenho para mudar.

            Razão e sentimento não é uma apologia do autocontrole, da indiferença, nem a condena da percepção afetiva. É o elogio da virtude que modela os sentimentos, que os ordena utilizando-os como força imprescindível para sermos verdadeiramente humanos. O que seria de nós sem os sentimentos? Um híbrido de animal com traços de robô, modelo indesejável. Razão é vontade, são os remos do barco para o piloto que dirige. Os sentimentos são a cópula de vento e velas que impulsionam o navio. Quando favoráveis, devem ser aproveitados, sem dispensar o leme que os guia. Quando ausentes, os remos se encarregarão de prosseguir o rumo. Quando contrários, é preciso recolher velas e navegar em diagonal, tirando partido do esforço.

            Sentimentos que dão colorido ao raciocínio, que nunca existe em estado puro. Aquecem as ideias, as tornam digestivas. J. Lecquerq, filósofo belga, aponta com acerto: “São exceção os que sofrem a ação de uma ideia em estado puro. O raciocínio tem poder sobre o espírito sempre que é formulado de modo a despertar o sentimento ao tempo que ilumina a inteligência. Aí está a arte -por exemplo- da propaganda e da persuasão onde se chega a exprimir as ideias de modo que levam a agir”. Não são, nem de longe, dispensáveis os sentimentos. Precisamos deles, como condição necessária…mas não suficiente. É preciso ter a modulação do entendimento para não afogar-se na enxurrada do sentimento. Como dizia alguém em frase que resume este dilema é preciso atuar sempre com o coração, mas não só com ele. Também, é obvio, com a cabeça.

            Longe nos levou o filme de Ang Lee. Produção cuidada, que agradará se há empatia com a temática. Não é um filme “água com açúcar”, de mulheres casadoiras à procura da solução conjugal. É uma tradução em imagens do pensamento, cativante, de Jane Austen. Também os homens tinham para ela suas virtudes qualificadoras: retidão, generosidade, inteligência e, sobretudo, discrição, não fazem barulho. O general Brandon é o protótipo de herói masculino. A vaidade é para Austen um dos piores descréditos no homem. Mas, sem deter-se neles -afinal é mulher que fala do que entende- coloca sua mira na alma feminina que disseca expondo as qualidades, tornando apetitosa a virtude. E isso na vida do dia a dia, no quotidiano onde acontecem -também sem barulho- as tragédias e as vitórias.

            Razão, sentimento, virtude, esforço, equilíbrio necessário para essa unidade maravilhosa que é o ser humano. Equilíbrio que será sempre instável, precisando de retoques contínuos. O homem não consegue -nem pode- abrir mão de um dos ingredientes sem adulterar a fórmula, sem deixar de ser homem. Como não pode prescindir da alma, nem do corpo. Não somos animais… nem anjos. Somos humanos, que arrastam a condição composta, às vezes dolorida embora verdadeira, de uma amálgama que requer proporção. Engrenagem fabulosa que pode emperrar, como nas calhas de roda que nos conta o poeta fingidor, onde a razão é entretida pelo comboio de corda, pelo coração. Por isso a necessidade, virtuosa, do esforço lubrificante.

             De tudo isso nos fala Austen, e o filme consegue passar o recado. Uma conquista -a equanimidade- entre muitas, na empreitada das virtudes. Uma defesa que nos vacina e nos situa diante da realidade, que tonifica nossos afetos. “Há uma realidade eminente nas grandes alegrias e nas grandes dores -diz Guitton- que faz com que mais nada pareça existir nesse instante que o absorve tudo”. Viver o momento presente, por inteiro, cabeça e coração, em singular harmonia. Uma proposta que nos chega com dois séculos de per meio e tem absoluta atualidade, contundente atrativo.

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