“A Vida na Sarjeta: O Círculo Vicioso da Miséria Moral” E Realizações. São Paulo, 2014. 278 págs.
Consultando as minhas publicações -algo que já me recomendaram fazer com mais frequência, até porque há quem diga que a gente escreve para nós mesmos mais do que para os outros- reparei que há quase 3 anos que não leio nada deste autor. Este livro esperava seu momento na estante, e chegou agora.
Uma coletânea de ensaios/relatos sobre o submundo onde o autor se movimenta. Não um submundo apenas social, mas sobretudo moral. Esta é a linha que costura todos os relatos, e que o médico britânico abre com uma citação contundente de Shakespeare, que resume quase tudo o que aqui está escrito “Essa é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não nos correm bem – muitas vezes por culpa de nossos próprios excessos – pomos a culpa de nossos desastres no sol, na lua e nas estrelas, como se fôssemos celerados por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas; bêbados, mentirosos e adúlteros, pela obediência forçosa a influências planetárias, sendo toda nossa ruindade atribuída à influência divina … Ótima escapatória para o homem mestre da devassidão, responsabilizar as estrelas por sua natureza de bode!” (Rei Lear, Ato 1, Cena II).
No primeiro relato centra o tema que se desenvolve ao longo do livro: “Como médico, trabalhei na última década em um hospital geral muito movimentado numa região pobre da Inglaterra, e em uma penitenciária nos arredores, e estive em posição privilegiada para observar a vida dessa subclasse pobre. Além disso, por ter trabalhado anteriormente como médico em alguns dos países mais pobres da África, bem como em comunidades pobres do Pacífico e na América Latina, não hesito em dizer que o empobrecimento mental, cultural, emocional e espiritual da subclasse pobre ocidental é maior que o de qualquer outro grande grupo de pessoas que já tenha conhecido em qualquer outro local”.
Estamos em situação pior do que os países pobres? É a pergunta que surge inevitavelmente. A resposta afirmativa de Dalrymple está articulada na base “intelectual” que sustenta a miséria moral. “Esse ingrediente é encontrado no campo das ideias. O comportamento humano não pode ser explicado sem fazer referência ao significado e às intenções que as pessoas dão aos próprios atos e omissões; e todos possuem uma visão do mundo, saibam ou não disso (..) A ideia de que a pessoa não é agente, mas uma vítima indefesa das circunstâncias, ou de grandes forças ocultas sociológicas ou econômicas, não surge naturalmente, como uma companheira inevitável da experiência. A ideia foi propagada incessantemente por intelectuais e acadêmicos que não acreditam nisso no que diz respeito a eles mesmos, é claro, mas somente no que concerne a outros em posições menos afortunadas. (…) Se traço um quadro de vida que é totalmente sem encanto ou mérito, e descrevo pouquíssimos atraentes, é importante lembrarmo-nos de que, uma grande parte da culpa disto é devida aos intelectuais. Consideram a pureza das ideias mais importante que as reais consequências”.
O que não faltam são histórias de vida que ilustram a teoria sociológica do pensador, fruto de inúmeros exemplos que cristalizam em conclusões inapeláveis. “Quando um homem me diz, que se deixou levar pelo impulso para cometer um crime, como algo inevitável, pergunto-lhe se alguma vez se deixou levar pelo estudo da matemática ou do subjuntivo dos verbos franceses. Invariavelmente, o homem começa a rir: o absurdo do que ele disse se toma aparente para ele mesmo (…) Com frequência cada vez maior consulto enfermeiras, tradicionalmente e por muito tempo originárias ou pertencentes à respeitável classe média baixa (ao menos, após Florence Nightingale), que têm filhos ilegítimos de homens que, inicialmente, praticaram algum tipo de abuso, e depois as abandonaram. Violência e posterior abandono são, em geral, muito previsíveis dados o histórico e a personalidade desses homens, mas as enfermeiras que foram tratadas dessa maneira dizem que se abstiveram de julgar o companheiro porque é errado fazer juízos de valor”.
As histórias se sucedem, até porque o livro reúne um conjunto de crônicas/ensaios escritos em datas diferentes. Continua a toada, como o samba de uma nota só: “O propósito oculto de milhões de pessoas é ser livre para fazer, sem mais nem menos, o que quiserem e ter alguém para assumir quando as coisas derem errado. Como médico que assiste pacientes uma ou duas vezes por semana, fico fascinado com o uso da voz passiva e de outros tipos de discurso utilizados pelos prisioneiros para indicar o suposto desamparo. Descrevem-se como marionetes do acaso. Hoje a concepção prevalecente de vício, em geral, é a de uma doença caracterizada por um ímpeto irresistível (mediado neuro quimicamente e hereditário por natureza) para consumir uma droga ou outra substância, ou para se comportar de maneira autodestrutiva ou antissocial. Um viciado não tem culpa e, por seu comportamento ser a manifestação de uma doença, possui tanto conteúdo moral quanto as condições meteorológicas. A nenhum deles ocorreu que os dramas mesquinhos de suas vidas particulares não justificam uma atividade antissocial. Pensavam que a frustração era como o pus em um abscesso, melhor fora do que dentro, e recordei-me de um assassino que certa vez me disse que teve de matar a vítima, caso contrário não sabia o que poderia ter feito”. E conclui com um pensamento conhecido: “O homem sempre teve a capacidade de enganar os outros e do autoengano. Foi Friedrich Nietzsche quem disse que o orgulho e o amor-próprio não têm dificuldade de superar a memória, dobrando-a”
Pergunta-se pelos motivos deste despropósito. “Por que isso acontece exatamente quando, objetivamente falando a liberdade e a oportunidade para o indivíduo jamais foram tão grandes? Em primeiro lugar, existe hoje um eleitorado muito ampliado para as visões progressistas: legiões de voluntários e cuidadores, assistentes sociais e terapeutas, cujas rendas e carreiras dependem da suposta incapacidade de muitas pessoas de se defender ou de se comportar razoavelmente. Em segundo lugar, há uma ampla disseminação dos conceitos psicoterapêuticos, ainda que de forma adulterada ou mal interpretada. Esses conceitos se tornaram lugar comum, mesmo para os ignorantes. Assim, foi incutida a ideia de que, se a pessoa não conhece ou compreende os motivos inconscientes dos próprios atos, não é verdadeiramente responsável por eles. Terceiro, a anuência geral do determinismo sociológico, em especial, pelas classes médias abarrotadas de culpa. Associações estatísticas têm sido utilizadas indiscriminadamente como provas do nexo causal. Assim, se o comportamento criminoso é mais comum entre as classes pobres, deve ser a pobreza que causa o crime”.
Também se aborda o tema da violência contra a mulher, e dos crimes sexuais, sempre ilustrados com exemplos contundentes. Vejamos um exemplo:
– Sei tomar conta de mim – disse-me a moça de dezessete anos.
– Mas os homens são mais fortes que as mulheres – eu disse. – Quando se trata de violência, eles estão na vantagem.
-Você está sendo muito sexista – respondeu.
Uma moça que não absorvera nada na escola tinha, contudo, assimilado o jargão do politicamente correto e, em particular, do feminismo.
– Mas é um fato simples, direto e inescapável – respondi.
-É sexista – a garota reiterou com firmeza.
Continua o médico, não sem a conhecida ironia britânica: “Existe uma excelente razão por que esse tipo de violência deve ter aumentado durante a nova dispensação sexual. Se as pessoas procuram liberdade sexual para si mesmas, mas fidelidade sexual da outra parte, o resultado é a excitação do ciúme, pois é natural supor que aquilo que um faz, está sendo feito da mesma maneira pelo outro- e o ciúme é o precipitador mais frequente da violência entre os sexos. Essas mulheres experimentaram, sucessivamente, uns três ou quatro homens desse tipo e não faz sentido trocar um pelo outro. Os maus-tratos conhecidos são melhores que os desconhecidos. Por que a mulher não abandona o companheiro assim que ele manifesta ser violento? Porque, perversamente, a violência é o único sinal de compromisso que ela possui. Da mesma maneira como ele quer a posse sexual exclusiva da mulher, ela quer um relacionamento permanente com seu homem. Ela imagina – falsamente – que um soco no rosto ou uma esganadura é, ao menos, sinal de contínuo interesse, o único sinal, além das relações sexuais, que provavelmente receberá a esse respeito. Na ausência de uma cerimônia de matrimônio, um olho roxo é uma nota promissória de amor, honra, cuidado e proteção”
Aparecem também as tatuagens, o barulho caótico no sistema de saúde, e toda uma série de elementos que o médico britânico observa na sua prática e que reforçam a teoria da miséria moral. “Formulei pela primeira vez minha teoria virai da criminalidade quando percebi que nove entre dez prisioneiros brancos ingleses são tatuados, três ou quatro vezes mais que a proporção na população geral. Tenho certeza de que associação estatística do crime com a tatuagem, é mais forte do que a existente entre o crime e qualquer fator. Quando perguntei por que infligiam aquelas marcas de Caim neles mesmos, o tatuado citou a pressão do grupo e o tédio. Talvez a dor da tatuagem dê a eles a certeza de que estão vivos: dói, logo existo (…) Agora, no hospital, é visto como algo cruel privar o paciente da televisão diária, tanto que assistir a ela está se tornando praticamente compulsório ou, ao menos, inescapável para aqueles que não estão em condições de se mover. Idos são os dias em que o hospital era um local de quietude (na medida do possível) e repouso. Atualmente ninguém morre sem o benefício do talk show. Há alguém na enfermaria, um pós-modernista, talvez, que acredita que um momento sem entretenimento é um momento perdido, e que uma mente não preenchida pela bobagem de outro alguém é um vácuo do tipo que a natureza abomina”
Não poderia faltar o jogo: “Não precisamos ser revolucionário marxistas para notar como os pobres são espoliados do todo o dinheiro que possuem – com a colaboração ardente deles mesmos- pelos donos do capital, nesse caso, os proprietários das casas de apostas, afiliados a uma ou duas grandes cadeias comerciais. O pobre, escreveu um bispo alemão do século XVI, é uma mina de ouro; e assim, por sua vez, os moradores de rua. Como observa Dostoiévski, não há outra atividade humana que ofereça emoções tão fortes em tão curto tempo: uma esperança febril, desespero, júbilo, miséria, excitação, desapontamento. É um crack de cocaína sem química”
Evidentemente, toda essa coleção de misérias que Dalrymple descreve, apoia-se num sistema de ideias que é onde ele dirige a sua principal crítica, de modo implacável e contundente. “A ideia de que é possível fundamentar uma sociedade sem nenhum pressuposto cultural ou filosófico, ou alternativamente que todos os pressupostos sejam tidos iguais de modo que não se faça nenhuma escolha é absurda. Assim como ninguém é culpado quando todos o são, ninguém é responsável quando todos o são. No ambiente moderno, afinal de contas, os direitos sempre prevalecem sobre os deveres. Para a visão progressista, todos somos igualmente culpados e, portanto, igualmente inocentes (….) Recentemente ouvi um professor de estudos clássicos de Oxford declarar que em termos de qualidade não existia escolha alguma entre Mozart e as produções dos mais recentes grupos de rap. O mecenato das artes, por conseguinte, transformou-se em mera pesquisa de opinião pública e exploração dos gostos mais baixos e das fraquezas das pessoas. Mesmo no comportamento, a nova ortodoxia para todas as classes é a seguinte: já que nada é melhor e nada é pior, o pior é melhor porque é mais popular”
Num dos capítulos finais, que intitula como os criminologistas promovem o crime, a crítica e a ironia são demolidoras: “Os acadêmicos utilizaram dois argumentos para estabelecer a estatística da normalidade do crime e a consequente ilegitimidade das penas do sistema judiciário criminal. Primeiro, alegam que, em todo caso, somos todos criminosos; e quando todos são culpados, todos são inocentes. O segundo argumento, marxista na inspiração, é que a lei não tem conteúdo moral, sendo simplesmente a expressão do poder de certos grupos de interesse – do rico contra o pobre, por exemplo, ou do capitalista contra o trabalhador. Uma vez que a lei é uma expressão de força bruta, não há distinção moral essencial entre o comportamento criminoso e o não criminoso. É apenas uma questão de qual pé calça a bota. Essa é uma postura que encontramos muitas vezes entre os arrombadores e ladrões de carros. Acreditam que quem quer que possua algo pode suportar que alguém que não tem essa coisa possa tomá-la. O crime seria apenas um ajuste de tributação redistributiva vinda de baixo. Se a humanidade, como expôs T. S. Eliot, não pode tolerar muita realidade, parece que pode suportar qualquer quantidade de irrealidade”
Neste ponto, o autor ilustra com uma lembrança pessoal: quando moleque, acabou levando algo da mercearia da esquina sem pagar. Anota: “Minha mãe não partilhava do ponto de vista de que isso era um episódio momentâneo de delinquência que passaria no devido tempo. Sabia instintivamente (pois naquela época ninguém havia confundido a cabeça das pessoas) que para a delinquência triunfar o requerido era simplesmente não fazer nada. Ela não pensou que meu furto fora um ato natural de autoexpressão, ou revolta contra a desigualdade entre o poder e a riqueza das crianças e o dos adultos, ou, na verdade, algo diferente do meu desejo de ter o chocolate sem pagar por ele. Ela estava certa, é claro. O que fiz foi moralmente errado, e para que gravasse esse fato, ela marchou comigo até a Sra. Marks, dona da loja, onde confessei meu pecado e paguei em dobro, como forma de restituição. Esse foi o fim da minha carreira de furtos em lojas”.
Este longo resumo não dispensa a leitura pausada -divertida e às vezes chocante do livro. Toda uma experiência em que a sociologia penetra de modo fenomenológico. As conclusões podem ser muitas e variadas, sempre permeadas de reflexão e de luz para desmascarar a podridão que se encobre sob a capa do politicamente correto. Juntamos alguns parágrafos neste final de comentário a modo de provocação para a leitura.
“A equação demagógica de toda autoridade ser um injustificado autoritarismo político, mesmo para as crianças pequenas, somente conduz ao caos pessoal e social. A experiência ensinou-me que é errado e cruel suspender o juízo, e que não manifestar juízos de valor é, na melhor das hipóteses, indiferença para com o sofrimento alheio e, na pior das hipóteses, uma forma disfarçada de sadismo. Começamos a perceber que o sistema de Bem-Estar, por não fazer quaisquer julgamentos morais promove o egoísmo antissocial. O empobrecimento espiritual da população é pior do que qualquer coisa que já viram antes nos próprios países. Eu e os médicos da Índia e das Filipinas chegamos à mesma e terrível conclusão: o pior da pobreza está na Inglaterra – e não é a pobreza material, mas a pobreza da alma. A vida nos bairros pobres da Grã-Bretanha demonstra o que acontece quando a maior parte da população, bem como as autoridades, perde e a fé na hierarquia de valores. O resultado é todo tipo de patologia: onde o conhecimento não é preferível à ignorância, e a alta cultura à baixa. As autoridades se portam com tamanha falta de senso comum que devemos considerar algo mais que mera ignorância. Parafraseando ligeiramente o Dr. Johnson, tal estupidez não existe na natureza. Tem de ser trabalhada ou adquirida. Como sempre, devemos buscar a influência perniciosa de ideias equivocadas para explicá-la. A falta de padrões, como observou Ortega y Gasset, é o início do barbarismo: e a moderna Grã-Bretanha já passou desse início há muito tempo”. Está servido o desafio para a leitura!