Patrick Modiano: Ronda da Noite. Roco. 2014. 126 pgs.
Um romance curto, rápido, quase vertiginoso, do Premio Nobel de 2014. Sem trama definida, uma mistura de flashback com projeções e possibilidades, combinando sonhos e reflexões, em aventura que alterna a realidade com o onírico. Ambientado a gosto do escritor francês, nos tempos da ocupação nazista da França, um tema recorrente em Modiano. Basta lembrar o filme de Louis Malle, Lacombe Lucien, que tem Modiano por roteirista.
Ronda da Noite é uma variação sobre o mesmo tema. O protagonista é um espião, um agente duplo, que trabalha para os dois bandos,…. e engana os dois. “De um lado os heróis camuflados na sombra: o tenente e os impolutos oficiais do sue estado-maior. Do outro, o Khédive e os gangsteres que o acompanham. E eu, oscilando entre os dois com ambições, oh, bem modestas: Barman numa estalagem nas cercanias de Paris. Barman: a gente se acostuma. Dói, às vezes. Sobretudo por volta dos 20 anos, quando a gente acredita ser solicitado para um destino mais brilhante”
Dai que se auto denomine agente tríplice, porque no fundo trabalha para ele mesmo, para garantir seu sustento. Não existe regra, moralidade, nem mesmo lealdade. Tudo vale, quando se trata de conseguir vantagens. “A gente, inicialmente, hesita em empregar tais procedimentos, depois se habitua. Meus patrões davam-me uma comissão de dez por cento, quando eu lidava com esses negócios”.
E esse universo deplorável, é salpicado com gestos que tentam, sem consegui-lo, camuflar, ou compensar, ou talvez distrair suas misérias. “Á noite, levava para mamãe carradas de orquídeas. Ela se inquietava ao me ver tão rico. Talvez adivinhasse que eu desperdiçasse minha juventude em troca de algum dinheiro(…) Chantagista, delator, vigarista, dedo-duro, alcaguete, assassino talvez, mas filho exemplar”.
Ainda não consigo dizer se gostei do livro. Surpreendeu-me, terei de ler de novo para não perder o tempo buscando um argumento que não existe, e centrar-me nas ponderações do protagonista que são verdadeiras cargas de profundidade. “Teria gostado de ser médico, mas os ferimentos, a visão do sangue causam-me indisposição. Por outro lado, aguento muito bem a feiura moral (…) Naturalmente desconfiado, tenho o hábito de considerar as pessoas e as coisas pelo pior lado, para não ser apanhado desprevenido”. Afirmações tremendas, que ressaltam a mesquinhez do protagonista, sua penúria moral. E quando lidas devagar, relidas, e escritas –como agora estou fazendo- surgem como interrogantes do nosso próprio atuar. Afinal, será que é tanta a distância entre esses padrões éticos e os nossos? Não os teóricos, a filosofia de vida que defendemos, mas a nossa ação prática no dia a dia. Se a isto acrescentamos uma guerra onde é preciso sobreviver, e submetemos a essa condição nossos parâmetros de conduta, a reflexão produz vertigem. E aprendizado. E desejo de calibrar melhor o que entendemos por integridade. Sem esperar que chegue uma guerra ou um desastre para comprová-lo. Daí pode ser tarde demais.