Ulrich Schnabel: “Ocio. La felicidad de no hacer nada”

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Ulrich Schnabel: “Ocio. La felicidad de no hacer nada”. Plataforma. Barcelona. (2011). 350pgs

O sugestivo título convidou-me a adquirir a versão espanhola do original em alemão. Mas confesso que fui com muita sede ao pote, em busca de um caminho rápido para esse ócio que se nos escapa, como água entre as mãos, no mundo agitado em que estamos mergulhados. As primeiras páginas –que são as melhores do livro- foram como um cruzado de esquerda para situar-me.

Em livre tradução pode se ler o recado do autor. “Acostumados à sociedade consumista o ócio pode se considerar, erradamente, como mais um bem de consumo. Dai o engano de querer adquirir o ócio com cursos de relaxamento, de autogestão do tempo, ou nas diversas variáveis de ócio express. Mutirões de ócio, que depois não rendem nada”. Como se o ócio fosse um desligar-se, um divorciar-se da própria vida, um fazer de conta durante algumas horas –ou minutos, ou dias- para voltar à dureza habitual. Não existem mutirões de ócio. O ócio não se consegue apertando um botão, clicando um ícone do menu da nossa agenda habitual.

Dai que nos primeiros capítulos se esclareça que o ócio não se limita à inatividade, mas se apresenta de formas diversas: nas conversas, no jogo, no passeio, na prática de música e mesmo no trabalho. São aqueles momentos que têm seu próprio valor, e não se regem pela moderna lógica do aproveitamento e da produtividade. A arte do ócio não tem nada a ver com o número de horas livres, mas com uma atitude. Tem pouco a ver como o tempo, e muito com a perspectiva. Uma atitude que alguém define como “a sintonia entre o meu eu e isso do qual depende a minha vida”. Quando não se tem claro do que depende a vida e de quem somos nós, a busca do ócio está fadada ao fracasso. O ócio é, antes de tudo, uma atitude que leva a recuperar o controle do próprio tempo.

E a proposta não é pouca coisa, pois o que diariamente comprovamos é que “nos esquecemos da nobre arte do ócio. Celebramos a atividade pela atividade, sem nos perguntar se isso é benéfico ou prejudicial para as pessoas; o produto interno bruto costuma ser a marca distintiva da felicidade, e nos seduz o último aparelho digital, que nos abre múltiplas opções de informação, como se a proposta fosse apenas aumentar a quantidade e não a qualidade dessa informação”.

Junto com a atitude de reconquista do controle do próprio tempo, o autor aponta uma segunda característica da arte do ócio. Defender-se das novidades que nos atingem continuamente. “Recobrar o controle do nosso tempo, desfrutar do momento presente, sem deixar-se consumir pela avalanche de oportunidades que acaba nos afogando na variedade de possibilidades. Uma maior multiplicidade de oportunidades nos cansa, porque a continua necessidade de eleger nos consome. Mais do que animar, desmotiva. Quem tem de escolher continuamente entre uma multidão de marcas de iogurte, de seguros, ou de canais de TV não sente aumentada sua liberdade, mas sua ansiedade”.

Lembrei, conforme lia estas linhas, da conhecida afirmação de Ortega y Gasset quando definia a técnica como “o esforço por poupar esforços”. Parece que a técnica, ou pelo menos o modo em que a empregamos, não nos poupa esforço nenhum mas, ao contrário, nos esgota. O afobamento de ter que buscar sempre coisas novas, a última atualidade, a incapacidade para nos contentar com o status quo, e desfrutar do momento presente. Ócio é também a arte de não perseguir continuamente esses desejos compulsivos, mas saber dizer basta para usufruir o tempo e o momento que vivemos. Renunciar a continuas possibilidades alternativas permite sermos senhores do nosso tempo presente.

Esta atitude que poderíamos denominar falta de sobriedade informativa traz consequências sérias, como o autor explica. A multiplicidade da informação –que nos chega por inúmeros canais- leva consigo a interrupção contínua de qualquer tarefa. Torna-se difícil a atenção serena numa atividade. Estudos mostram que é difícil concentrar-se mais do que 11 minutos, pelo ritmo de informação que chega. E mesmo quando não chega, a pessoa já se habituou às interrupções, ficou condicionada. O resultado é que mesmo quando desconectado (por fazer uma experiência, ou por motivos de isolamento topográfico), ele mesmo busca interrupções. É preciso viver a estratégia de Ulisses, amarrar-se ao mastro, para resistir à tentação das sereias da informação, que nos atinge de continuo, sedutoramente.

A virtude não seria viver desconectado, ou postular uma abolição da tecnologia, mas empregar a medida certa, ser senhor do próprio tempo. Quem reclama das interrupções, no fundo, não sabe viver de outro modo; acostumou-se a viver assim, em curiosa e perigosa dependência da informação que goteja a toda hora. Muita informação que se ganha à custa de falta de reflexão, de juízo, de opinião formada: não há tempo de cozinhá-la no forno das próprias reflexões. Um amigo me dizia em certa ocasião que na vida é preciso ter três ou quatro ideias e repeti-las sempre, de modo diferente. Hoje contemplamos multidões que armazenam toneladas de informação, mas incapazes de gestar uma ideia própria.

Não falta no livro a apologia do descanso, da “siesta” tão popular nos países latinos. Um repouso para render, sabendo que muitas das ideias surgem após o descanso. Confirma-se assim a insensatez de querer liquidar todas as pendências, ao invés de dormir sobre as ideias, para poder revisá-las depois, com olhos renovados, serenos. Já dizia alguém sabiamente que o urgente pode esperar, e o muito urgente tem de esperar. A pressa, além de prejudicar a saúde, nos faz insensíveis aos demais, ao tempo dos outros. Vamos pelo mundo nos comunicando virtualmente, mas desprezando os seres reais que requerem atenção, tempo, sorrisos, e não apenas a frieza insípida das redes sociais.

Esperar implica descobrir a arte do ócio. Quando carecemos dela se manifesta no modo como se suportam mal os tempos de espera, os imprevistos, os congestionamentos do trânsito. Não conseguimos estar sem fazer nada, quer dizer, crescendo por dentro. Quando há que apelar continuamente ao estímulo externo –à informação que se procura compulsivamente como dependência química- falta riqueza interior. Em linguagem técnica atual e compreensível: falta-nos bateria, temos de estar sempre ligados na tomada. E, nos falta também, saber olhar e admitir nossas próprias possibilidades, sem comparar-nos com os demais, outra condição imprescindível para crescer na arte do ócio, do controle do tempo, que é o próprio, e não o dos outros.

O autor adverte, com uma ponta de humor, que curiosamente tratamos nosso corpo de maneira mais cuidadosa do que o espírito. Guiamo-nos por regras de nutrição, índice de massa corpórea, curas de toda espécie. Enquanto isso, alimentamos o espírito sem nenhum critério seletivo. Este livro quer ser um vade-mécum nutricionista para o espírito, onde cabe muito bem o conhecido pensamento de Pascal: “todas as desgraças do mundo procedem de não sabermos estar em silêncio no nosso quarto”.

Clara Lejeune- Gaymard: “La dicha de vivir. Jérôme Lejeune, mi padre”

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Clara Lejeune- Gaymard: “La dicha de vivir. Jérôme Lejeune, mi padre”. Rialp. Madrid. 2012.136 pgs

     Chega às minhas mãos este livro pequeno, simples e encantador. Trata-se da tradução espanhola do original francês (La Vie est um bonheur. Jérôme Lejeune, mon pere), e não me consta que exista ainda uma versão em português. A autora, Clara Lejeune-Gaymard, é a caçula das filhas do médico e cientista francês Jérôme Lejeune, descobridor da alteração genética conhecida como Trisomia 21, responsável pela síndrome de Down.

     O livro não é propriamente uma biografia do Professor Lejeune, mas sim um perfil, rápido e singelo, costurado com as lembranças que a filha do cientista tem do seu pai, agora sedimentadas com a perspectiva dos anos. Certamente, a melhor apresentação do livro é a que a editora recolhe na contracapa, entressacada de um relato comovente. “Um popular programa da TV francesa –Dossier de l’ecran- transmite um debate sobre o aborto no caso dos descapacitados detectados antes do nascimento. Os portadores da Trisomia 21 são, na época, os únicos claramente identificáveis. Na manhã seguinte, chega ao consultório um menino com síndrome de Down, que chora e se abraça no pescoço do Professor Lejeune. A mãe da criança explica que o menino assistiu ao programa da noite anterior. Agora chora desconsoladamente e diz a Lejeune: ‘Querem matar-nos. Tens que nos defender. Nós não podemos porque somos débeis’. A partir desse momento –relata a autora- meu pai começara uma luta incansável pela defesa do não nascido. É consciente de tudo o que perderá na batalha, pois sabe, melhor do que ninguém, até onde terá de chegar.”

     O prestígio inegável que Lejeune conquistou como cientista colocou-o sem hesitar ao serviço da vida e da defesa dos descapacitados. Foi um compromisso de por vida, e não se importou com as consequências do desgaste que teve de sofrer por conta dos constantes ataques de ideologias abortistas e eugênicas, travestidas de cientificismo. Sendo um cientista de imensa envergadura, nunca precisou invocar argumentos morais ou religiosos –mesmo sendo um homem de fé- para defender a vida. As evidências científicas que apresentava eram suficientemente contundentes para sustentar sua apologia da vida, e o amparo dos deficientes mentais. “Se a Igreja, Deus não o permita, consentisse no aborto eu deixaria de ser católico” – chegou a afirmar.

     A vida do Professor Lejeune foi uma alternância de luzes e sombras; o brilho das descobertas científicas rodeado das críticas proveniente dos setores que esgrimiam ideologias contrarias à dignidade da pessoa, da qual o nascituro é um representante genuíno. “Nós, seus filhos –conta a autora- contemplamos como se escrevia cada dia esse destino, essa vida cortada em dois. Quando crianças, nosso pai foi um homem honorável. Na adolescência converteu-se num apestado, culpável do delito de opinar”.

     Numa reunião na ONU, abre-se o debate sobre o aborto com os argumentos habituais (mortalidade materna dos abortos clandestinos, o lastro que supõe cuidar de um ser com malformações, evitar sofrimentos psíquicos). Lejeune –somente ele- toma a palavra para referir-se ao carácter único dessa criança cuja vida está em risco e cuja identidade nunca será substituída por outro. E afirma: “Esta instituição para a saúde converteu-se numa instituição para a morte”. Aquela noite escreve à sua mulher dizendo: ‘Hoje perdi o Prêmio Nobel’. Lejeune tinha consciência de que não teria apoio para a verdade científica que tinha descoberto. O fato de ser católico e de desenvolver postulados científicos compatíveis com a fé, faziam com que essa verdade fosse rejeitada.

     As minhas lembranças pessoais do Professor Lejeune não se podem comparar às recordações que a sua filha recolhe neste livro. Até porque se reduzem a uma única ocasião: uma conferência na Faculdade de Medicina da USP, numa noite na década de 80. Não lembro com detalhe do que falou, num inglês perfeitamente compreensível, durante quase duas horas. Recordo sim, que as propostas científicas se combinavam com relatos de tremendo bom senso. Lejeune propunha como desafio da ciência aprender a desligar o cromossomo extra, como se fosse um defeito de fábrica que atrapalha o funcionamento e impede a expressão total da pessoa. E brincava quando dizia que somente os homens se juntam para decidir o que é um ser humano, sendo que ele nunca tinha visto, num zoológico, macacos e outros animais reunirem-se para decidir sobre a sua própria condição.

     De uma coisa lembro com nitidez, pois foi algo que me marcou: o seu sorriso. Era um homem que transmitia paz. Sabia que os seus argumentos, apresentados de modo elegante e cordial, seriam objeto de patrulhamento ideológico. Mas pareceu-me não importar-se com isso. Seguia a sua ciência e a sua consciência, e era feliz. Transitava em outro plano, naquela dimensão do homem que vive em paz com a própria consciência, para quem a opinião alheia é simples detalhe sem importância. Agora, lendo as lembranças da sua filha, vejo que a impressão que tirei daquele encontro não estava errada. O Professor Lejeune incarnava verdadeiramente Le bonheur de vivre, a tremenda felicidade de viver, de colocar a própria vida ao serviço da vida dos outros.

Jose Morales: “Breve Historia del Concilio Vaticano II”

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Jose Morales: “Breve Historia del Concilio Vaticano II”. Rialp. Madrid. 2012. 188 pgs.

     Quando queremos informar-nos sobre um tema importante – as Guerras Mundiais, a História Contemporânea, um Concílio Ecumênico- a tentação é debruçar-se sobre um livro amplo que esgote o assunto. Não costuma ser a melhor estratégia, porque o excesso de informação costuma diluir a visão de conjunto e, no final, somos incapazes de resumir as linhas principais do nosso estudo. Não sabemos dizer, realmente, o que aprendemos. Por isso, gosto de livros como este onde de modo simples –mas com seriedade e profundidade histórica- esboçam-se as linhas principais do tema que queremos conhecer. Depois, demarcados os traços principais, é possível aprofundar.

     O tema aqui é o Concílio Vaticano II, um marco importantíssimo para entender a realidade da Igreja Católica nos dias atuais. O autor adverte que o Vaticano II foi um Concílio de Reforma. E esclarece o que venha a ser esta reforma, termo muitas vezes mal entendido. Copio textualmente: “Nenhuma outra sociedade que vive no tempo caminha na terra com a capacidade de reformar-se que tem a Igreja, que é a comunidade mais crítica e desconforme consigo mesma. Instituições e entes políticos, culturais e militares, nascem, se desenvolvem e, chegado certo momento, desaparecem sem deixar rasto. Não assim a Igreja, que recobra sempre sua juventude e vigor, graças, justamente, às reformas que efetua sobre si mesma pelo impulso criador do Espírito de Deus”

     Convocado pelo Papa João XXIII poucos meses após o início do seu Pontificado, e iniciado poucos meses antes da sua morte, o Vaticano II foi o Concílio de dois Papas: João XXIII que deu a largada, e Paulo VI que teve de desempenhar toda a corrida. Como o autor comenta: João XXIII tinha localizado uma jazida, mas foi dado a Paulo VI explorá-la.

     Foi, de fato, Paulo VI o grande protagonista do Vaticano II. Não o protagonismo de um solista, mas o do maestro da orquestra. Por considerar que levar a termo o Concílio era a missão primordial do seu pontificado, faz sentido o elevado conceito do Papado que tinha Paulo VI. Não por ser ele a desempenhar essa função, mas pela função em si. Comenta-se no livro que certo intelectual manifestou o desejo de escrever uma biografia dele e o Papa respondeu: “Para que? Eu, G.B. Montini não existo. Quem existe é Pedro. Montini não tem nenhum interesse.”

     No marco de um Concílio livre em que se falava da Igreja, Paulo VI adotou um papel diretivo e criativo, com uma intervenção permanente e respeitosa, tanto na forma com no fundo. O Concílio Vaticano II foi um Concílio de equilíbrio. Aquilo que alguns consideravam às vezes ambivalência do Papa, era na realidade uma expressão própria da tensão de situações onde era preciso levar em consideração certos elementos e fatores que, a primeira vista, pareciam difíceis de conciliar. Mesmo no exercício das suas prerrogativas e no modo de fazê-lo, Paulo VI sabia que devia conduzir-se com prudência e cautela.

     Eu que vivi adolescente os anos do chamado pós-concílio, posso dizer que essa prudência de Paulo VI nem sempre era interpretada corretamente. E mais de alguma vez tive de escutar, de fontes razoavelmente confiáveis, comentários que poderiam sugerir omissão ou contemporizar com os problemas ou até com o erro. Com a perspectiva dos anos, como bem aponta este livro, essa atitude surge com peculiar grandeza, própria de quem, esquecido de si mesmo, dedicou os anos de pontificado a fortalecer a Igreja e a recolher no seu seio os homens que buscavam sinceramente a verdade.

     Neste sentido, comentam-se as intervenções diretas do Papa Paulo VI na Lumen Gentium, quando se aborda o tema da Igreja, da colegialidade e da autoridade do Papa. Igualmente no relativo ao amor conjugal, quando ainda faltavam alguns anos para que desse mesmo Papa emanasse a Humanae Vitae.

     Finalmente na Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa, Paulo VI interveio pessoalmente para chegar a uma solução positiva e com esperança ecumênica, respeitando o valor da verdade e reconhecendo o direito que todo homem tem de procura-la com liberdade de consciência.

     Um pequeno grande livro, que desenha com propriedade os traços principais do Concílio Vaticano II, cujo espírito preside o caminhar da Igreja Católica nos tempos atuais, e de cujas fontes devem surgir os impulsos de reforma – pessoal e institucional. Acertadamente o autor anota: “Todas as reformas da Igreja, seja qual for a sua envergadura e projeção histórica, são como um êxodo das garras do terreno e carnal, e um movimento para a pátria definitiva”.

Edmund De Waal: “A Lebre com Olhos de Âmbar”

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Edmund De Waal: “A Lebre com Olhos de Âmbar”. Ed Intrínseca. Rio de Janeiro. 2010. 318 pgs.

          Um bom amigo deixou este livro em cima da minha mesa de trabalho. “Leia, creio que vai gostar. Tem muita historia”. Escrevo sobre o que entendi; de fato o melhor do livro é a História, e não as estórias que não são outra coisa que a historia da família do autor. Edmund de Waal, famoso ceramista inglês, toma como desculpa para nos falar da sua família, as peripécias que uma coleção de netsuquês (miniaturas japonesas entalhadas em madeira e marfim) atravessou nos dois últimos séculos até vir parar nas mãos dele.

         Os Ephrussi, judeus emigrados da Rússia (Odessa), distribuem-se em Paris e Viena, desenvolvem negócios com sucesso, dirigem bancos que rendem fortunas, apoiam a construção de uma sociedade na qual se integram perfeitamente. Uma das ramas da família chega a emparentar-se com os Rothschild, sendo fácil perceber a influência econômica e cultural que tiveram em Paris e Viena na segunda metade do século XIX e nos começos do XX, até a primeira guerra mundial.

         É verdade que a cultura –a do autor, e da sua família- é ampla, assim como o contato com as artes, da qual foram mecenas em muitas ocasiões. Os impressionistas, “artistas que aprenderam como recortar a vida em vislumbres e interjeições, e mais do que paisagens formais, tinha-se um fio de trapézio dividindo um quadro, as nucas das mulheres na modista, as colunas da Bolsa de Valores”, eram do círculo social dos Ephrussi, assim como os escritores da época cujos volumes vieram engrossar suas bibliotecas. “Ter uma biblioteca –diz uma das personagens citando Victor Hugo- é como um ato de fé”.

         O livro desperta interesse, sobre tudo, pela interseção que têm com a Historia, e impulsa a aprofundar no estudo desse período. Mas, como em tudo, tenho uma crítica: embora respeite a profunda influencia que a família de De Waal possa ter tido nos destinos de Europa, contar a Historia em função dos membros da família me parece uma pretensão excessiva. Percebe-se até certo ar endógamo – o mesmo que acontecia com a realeza na Europa, quando fala das diversas personagens da família. Quer dizer, um túnel do tempo nas lembranças familiares, onde as miniaturas –entre as que se conta a tal lebre com olhos de âmbar- são simples desculpa, e as personagens históricas aparecem como coadjuvantes. Como álbum de família, aceitável e desculpável. Como livro histórico, adoece de excessiva ambição. Muita areia para o caminhão, mesmo que seja pilotado por Ephrussi e Rothschild.

A Filha do Pai: romantismo e generosidade, num coração sem blindagens

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La fille du puisatier  (2011) Diretor: Daniel Auteuil. Atores :Daniel AuteuilAstrid Bergès-FrisbeyNicolas Duvauchellen, Kad Merad, Sabine Azéma, Jean-Pierre Darroussin, Emilie Cazenave. 107 min.

     Um filme encantador. O único senão é o título, ou melhor, a lamentável tradução do original. A filha do pai é, na verdade, filha de um poceiro, termo que consta no dicionário da língua portuguesa, onde se lê: cavador de poços ou poças. Esse é o ofício de Pascal Amoretti, um viúvo que sustenta a prole de seis filhas, com dignidade e competência. Não sei qual seja o apelo de marketing, se é que tem algum, da tradução desbotada do título do filme, que se não o destrói, pelo menos cria indiferença. Todas as filhas tem um pai, mesmo em tempos de produção independente. Não saber quem é o pai, ou a que se dedica, pode acarretar crises de identidade futura; no caso que nos ocupa, produz desconcerto no espectador que não faz a menor ideia do que vai lhe ser servido nos fotogramas.

     A Filha do Poceiro é uma historia singela, situada no belíssimo cenário da Provence francesa, às portas da segunda guerra mundial. Uma região querida e narrada pelo autor da história, Marcel Pagnol, da academia francesa que, em 1940, filmou a primeira versão do poceiro Amoretti e dos amores das suas filhas. A atual, dirigida e interpretada por Daniel Auteuil, grande expoente do cinema francês, respeita a história de Pagnol, a embrulha em cores vivas, com muito sol, muita luz, e o verde dos campos contrastando com o barro que impregna a roupa do poceiro no seu afazer quotidiano. O filme é uma delicada aquarela, sobre a qual se destaca nitidamente o perfil de cada personagem. Tem o aroma dos Souvenirs d’enfance de Pagnol, aqueles que aparecem na Gloria do meu Pai, e no Castelo da minha mãe. Pagnol também perdeu a mãe na infância e, já escritor consagrado, deixou claro o interesse que tinha pelos caracteres das personagens: “se eu tivesse sido pintor, somente teria pintado retratos”.

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Fabrice Hadjadj: “La Fe de los Demonios”

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Fabrice Hadjadj: “La Fe de los Demonios”. Ed. NuevoInicio. Granada. 2009. 278 pgs.

capa do livro

     Adquiri este livro há algum tempo, durante uma das minhas viagens. Chamou-me a atenção o título. O livreiro, um velho amigo, confirmou tratar-se de uma obra de valor, impactante. “Algo diferente, mas muito bom”. A cinta promocional que abraçava o volume vinha assinada por um conhecido jornalista, entendido nestes temas e afirmava tratar-se do melhor livro de teologia popular (no original espanhol lia-se ‘teologia divulgativa’) que tinha lido nos últimos anos. Comprei-o e aguardei o momento certo para mergulhar nele.

     O momento chegou com as férias do final do ano. É, de fato, um livro diferente, às vezes chocante, que requer uma leitura pausada para assimilar os desafios que o autor propõe, e sintonizar com o seu raciocínio. Fabrice Hadjadj é um jovem professor de filosofia na França e que se apresenta como um judeu de nome árabe, convertido ao catolicismo em 1998. Tem pouco mais de 40 anos, casado com uma atriz, pai de uma família numerosa, autor de várias obras filosófico-teológicas com propostas de sabor revolucionário. Baste ver o título desta obra, e o subtítulo: o ateísmo superado.

     Mais do que um comentário –ainda estou às voltas com muitas das reflexões que surgiram no decorrer da leitura- o que anoto a seguir é uma tradução livre (da versão espanhola da obra), sintética, das muitas ideias que o autor coloca, permeadas com minhas próprias glosas. O problema do demônio –e as consequências para nós mortais- não é uma questão de fé. O demônio acredita em Deus e treme. O que lhe permite desfilar triunfante, arrecadando prosélitos para a sua causa –seguidores muitas vezes inconscientes- são outras atitudes mais subtis. O ateísmo, na forma dura e pura, é tema superado. O perigo mora em outros meandros que o ser humano percorre diariamente.

     O autor, que interage com público jovem, não é alheio ao contexto cultural que respiramos. Uma coisa é conhecimento e outra, muito diferente, é curiosidade, mal epidêmico. “O mundo nos estimula a ser curiosos, e temos tudo a um click do mouse, transformando-nos em Net Explorers dedicados a um enciclopedismo cheio de artigos interessantes, ora sobre concursos de animais, ora sobre os Legionários de Cristo. Deste modo podemos não formar parte nunca do essencial. Dispensamos sem remorsos todo saber que nos possa comprometer em corpo e alma. Essa procura é pura dispersão. Deslumbra-nos, mas não ilumina.”

     Os exemplos chocantes surgem para elucidar que a metodologia do demônio está muito distante do clássico ateísmo. Vejamos por exemplo este: “Tenho a impressão de que é preciso passar por todas as provas enviadas por Satã, pelos demônios e pelo inferno antes de conquistar a vitória definitiva….Sem dúvida, não sou o que se possa chamar um beato. Mas, no fundo de mim mesmo, sou um homem religioso; e creio que todo aquele que combata valentemente nesta terra, conforme às leis naturais que foram criadas por um deus, aquele que nunca capitula mas se repõe e segue adiante, esse não será abandonado pelo autor destas leis, mas obterá finalmente a benção da Providência. Assim tem acontecido com todos os grande espíritos desta terra”. Quem fala assim é Adolf Hitler (recolhido por Albert Speer, num discurso de 1944). A posteriori reparamos no voluntarismo, na soberba e na obstinação que se depreendem destas palavras….. Mas somente a posteriori.”

     Como se passa de anjo a demônio? A soberba e a inveja. A intolerância, o não suportar que homens cheios de misérias sejam elevados a condição quase divina. Não temos aqui uma interessante advertência de como nos consideramos melhores do que a média, com um curriculum razoável, comparado com essa multidão medíocre? É o falar popular que escutamos diariamente: não faço mal a ninguém, não fumo, não bebo, não uso drogas….Mas a realidade é que quem assim fala transparece inveja e soberba por todos os poros.

     Muito sugestivo o comentário que o autor anota sobre a parábola dos dois filhos que o pai manda para trabalhar no seu campo. O mais velho diz que não vai, e acaba indo; e o que mais novo diz que sim, senhor, mas não aparece. Comenta o autor: “O santo é quem diz que não, mas o transforma mediante o arrependimento num sim. O maligno é o que diz sim, mas esse sim disfarça um não, sem remorso algum”. No fundo é fazer as coisas como eu quero. Sim, senhor, estou indo. E deixa que eu vou fazer do meu jeito, vou imprimir o meu selo, o meu estilo. Convém-me. Já o outro entende que ir é aceitar uma vontade –e um estilo- que não é o seu, mas é onde está a felicidade.

     “A graça é um dom de amor gratuito. Não exige nada em troca, e justamente por isso é o mais difícil para quem pensa ser alguma coisa. Reclama de nós não fazer, mas deixar que Deus faça em nós. E nós respondemos não sendo obstáculos a esse amor livre e divino que ela suscita em nós. Mas o demônio não quer abandonar-se. Prefere ser um self-made-man. O imagino montando um curso de desenvolvimento pessoal, convertendo-se no coach dos winners, providenciando travesseiros a quem não tem onde apoiar a cabeça (Cristo) e praticando a eutanásia ao varão das dores (Cristo sofrendo).”

     Acode à minha mente o conhecido texto de Santo Agostinho, aqueles dois amores que fundaram duas cidades: o amor de Deus até o desprezo de si próprio a cidade celeste, e o amor de si próprio até o desprezo de Deus a terrena. Tudo é uma questão de onde se coloca o objeto do amor. Esclarecedor este texto: “Os que acreditam que o demônio desconhece a radicalidade do amor divino, cometem um erro, pois é justamente esse amor a causa da sua rebeldia. Deste modo, se convertem em brinquedos em suas mãos: nada lhe proporciona melhor acesso às suas sugestões, do que pensar que é mais estúpido do que nós. (…) Com o demônio não se trata de jogar para ver quem é mais forte, mas de reconhecer-se débil e amparar-se em Deus. Não se trata de ver quem é mais inteligente, mas de quem é capaz de amar mais. O demoníaco não é tanto querer o mal, mas querer o bem sem obedecer à fonte de todo bem, querer fazer o bem segundo a minha regra, com autossuficiência, numa caricatura da generosidade que coincide com o orgulho mais subtil”. E enquanto lia isto eu lembrava de Bernanos: “Odiar-se a si mesmo não é difícil; o realmente difícil é esquecer-se de si mesmo.”

     O bom humor e a ironia salpicam as páginas deste livro singular. “O que irrita ao demônio é a perda da criatura que se transforma em hóstia viva. Quer lutar contra isso. Prefere salvar-se disso no inferno. Deixa as pessoas viverem do jeito que dá, agradece os serviços a Deus como um profissional, igual que dispensamos a um bom funcionário de quem não precisamos mais. Mas…isto é intolerável, pensa o demônio, esse funcionário (Deus) continua do meu lado, quer me arrancar de mim mesmo! Por que não se contenta com um agradecimento cordial? Por que exige um amor inteiramente abandonado? Assim não dá”.

     “Os demônios conhecem todas as respostas concernentes à Doutrina, mas nada querem saber da aliança pessoal com Deus. São especialistas em reduzir a revelação a um moralismo ou a uma dogmática inerte. Tudo menos chegar ao ponto chave: o encontro com Cristo. Jesus não vem propor uma teoria perfeita, mas um encontro no nosso coração. A aliança com Deus exige esse desejo e essa intimidade pessoal com ele. Jesus poderia fazer baixar exércitos de anjos mais eficazes do que os melhores espertos em marketing operativo. Mas Ele não é um sedutor. Pode se forçar uma adesão intelectual; não se pode forçar um coração. Seu cristianismo se centra numa verdade abstrata e não na Verdade em pessoa. Realiza-se num saber e não num encontro. A verdade –dizia Kierkegaard- é uma pessoa e não um texto.” E surge nestes momentos a lembrança de Bento XVI, do teólogo Josef Ratzinger, quando afirma que a religião não é um conjunto de crenças ou de normas, mas o encontro com uma Pessoa, com Cristo. Um verdadeiro personalismo religioso.

     A fé dos demônios é subtil e apetitosa, tentadora, justamente por disfarçar-se com traços religiosos, místicos, até rígidos e intransigentes. “Não há um só dogma cuja exata verdade o demônio ignore. E isto o habilita para sugerir inúmeras heresias. Um bom gramático sabe como induzir a cometer todo tipo de faltas de ortografia, e um especialista em antivírus, sabe fabricar vírus implacáveis. A fé do diabo lhe permite sugerir-nos uma variedade indefinida de impiedades. Sabe como provocar desvios infinitesimais no homem que está convencido da sua superior retidão. Aproveita o combate à heresia para incitar outra no sentido contrário. E ainda conta com a sua melhor carta na manga: levar-nos a uma fidelidade tão estrita como a sua, isto é, desprovida de caridade.”

     A História está repleta de exemplos: as heresias, os desvios não são problema de cabeça, intelectual, mas de coração, de humildade, ou da carência da mesma. Já disse alguém que os erros teológicos, filosóficos, doutrinais são respostas equivocadas a problemas reais. O problema está ai, solicita uma resposta, mas a soberba é cega e perde-se o parâmetro de verdade, numa tentativa de responder a qualquer custo. Heresia, (hairésis em grego) é tomar partido. Escolher a parte da verdade que me convém, e deixar o resto; construir o meu próprio sistema. Mesmo com imensa boa vontade, mas sem escutar ninguém. (o que é muito típico do demônio). Um caminho trilhado inúmeras vezes, não só por grandes pensadores, mas pelos mortais comuns.

     O autor cita Lewis na conhecida obra “Cartas do demônio ao seu sobrinho”, quando sugere ao aprendiz de diabo que se empenhe em distrair o homem dos seus deveres elementares e o conduza para altos voos do espírito; que consiga fazer um exame de consciência de uma hora sem descobrir um só dos defeitos que são evidentes para qualquer um que more em baixo do mesmo teto, ou trabalhe no mesmo escritório. Quer dizer, a distração do que realmente importa. E também menciona Chesterton, quando fala das virtudes que enlouquecem convertendo-se em defeitos: “a justiça sem misericórdia, que se torna crueldade; a misericórdia sem justiça, que é laxismo; a humildade sem magnanimidade, que é preguiçosa modéstia, a magnanimidade sem humildade que é ativismo vaidoso….e finalmente, a verdade sem amor, que é a fé dos demônios , frente ao amor sem verdade, que é filantropia do diabo”

     A densidade teológica é permeada por exemplos e contrastes abruptos. “A fé se substitui por uma moda tingida de cristianismo. A fé dos demônios consiste em promover uma fé à medida da época, das necessidades e dos caprichos. O grande engano das nossas cristandades descristianizadas consiste em recuperar a compaixão e volta-la contra Cristo. Por exemplo, fazer abortar a Maria, afinal mãe solteira, de pai desconhecido. Mas cuidado também com os católicos tradicionais que lutam infatigavelmente contra o aborto e esquecem-se de anunciar a Graça que salva ao miserável (especialmente aquele que abortou), o que é celebrado no inferno”.

     O autor tem palavras singulares e carinhosas para os judeus, afinal o seu próprio povo, sua origem: “Os Judeus são sinal de irrupção da eternidade no mundo e no tempo. São o rastro da graça que sai do capricho de Deus. Por isso, até o final, serão escândalo para toda tentativa de naturalização da Historia. Isso explica porque os totalitarismos sempre se abatem especialmente sobre eles: não encaixam nos projetos humanos. Uma vez que o Verbo se encarnou, é preciso a presença de Israel? Não se rejeita o ventre que o gestou, nem se despreza o andaime que serviu para construir a obra. Nem os cristãos podem agir assim, nem os judeus podem se fechar em orgulho de raça, como se a sua eleição não fosse um dom de Deus. À globalização e a uniformidade –incitada por alguns- Deus resiste porque Deus não é propriedade dos cristãos”.

     E mais recados inseridos na modernidade, na comunicação virtual em tempo real. “Mais do que nunca, nestes tempos digitais de banda larga, é preciso insistir na permanente novidade que supõe a proximidade física na ordem espiritual. Não se trata de desprezar livros, jornais, multimídia, mas compreender que esses meios pesados, superiores quando se trata de vender mercadoria, são inferiores quando o que está em jogo é o testemunho da fé. Posso pregar a fé com propaganda massiva, em mundo visão. Mas é melhor pregar esse amor com proximidade corporal, porque a propaganda – eficaz na promoção de um slogan- resulta impotente para fazer com que alguém se encontre na presença de outro semelhante. Unicamente nossos braços limpos são apropriados para abraçar um irmão, unicamente nossas palmas nuas tem o poder de acariciar um rosto. É preciso que as nossas bocas abandonem os megafones para ser capazes de beijar”.

     A caridade é sempre o grande antídoto contra a subtileza e as variantes que se encerram na fé dos demônios. “Ao demônio não lhe incomoda reconhecer em Deus ao Criador; mas reconhece-lo como pai, isso de jeito nenhum. Especialmente depois da Encarnação, quando Deus se faz pai desses animais imundos que são os homens. Nada de participar dessa família, pensa o demônio”. E mais adiante acrescenta: “Nesse mandamento Ama a teu próximo, que desencadeou o ateísmo moderno, encontramos o demônio carregando as duas bandeiras: a dos que pretendem amar a Deus sem amar a seu irmão, e a dos que dizem amar os irmãos sem amar a Deus. De um lado, a teocracia inumana; do outro, o humanismo ateio”.

     Um par de citações clássicas de Dostoievski, em Os Irmãos Karamazov, ilustram este importante ponto, pauta para reflexão: “Amo a humanidade, mas para surpresa minha, quanto mais amo a humanidade menos amo às pessoas em particular como indivíduos. Mais de uma vez sonhei com paixão servir a humanidade e talvez até teria subido ao calvário por meus semelhantes, embora não consigo viver com uma pessoa dois dias seguidos no mesmo quarto. Enquanto sinto que alguém está perto de mim, sua personalidade oprime meu amor próprio e estorva minha liberdade. Em vinte e quatro horas são capaz de implicar com a melhor pessoa: ou porque fica tempo demais sentado à mesa, ou porque está resfriado e espirra”. “Tenho que confessar-te algo: nunca pude compreender como se pode amar ao próximo. Creio, que ao próximo é a quem não se pode amar; ao menos, somente se pode amar a distância”

     Um livro para ler, reler, estudar, e refletir. Os desdobramentos são muitos. As convergências sempre apontam para a caridade como defesa e superação da soberba, que é a verdadeira bandeira do demônio, e não o simples ateísmo. Caridade que se articula com Deus e com os homens: “Assim, o rosto visível remete ao rosto oculto na sombra e o amor ao outro está assegurado no amor a esse Outro que me permite no somente reduzir o outro a uma ambição minha, mas também dirigi-lo a ele mesmo e dirigir seu caminho para um gozo supremo”. Caridade que permite compreender, conviver, perdoar sempre: “Para perdoar de verdade e em profundidade, sem usurpar uma postura divina, é preciso que reconheça que eu também sou pecador, e um pecador bastante pior do que aquele a quem eu perdoo; bem porque pequei depois de receber o perdão de Deus, bem porque por uma graça especial fui preservado.” Enfim, um livro diferente, sugestivo, desafiador, oportuno porque faz pensar. Nos dias de hoje, toda uma novidade.

As Curvas da Vida: Capitalizando sabedoria com o passar dos anos.

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     A estas alturas, depois do muito já comentado neste espaço, não é nenhum segredo a minha admiração por Clint Eastwood. Sou um fã do Clint; mas um fã com fundamento. Explico.
     Acompanhei, na minha adolescência e juventude, as caçadas implacáveis do Dirty Harry, armado com a Magnum 44. Cara de poucos amigos, insensível, machão formatado no melhor estilo americano- republicano: sem chance para os malvados, é preciso eliminá-los da face da terra. Um perfeito canastrão: bordoadas e físico atlético, triunfador com as mulheres que ousavam cruzar no seu caminho, que destroçava com um olhar de quem perdoa vidas ou, na melhor das hipóteses, as ignora. Não gostei; sentia até certa repulsa.
     Os anos passam, para o Clint e para mim. Os Imperdoáveis, filme duro e não dos mais digestivos, coloca Eastwood na direção, conquista um Oscar, e mostra que o durão da Califórnia pode até ter sentimentos. Sentimentos que se aventuram no romantismo em As Pontes de Madison – aquela encantadora versão caipira e bucólica de Casablanca-, sentimentos que se confundem diante da dor insuportável em Menina de Ouro, ou que se tingem de delicados traços femininos em A Troca. E com os sentimentos, o cumprimento do dever, da integridade, da honestidade e da missão. Missão em formato de guerra como As Cartas de Iwo Jima; ou na construção da paz em Invictus, ou na difícil guerra contra o próprio temperamento, na conquista de si próprio em Gran Torino. Sentimentos que também dão lugar a ensaios de transcendência em Hereafter.
     Evolução, coerência, maturidade, manter o foco. Esse é o fatorial que explica a minha admiração por Clint Eastwood. Em tempos, como os nossos, de mudança e de surpresas, onde a coerência brilha pela ausência e tantos sucumbem à tentação de negar a realidade da vida que se deteriora na base de cosméticos que a ninguém enganam; nesses tempos onde o “faz de conta, me engana que eu gosto” é lei comum, confesso que quem faz do seu amor pelo cinema um sincero reflexo da própria vida que se gasta, e se adapta às mudanças biológicas mantendo o ideal, supõe um atrativo irresistível.
      As Curvas da Vida é um mergulho antropológico, variação sobre o mesmo tema, brilhantemente encetado em Gran Torino. Envelhecer absorvendo as limitações que a idade impõe, com realismo. Sem fugas, nem maquiagens. Envelhecimento pautado pelas rugas que se contemplam diariamente no espelho, compassado pela artrose que patrulha os movimentos – todos eles, não nos enganemos-, e pelo deterioro do humor que se torna rabugento, suscetível, insuportável para os outros e para o próprio idoso.
     As Curvas da Vida é o título que com acerto traduz ao português o original: “Problemas com a curva”. Uma curva que é a da bola de baseball, lançada com efeito, dificílima de acertar. Clint é um olheiro caça talentos do baseball. Vive disso, é o melhor. Mas a vista lhe falha, limitação da idade. E agora? O outro fator da equação é Mickey (uma convincente Amy Adams), sua filha, órfã de mãe desde os seis anos, que cresceu com o pai, alimentada com baseball, rodeada de homens que bebem e falam palavrões. Agora uma advogada brilhante, perfil de executiva de talento, que entende de baseball tanto como o pai, pois foi essa a mamadeira que a nutriu. Esse é o contexto; o resto, somente vendo o filme.
     Como sempre, andei lendo as críticas que apareciam aqui e acolá, antes de ver o filme. Um hábito que talvez tenha que eliminar; traz mais problemas do que benefícios. Começas a ver o filme com os óculos que alguém te emprestou num comentário de esperto, até que reparas que sem óculos se vê muito melhor. Imagens turvas de óculos emprestados: Um filme sobre a terceira idade? Ou sobre o conflito de gerações, um pai que não se entende com a filha? Chavões simplificadores, óculos de camelô.
     “Olha quem fala – dirá o leitor. Você que fica dissecando os filmes sem pedir licença a ninguém, vem falar de óculos emprestados”. Está certo. Disseco os filmes, e disseco a minha alma junto com eles. Há duas coisas que, em consciência, procuro evitar neste espaço. Uma é contar o filme, narrar o argumento. Descobri que há quem evite ler meus comentários porque receia que lhe conte o final do filme. Precaução inútil; aliás, são muitos mais os que reclamam que acabo falando de tudo o que me dá na telha, sem sequer roçar o argumento. A segunda é catalogar o filme num chavão de prateleira: drama, comedia, romance, história real, ficção. O único que estes comentários pretendem é revelar a minha interação pessoal com o filme, as reflexões que me provoca, as surpresas que me descobre, e os ensinamentos para a minha própria vida. Reflexões em voz alta, mais nada. Se alguém quer pegar carona e dar a largada às suas próprias ponderações, será muito bem vindo. Longe de mim contar a história ou resumir o filme numa frase de efeito.
     A sabedoria de envelhecer sorrindo. Já utilizamos esta frase –emprestada de um autor moderno- para comentar neste espaço outros filmes que andam às voltas com os anos que passam inexoravelmente. E o pensamento surge novamente ao compasso dos fotogramas e no vai e vem das curvas da vida. É preciso aprender a adaptar-se às limitações, e não apenas ir tocando e fazer de conta que está tudo bem. Adaptação que implica um reconhecimento dos erros; dos presentes e, especialmente, dos passados que agora, contemplados com outra perspectiva, tem de ser sanados, purificados, para evitar que formem um quisto que degenera em tumor maligno e contamina de azedume todo o viver. Aceitar erros e limitações é o único antidoto possível contra a rabugice que, fatalmente, espreita e nos pega de jeito com o passar dos anos.
     A visão que se deteriora com a idade é uma bela metáfora das muitas outras limitações que vem de brinde conforme vamos completando anos. É uma perda gradativa que, na velhice, se revela completamente; mas não é repentina, acontece aos poucos. Saber reconhecê-la e adaptar-se, ano após ano, é construir a sabedoria que permite envelhecer sorrindo. Quem não treina durante a vida, na velhice passa muito pior, e faz passar mal aos outros. Daí que os ensinamentos do filme não são propriamente para a terceira idade, mas para os que querem preparar-se para chegar lá em forma.
     Cuidado com a tentação fácil de pensar: “Como são chatos os velhos. Isso não me vai acontecer a mim”. Tremendo engano. O tempo não perdoa, o desgaste chega para todos, mesmo para aqueles que, sendo jovens, consideram o assunto como preocupação que pode ser adiada. Vai acontecer com você, sim; e comigo, com todos. Quem não treina durante a vida, na velhice passa muito pior com as limitações. A limitação sempre vem; a diferença é o modo como se encara e se convive com ela, e se sintoniza com o que os jovens propõem que, sempre, desde tempos imemoriáveis, se enxerga como revolução.
     O cidadão sensato, no início da vida profissional, ocupa-se –sem chegar a preocupar-se, não está na idade para isso- com recolher a previdência, com vistas à aposentadoria. Complementa, quando pode, com recursos privados para garantir um mínimo de tranquilidade no final da vida. No vácuo das nossas reflexões vale pensar se uma provisão semelhante não seria necessária para envelhecer com um sorriso. É preciso preparar-se durante a vida, aceitar as correções, ouvir a opinião dos outros. Perde-se a visão nas curvas da vida; tentar ultrapassagens baseado na intuição pode ser fatal.
     É preciso confiar, escutar, ouvir o ponto de vista dos outros e, sobre tudo, o ponto de vista dos outros em relação a nós mesmos. Isto não é abrir mão da personalidade, nem delegar reponsabilidades atuando em função da Vox Populi. É simplesmente buscar ajuda nos conselhos de quem nos aprecia e dar facilidades para que nos digam as verdades, mesmo que doam. Para fazer isso não é preciso esperar a ser velho. Pode e deve se fazer com vinte, trinta ou com cinquenta anos. E quem não treinar nessas idades, certamente não aceitará a ajuda quando chegar aos oitenta. Humildade, essa é a grande questão de sempre. Desconfiar da própria opinião, que não é insegurança, mas a prudência de ouvir os conselhos, ponderá-los, para depois, bater o martelo.
     Preparar-se e capitalizar sabedoria para o futuro, para a velhice, é também descobrir o que quando jovem se pode aprender com os mais velhos, atitude que revela potencialidades ocultas das quais nem sequer se suspeitava. Amy aprende que além de ver as bolas é possível ouvi-las, escutar a sua trajetória e o impacto. Já disse alguém que somente se dá valor ao próprio pai depois dos 50 quando, com muita frequência, já não está entre nós. Boa sabedoria a de conseguir adiantar esse tempo, e desentocar o que aprendemos com nossos pais, e pôr para render esses talentos. Para isso é preciso comunicar-se, ouvir as historias de vida –mesmo as que conhecemos de cor- pois nelas se encerra esse tesouro do qual as nossas potencialidades fazem parte. Sem entocar-se, sem fechar o diálogo como solução standard.
     Nesse diálogo de gerações –construtivo e necessário- entende-se também que o tempo de cada um é diferente. Cada um tem o seu timing, o ritmo para entender e assimilar as coisas. Uma lembrança profissional. Sempre procuro advertir os jovens médicos que me rodeiam nos afazeres quotidianos que o consenso familiar é algo que não existe. Os médicos se reúnem numa junta médica e chegam num consenso. Mas na família, salvo honrosas exceções, esse consenso não existe: cada membro da família pensa de modo diferente, contempla as circunstâncias desde perspectiva variada, tem timing distinto para assimilar a realidade. Cabe ao médico facilitar a comunicação entre a própria família para que, sintonizados os timings, se chegue á melodia do consenso que realmente beneficiará o paciente.
     Capitalizar sabedoria ao longo da vida, num treino incansável, para adaptar-se às limitações que a idade impõe; saber sorrir, conviver, aprender. O tempo todo, a toda hora. E decidir, com essa sabedoria, sobre as prioridades e optar por aquilo que realmente vale a pena em cada momento.
     Essas e muitas outras reflexões despertou em mim Clint Eastwood, com o baseball e as bolas em curva, com efeito. Sem traumas, nem conflitos, nem complexos, nem lutas de gerações: apenas a vida, com as suas curvas, seus dilemas, que não tem porque acabar mal. Depende de cada um. Dos velhos em gastar-se com classe, dos jovens aprendendo a crescer. Tudo servido num filme delicioso, que deixa um agradável sabor de boca.

(Troubles with the curves) (2012). Diretor: Robert Lorenz. Atores: Clint Eastwood, Amy Adams, Justin Timberlake, John Goodman. 111 minutos. IMDB: http://www.imdb.com/title/tt2083383/

Maria Dueñas: “A Melhor História está por vir”

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Maria Dueñas: “A Melhor História está por vir”. Planeta do Brasil. 2012. 352 pgs.
capa do livro      Li de uma tacada o original que leva por título “Misión Olvido”. Sobre a capa, uma faixa promocional que aponta: “La mejor historia está por vivir”. Outro Best seller da autora de “O tempo entre costuras”. Pensei que não tinha sido traduzido, pois o livro é muito recente. Mas eis que encontro a tradução com o título que acima consta. Se já no título, muda-se o sentido –uma coisa são historias por vir, e outra, muito diferente, histórias por viver- permito-me suspeitar que a tradução não seja do mais fidedigno.

     Acabo de publicar o comentário em espanhol, amplo e em sintonia com a prosa e o estilo da autora, dentro das minhas limitações literárias. Por que, então, estas linhas? Imagino que o argumento do romance mantenha o interesse que o original apresenta. Somente por isso já vale a leitura. Mas, além de uma estória bem contada, o que Maria Dueñas sabe fazer maravilhosamente é a descrição de personagens, com prioridade absoluta ao mundo feminino, e o jogo com o tempo cronológico, num vai e volta, em deliciosa gangorra de lembranças. E tudo temperado com uma linguagem que também vai mudando de estilo: mais moderno, nas épocas onde descreve o final do século XX; um castelhano clássico para a Espanha dos anos 50, e até passagens que apontam matizes de sabor Cervantino, quando pontualmente regride até os anos 30.

     Ignoro como tudo isso está traduzido ao português. Visto o acontecido com o título, desconfio que essas encantadoras variações devam estar ausentes. Não são enfeite ou firula; fazem parte de essência narrativa da autora. Sempre é possível apreciar um quadro nos traços, no desenho, sendo daltónico, ou em versão branco e preto. Mas algo –ou muito- fica faltando. Se for um quadro impressionista, a lacuna será enorme.

     Vai aqui o meu conselho.Leia o comentário em espanhol e veja se consegue entender e desfrutar com alguns parágrafos textuais que lá se recolhem. Se tiver sucesso, quase recomendaria que se aventurasse com a versão original. Se resultar árduo, opte pela tradução. A história em si merece a leitura e certamente lhe cativará imediatamente. E depois, por favor, de retorno neste espaço para que outros leitores possam fazer sua escolha. Seja como for, o que é inegável é que Maria Dueñas apresenta uma prosa fascinante que merece cada minuto que se lhe dedica. Em espanhol ou em português, jamais é perda de tempo. Agrega valor, e não pequeno.

Ismail Kadaré: “O Acidente”

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Ismail Kadaré: “O Acidente”. Companhia das Letras. São Paulo. 2008. 229 pgs.

     Tinha ouvido falar deste autor, queria ler uma obra sua. Caiu esta em minhas mãos e levei um tombo. Como o acidente que é descrito no primeiro capitulo. Algo raro, um taxi a caminho do aeroporto de Viena, que se acidenta, e os dois ocupantes –um homem e uma mulher, de nacionalidade albanesa- , saem voando pela porta e morrem. O motorista do taxi, que sobrevive, diz que se distraiu na direção porque ao olhar no retrovisor viu que os passageiros estavam tentando se beijar. De fato, tremendas consequências para um fato banal.

     O resto do livro se apresenta como a investigação deste estranho acidente. Mas na verdade é um mergulho na vida sórdida das duas personagens, nas suas fantasias e realidades sexuais, nas brigas continuas que impedem separar-se, encontrando-se uma vez e outra em diferentes pontos da Europa, para compartilhar hotel, cama, e novas brigas. Pensamento de Rovena St, a personagem feminina: “Junto com a melancolia, não a largava a ideia de que Besford Y., em quaisquer circunstâncias, era um perigo. Com ele era difícil; sem ele era impossível”

     Tudo isto, fora a componente onírica –nunca se sabe o que acontece e o que é sonhado ou simplesmente desejado- além das variantes nas aventuras sexuais com figurantes esporádicos, de outro ou do mesmo sexo, imagino que para criar maior extravagância. Amantes de ocasião para gerar ciúmes no amante oficial com que se briga o tempo todo. Uma decepção total. Teremos de esperar por outra obra de Kadaré –consta-me que há muitas e dizem que boas- para ensaiar de novo. Mas preciso de tempo para me repor deste choque que resumo como absoluta perda de tempo.

As Neves do Kilimandjaro: Humanismo em Tempos de Crise

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(Les Neiges du Kilimandjaro). 2011. Diretor: Robert Guédiguian.   Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Marilyne Canto, 104 minutos.  

     Foi um amigo que mora no Canadá quem, há meses, recomendou-me este filme. “Dá uma olhada. Eu o intitularia ‘humanismo em tempo de crise’. Acho que gostarás”. Segui o conselho, vi o filme. Gostei. Busquei o tal humanismo na crise. Penso que até o encontrei. Mas engavetei os possíveis comentários; as pendências eram muitas no último trimestre do ano. Depois vejo isso, pensei.

     Entre as pendências, figuravam um par de conferências num congresso que aconteceu numa cidade onde moram outros amigos. Um dos dias passei por lá para jantar. No final me anunciaram: vamos ver um filme, queres ficar? Naturalmente, o filme era este mesmo. Estas Neves me perseguem – pensei logo de cara. Tracei o plano: assistir a largada e depois pegar um taxi de volta para o meu hotel. Mas não consegui sair. O humanismo em tempo de crise martelava minha memória. Fiquei até o final e voltei de carona. Os comentários –no fundo da imaginária gaveta- revolveram-se, mas as pendências ainda pesavam. Tranquei a gaveta com chave. Mais para frente, agora não tenho tempo.

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