Os Abraços partidos de Almodóvar: A deformada imagem de uma triste realidade.
O melhor do último filme de Almodóvar é o título. Abraços partidos. No título original em espanhol os abraços não se partem: quebram-se, que é muito mais forte. São abraços rotos. O título é preciso, funciona como um prelúdio de tudo o que vem depois, como acontece com freqüência na ópera. Na abertura se esboçam os temas principais, compassos das árias e duetos que se sucederão, ou o leitmotiv que preside a composição e atrai como um imã os destinos dos figurantes. O fantástico prelúdio de La Traviata, por exemplo, converge para o grito desesperado de Violeta – Ama-me Alfredo!-, porque essa dama das camélias busca um amor que a sustente, já cansada de cair dos abraços, sempre partidos, de um e de outro.
O título é uma ouverture que me fez pensar. Muito; tanto que decidi escrever estas linhas fruto da minha reflexão. Logo eu, que nunca coincidi com Almodóvar em quase nada, a não ser no gosto pelo cinema. Porque Almodóvar sabe fazer cinema, isso é inegável. Mas suas personagens se regem por um estilo tão bizarro que nunca consegui me identificar com elas. Digamos que me repeliam, mesmo antes de atingir o miolo da mensagem. A extravagância embaçava as idéias e os recados de modo a torná-los indigestos. Sem tirar nenhum mérito à estética –Almodóvar prima por ela- mas a estética é compatível com o mau gosto.
Corria na Espanha uma história maldosa –provavelmente é uma lenda- sobre a mãe do Almodóvar. Parece que a boa senhora teria dito ao Pedro em certa ocasião: “Meu filho, com os filmes que você faz não consigo nem conversar com as vizinhas”. Lenda ou não, o assunto tem peso, porque na Espanha dessa época, o bom senso e os costumes passavam, impreterivelmente, pelo julgamento inapelável das comadres da vizinhança.
Nos filmes de Almodóvar não havia ninguém normal. E dentro dessa anormalidade corporativa, o roteiro se desenvolve com uma lógica que é normal… para pessoas anormais. Algo similar ao que acontecia ao seu patrício de La Mancha, o fidalgo D. Quixote, embebido na paranóia. Tudo é lógico e correto salvo o referencial. Uma lógica interina –nos filmes de Almodóvar e nas andanças de D. Quixote- fechada sobre ela mesma, numa quimera bizarra. E os filmes onde ninguém é normal confesso que dificilmente me tocam. Nem me provocam nenhuma reflexão nem me sinto impelido a escrever.
Houve uma evolução, pelo menos assim o entendo eu. Em Almodóvar, talvez em mim; o fato é que estou dando volta a estas idéias desde que vi o título, depois assisti filme e vi desfilar os créditos finais misturados com fotografias rotas, que se juntam a modo de quebra-cabeças, igual que eu faço agora tentando achar o fio condutor destas ponderações.
Os últimos filmes de Almodóvar me surpreenderam com tentativas de normalidade. Comecei a discorrer. Fale com ela, Volver, me instigaram positivamente. A lógica bizarra deixava aparecer momentos de normalidade. Senti ser espicaçado por personagens mais próximos da realidade. Agora, com Abraços Partidos, a realidade assume o protagonismo. As personagens são normais, e o que se torna anormal é a situação delas. São pessoas normais vivendo na anormalidade, com tremenda naturalidade. Ai é que mora o perigo, e o motivo destas cogitações que foram se alinhavando conforme assistia o filme, quando o prelúdio do título desabrochava.
Os temas recorrentes no cinema de Almodóvar – a ausência do pai e a mãe solitária, as tramóias de infidelidades com variedade de amantes, as obsessões e torpezas- continuam presentes. Mas ao invés de estarem inseridos num mundo quimérico de criaturas bizarras, são o quotidiano de seres muito próximos a nós, valha dizer, normais, comuns. E tudo com extrema naturalidade, onde o chocante dá lugar ao cômico que, na verdade, oculta o patético de pessoas que sofrem. Ninguém se salva; ninguém vive uma situação normal, todos estão destroçados, e parece que esse é o mundo que nos rodeia. O nosso mundo, onde vivemos rindo – por não chorar-, já que todos riem, e parece que a vida é assim mesmo. Paciência!
Ocorreu-me pensar que com estas novas coordenadas, a mãe do Almodóvar não teria nenhum problema em falar com as vizinhas, porque a vizinha deve ter um filho, ou um irmão, ou uma neta em situação tão triste como as personagens do filme. Ou, quem sabe, a própria vizinha se encontra em semelhante circunstância. Fazer o que? Hoje é assim mesmo, não? Talvez não; paremos para pensar. Pensemos nos abraços e nos encontros, seu preâmbulo necessário.
Quando nos deparamos com alguém que nos ataca, por exemplo, com um punhal sabemos o que podemos esperar desse encontro. Fugimos dele, o evitamos, tentamos dar o troco por adiantado. É um instinto de preservação. As armas são de espécie variada: metálicas e morais, já sabemos disso. Até aqui o consenso é universal: nada a esperar, a não ser fugir em tempo.
Depois há outro tipo de encontro, não ameaçador, mas cujos resultados são também previsíveis: o fastio, a solidão quando o produto se esgota, quem sabe o vício aditivo. Um universo de ampla diversidade que vai do comércio sexual até os estímulos químicos variados, passando pelas variações de lances ao modo de Don Juan. No fundo, ninguém espera crescimento nenhum desses encontros; e se o interessado se encontra embotado para descobrir que o valor agregado de semelhantes peripécias é nulo, a maioria dos mortais concorda ser um erro tal investimento. O problema real são os abraços… partidos.
O que buscamos no abraço? Aconchego, compreensão, conforto. Vamos desarmados, nos confiamos em quem nos quer, buscamos sustento. Não é o amasso libidinoso nem o calor sensual o que nos atira nos braços do interlocutor. É uma simbiose única de pedido de ajuda e demonstração de carinho sincero. E ai, no meio dessa festa, o abraço se quebra, caímos, nos machucamos e não sabemos se o que dói mais é o golpe ou a decepção. Fomos enganados? Houve má fé? Provavelmente não; de nenhum dos dois lados se tramou uma fraude consciente. O que falta é fortaleza para sustentar o compromisso, para segurar o outro em abraço protetor. As carências de afeto nos empurram para os primeiros braços que acenam. São talvez braços sinceros, mas raquíticos e consumidos também pelas próprias carências, pelas fraquezas de caráter, que é o verdadeiro núcleo do problema. Somar fraquezas e carências não gera fortaleza nem músculo afetivo. Os abraçados contemplam, com pavor, como o abraço se desintegra porque, mesmo havendo boa vontade, falta a verdadeira nutrição do amor.
Deveríamos aprender das experiências, mas o homem é um ser que esquece; e tropeça muitas vezes na mesma pedra. O processo continua. Mal se recompõe do golpe, parte para outra, enxerga a possibilidade de um novo abraço, lembra como um pesadelo do último incidente e pensa: “agora vai ser diferente, agora já sou gato escaldado”. Mas não o é, lança-se com fruição ao abraço, e sobrevém a nova calamidade: o colo protetor se esfarela novamente, restando os cacos machucados que Almodóvar nos desenha com perfeição.
A questão é de simples enunciado, embora seja de árdua execução. A boa vontade e as toneladas de carência que arrastamos não são suficientes para configurar braços fortes que nos sustentem e que sejam capazes, por sua vez, de amparar os outros, fazendo da nossa vida um serviço real. A solidez afetiva, o amor que no dizer bíblico “é forte como a morte”, somente se consegue com treino diário, com os halteres que implicam num exercício quotidiano de doação e de construção própria. Quando se vive mergulhado no egoísmo e todo o universo que somos capazes de contemplar se esgota no próprio umbigo, o músculo afetivo se atrofia, é incapaz de fornecer amor sustentável. Vive-se numa atmosfera de sentimentalismo adocicado, pratica-se alguma filantropia de ocasião –pouco mais do que dar esmola em farol- mas no frigir dos ovos, esses braços são quebradiços, e os desejados abraços não passam de papel molhado.
Já dizia Zeffirelli, outro esteta do Cinema, que o amor se estraga por descuidar os detalhes: minúsculas bobagens, mal entendidos diminutos, preguiças microscópicas que não se teve o valor de desmascarar. Como um câncer que não se descobriu em tempo de salvar a saúde. Como a ginástica do carinho esforçado que se despreza no dia a dia, que renderia músculos vigorosos capazes de abraços sustentáveis. Descuidar os detalhes é a traça que consome a força interior, o caminho definitivo para o raquitismo da alma. Processo silencioso, latente, que mostra a explosão da sua fragilidade quando pretende abraçar a alguém e o deixa cair, uma vez e outra. Um desastre.
Almodóvar nos brinda com uma vigorosa direção de atores, feitos à sua imagem e semelhança – são atores que levam sua marca-; uma mise-en-scène envolvente, com suas tomadas, fotografia, montagem e trilha sonora. Um cinema de primeira, que se impõe. E, dentro dele, como um espelho do nosso mundo onde a técnica impecável oculta tanto dissabores, pessoas normais, vivendo na anormalidade; tristes, fracos, com a vida destroçada de tanto derrubar-se de abraços anêmicos. Mas –vai aqui minha frontal discordância- o mundo não é isso. Tem mais, muito mais, meu caro Almodóvar.
Existe sim senhor, o amor esforçado. Existem pessoas normais que fazem questão de viver na normalidade, mesmo que no mundo haja quem mal viva de tanto golpe de abraço roto, apanhando que nem mulher de malandro e nem saiba como lhe chegam os coices. Existem muitos que sabem viver com alegria e tornam compatível o sacrifício e a generosidade – a ginástica afetiva!- com desfrutar da vida. O filme é uma imagem deformada de uma triste realidade. Da realidade que Almodóvar contempla e nos quer fazer acreditar que é a única. De jeito nenhum!
Por isso eu fico com o melhor do filme, que é o título. E com ele uma esperança: a de que este diretor, patrício de D. Quixote, se aventure a descobrir o outro lado da realidade, a Dulcinea que se esconde tímida, por trás da moça de aldeia, de vida fácil. Daí sim, com o seu cinema de categoria, nos ajudará a fazer um mundo melhor, a mostrar uma luz de esperança onde encontremos o abraço perfeito que conforta e nos anima a ser melhores. E então, se me é dada essa oportunidade, eu mesmo irei conversar com a mãe do Pedro sobre os filmes que ele faz e celebraremos juntos haver sabido esperar a plenitude de um homem que ama o cinema e nos ensina a amá-lo sem medo