Charles Dickens: “Um Conto de Duas Cidades”

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Charles Dickens: “Um Conto de Duas Cidades”. Nova Cultural. São Paulo. 2002. 510 pgs.

Charles Dickens - Um conto de duas cidades     Uma nova tertúlia literária, brinda-me a oportunidade de reler o clássico de Dickens. Lembrava das duas cidades –Londres e Paris- , da revolução francesa, e das mulheres que tricotavam enquanto assistiam aos trabalhos do novo invento, a guilhotina. Como um divertimento, como aquela “lepra da irrealidade desfigurava cada ser humano”. Mas, as personagens me escapavam, embaçadas na memória…. E Dickens é um autor de personagens. Vale pois o esforço de reler, e as surpresas.

Personagens, e descrições, sempre britânicas. Anotei a que descreve a “metodologia de treinamento” do Banco Tellson de Londres, porque me pareceu significativa. “Quando a casa de Londres do Tellson Bank contratava um jovem, por certo o escondia em algum lugar até envelhecer. Provavelmente guardavam-no num lugar escuro, como fariam com um queijo, até ele adquirir uma tonalidade esverdeada de bolor. Só então o autorizavam a aparecer em público, formidavelmente absorvido nos imensos livros, acrescentando suas vestimentas antiquadas ao peso geral do estabelecimento”.

Dickens perfila as personagens e nos faz entender a angustia de quem da miséria da sua condição esforça-se por se corrigir, tentando uma vez e outra. “Triste, tristemente o sol se ergueu. Levantou-se sobre todas as coisas e nenhuma mais triste do que a visão daquele homem de boas habilidades e bons sentimentos, incapaz, entretanto, de exercitá-los diretamente, incapaz de ajudar a si mesmo e de lutar por sua felicidade, consciente de sua má sorte, mas resignando-se a deixar que ela o conduzisse à destruição”.

Os comentários da nossa tertúlia literária acusaram não tratar-se de obra de fácil leitura. Mas em todos eles, levantou-se a esperança de que o ser humano não está definitivamente perdido. É capaz de misérias e de grandezas. E, talvez, essa possibilidade de resposta variada diante dos mesmos estímulos –a liberdade humana, afinal- é o que torna a vida uma aventura cheia de possibilidades. Diante dos mesmos desafios as respostas humanas podem ser heroicas ou mesquinhas, de traição ou de lealdade, próprias de bandidos ou de santos.

Onde está a motivação para encontrar a resposta grandiosa, nos perguntamos? Talvez no amor, na possibilidade de ajudar os outros. Lembrei de Santo Agostinho quando afirmava: “amor meus, pondus meus”. O meu amor é o meu peso, a minha densidade. A minha capacidade de amar é o que me salva da miséria que levo encerrada no coração. As palavras do nosso herói, Carlton, introduzem-nos nesse cenário de possibilidades redentoras: “Tive a fraqueza e ainda a tenho, de querer que tomasse conhecimento do seu poder de subitamente transformar as cinzas que sou em fogo; fogo, entretanto, inseparável de mim em sua natureza, que nada queima, nada ilumina, nenhum serviço presta e se consome na indolência e inutilmente. Não chore, não sou digno dos seus sentimentos. Bastarão algumas poucas horas para que os maus hábitos e os péssimos companheiros, os quais desprezo e aos quais, entretanto, acabo  cedendo, tornem-me ainda mais indigno da sua compaixão do que o miserável que cai numa sarjeta. Não chore. Pois no fundo do meu coração, serei sempre para a senhorita o que sou agora, embora exteriormente eu pareça o mesmo de antes. Minha última súplica é que acredite nisso”.

As pessoas mudam quando encontram sentido, e dele tiram a força para a transformação. E quando são compreendidas, apoiadas, e se sentem amadas: “Lembre-se de como somos fortes em nossa felicidade, e do quanto ele é frágil em sua miséria”. E ai vem o salto decisivo, o impulso que nos arranca da mediocridade, fazendo-nos enxergar horizontes longínquos:  “Vejo que tenho um santuário nos seus corações, e nos corações dos seus descendentes por várias gerações. (…)  O que faço hoje é muito melhor do que tudo quanto já fiz. E a paz que tenho hoje é muito, muito maior do que a paz que jamais conheci”.

Perspectivas, sentir-se amados, fomentar em cada um o que de melhor pode fazer. Uma bela empreitada. Melhor do que reclamar da sociedade que nos toca viver que, lendo Dickens comprova-se que os problemas –as grandezas e misérias do ser humano- são variações sobre o mesmo tema. O tema da liberdade, do amor, da capacidade de sacrificar-se por um ideal. Não é um lugar comum, nem memórias históricas: é uma receita para viver apaixonadamente a aventura da vida, e fazer um mundo melhor. Também para isso serve ler os clássicos.

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