Kyung-Sook-Shin: “Por favor, Cuide da Mamãe”

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Kyung-Sook-Shin: “Por favor, Cuide da Mamãe” . Ed Intrínseca. Rio de Janeiro, 2011. 236 págs.

Foi a veemente recomendação de um amigo –professor e humanista- o empurrão que me fez aventurar-me nesta leitura. Tratando-se de uma autora coreana, devo confessar que o mundo oriental não é a minha inclinação natural.  Deve ser, sem dúvida, uma deficiência da minha sensibilidade, pois há muito que aprender do humanismo, subtil e encantador do oriente, mas nem todos possuímos essa sintonia peculiar.  Anotei o nome do livro, procurei-o na internet –onde me deparei com um alerta que qualificava a obra como romance lacrimogêneo- e o encomendei através do estantevirtual.com, recurso maravilhoso para adquirir a preços módicos todo tipo de livros. Felizmente, a sugestão do meu amigo prevaleceu, e parti para a leitura.

O argumento é simples: uma senhora de idade, com certo grau de demência, perde-se no metrô de Seul. A família –quatro filhos e o pai- inicia a busca. E a busca mergulha nas lembranças que se transformam numa descoberta daquela mulher, mãe e esposa, que mal conheciam. A perdida física é apenas desculpa para revelar uma carência substancial de conhecimento daquela que convivia e cuidava de todos, com esmero e dedicação. O livro é um buquê de reflexões das filhas, dos filhos, do esposo que, agora, sentem falta dela e lamentam a indiferença com que a tratavam.Leia mais

Domenico De Massi: Alfabeto da Sociedade Desorientada.

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Domenico De Massi: Alfabeto da Sociedade Desorientada. Ed. Objetiva. Rio de Janeiro, 2017. 600 págs.

Eis um livro difícil de ler, incômodo. Ou talvez não é para ser lido, apenas consultado. Essa foi a conclusão à qual cheguei após iniciar a leitura, parar, retomar, parar novamente, e enfrentar, agora sim, com leitura dinâmica, em diagonal. Porque no fundo, não é propriamente um livro -onde se desenvolve uma tese, um pensamento ou ensaio- mas um acúmulo de conhecimentos (ninguém pode negar isso ao autor), empilhados a modo de dicionário, ou, talvez de enciclopédia. Daí o nome, alfabeto, que é apenas um recurso para falar de tudo, atrelado à cada letra.

Vale a pena ler a orelha. Mas querer falar de tudo é um pouco cansativo. Ninguém le um dicionário por mais informação que isso lhe traga. Erudição enorme, que na prática é difícil transformar em cultura. Um índice de verbetes no final -um dicionário deste dicionário- ajudaria na hora de consultar. Ler direto é tarefa inglória. O tempo do enciclopedismo já passou. Se isso é árduo para os que nos consideramos leitores razoáveis, pode se imaginar o desânimo que causa nos menos familiarizados com os livros, e  para os jovens de hoje. Por outro lado, o formato não permite usá-lo como obra de consulta -que seria utilíssima. Enfim, uma erudição de difícil aproveitamento. O muito que eu não sei…..Mas embora a ideia seja guiar, não nos dá uma pauta de prioridades. Pode ser que a emenda saia pior do que o soneto. E afinal, quando há muitas árvores, acabamos não enxergando o bosque.

Dito isto -sem perder o respeito pelo autor, que já conhecia e admirava pelo conceito muito bem desenvolvido do ócio criativo- é justo apontar alguns trechos que, nessa leitura rápida -como um drone, desde a altura- me chamaram a atenção.

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Um segundo: Poesia na tela, um Cinema Paradiso chinês!

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Direção: Zhang Yimou.  Yi Zhang,  Haocun Liu , Wei Fan,  Ailei Yu ,  Shaobo Zhang ,
Fotografía: Zhao Xiaoding. Montaje: Yuan Du. Música: Lao Zai. 105 min.

Comentei, a propósito de Sombra, o último filme de Zhang Yimou que assisti, que não sou versado em cinema oriental. Mas também adverti que quando me aventuro nesses caminhos, acabo por surpreender-me. Com Yimou tem sido assim….desde longa data. E, Um segundo (coloco o link porque até onde consigo ver, carece de nome em português), foi outra agradável surpresa. Mas surpresa oriental, como aquela porcelana chinesa que no início se percebe, nos acostumamos a ela, e com o passar do tempo, sentimos falta de revê-la, de contemplá-la. Suave, delicada, sem barulho. Cinema em low profile, mas que o tempo faz decantar e inserir-se na alma.

Um sujeito caminhando no deserto. Uma órfã malandra que rouba celuloide. Uma criança maltratada porque desbaratou um abajur ….de celuloide. Um empresário que projeta, uma vez e outra, o mesmo filme, um filme propaganda do partido comunista chines. O filho desajeitado que quase deita a perder o filme. As mulheres limpando, lavando, secando as fitas do filme, penduradas como roupa num varal. Um documental prévio, onde a filha do homem do deserto -um presidiário- aparece um instante…..um segundo! E assim, nessas miniaturas delicadas -porque mais do que porcelana, são miniaturas chinesas de velhos códices- Zhang Yimou desenha o seu próprio Cinema Paradiso!

Essa foi a minha conclusão, não quando assisti, porque de início pareceu-me um filme menor. Mas, depois, pensando, tudo foi tomando forma. O cinema oriental, o bom, tem esse efeito retardado, Slow-release como os médicos denominamos algumas apresentações de fármacos. A órfã que rouba celuloide para proteger o irmão; o presidiário que zela pelo filme -que o recupera da ladra, e bate nela- para proteger aquele segundo onde a filha aparece. E o empresário -Sr. Filme, diz a legenda traduzida- que capta o drama, emenda os rolos, e deixa passando, uma vez e outra aquele segundo impactante para um pai dolorido. E o povo que quer ver o filme -filhos e filhas heroicos, diz a tradução- não por estarem alinhados com o partido, mas porque amam o cinema. Amam a projeção, o local desajeitado -quase a praça da cidade onde Alfredo projeta a tela para Totó –Alfredo é belíssimo!!- em Cinema Paradiso, enquanto a trilha de Morricone embrulha o momento. Amam a preparação, e por isso limpam e lavam o celuloide, e circulam entre as fitas dependuradas secando, quase como as roupas no varal, aquelas que Nelson Gonçalves canta em Chão de Estrelas. E o espectador, sem saber exatamente o motivo, sente-se envolvido também naquele palco iluminado da vida, como um palhaço das perdidas ilusões……

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Franz Kafka: “O Processo”.

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Franz Kafka: “O Processo”.Digital Source . 252 págs.

A Tertúlia Literária leva-nos desta vez até um clássico de Kafka, sabendo que podemos esperar tudo dele, menos um argumento lógico. Se no outro clássico A Metamorfose, o protagonista vê-se transformado numa barata no dia do seu aniversário, agora, também no aniversário deste outro, o que surge é uma detenção, surpreendente, inexplicável, enigmática, de um funcionário aparentemente exemplar de um banco.

A experiência de Josef K (e eu gosto de imaginar que o K, não é de graça, mas um alter ego do escritor), não lhe ajuda a entender o que está acontecendo: “K. sempre manifestara inclinação para encarar todas as coisas com a maior ligeireza possível, em acreditar no pior somente quando o pior se apresentava, a não nutrir grandes cuidados pelo futuro mesmo quando tudo tivesse um aspecto ameaçador. Neste caso, porém, não lhe pareceu adequado levar o assunto em brincadeira”

O diálogo com os guardas e, posteriormente, com o inspector nada ajuda na perplexidade provocada pela situação: “Estes senhores que vê aqui, e eu, desempenhamos um papel completamente acessório em seu assunto, do qual, para dizer a verdade, não sabemos quase nada. Se trouxéssemos nossos uniformes do modo mais regulamentar possível, nem por isso sua causa estaria melhor do que está. Muito menos lhe posso dizer, a você, de modo algum que está acusado, ou, dizendo melhor, não sei se o está. O certo é que está detido. Isto é tudo quanto sei  (…) Se você continua tendo tanta sorte como na designação de seus guardas pode alimentar esperanças”.

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España, la primera globalización.

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España, la primera globalización. Direção. José Luis López-Linares. 2021. 1 h 50 min.

O filme é em espanhol, feito por espanhóis e, imagino -como se verá depois- para que os espanhóis o vejam….e revisem suas próprias ideias. Mas faço questão absoluta de escrever em português em atenção aos meus leitores habituais. Até porque, como bem apontam os que intervêm neste filme-documentário magnífico, o império espanhol -com duração de três séculos- não foi apenas um assunto dos espanhóis, mas algo que afetou o mundo e a civilização.

O convidativo chamado da primeira globalização, é apresentado de modo simples e direto. A China, na dinastia Ming, decidiu que a partir de certo momento (no século XVI) os tributos não seriam mais pagos em espécies, mas em prata. O problema é que não havia prata na China, e os grandes estoques de prata eram espanhóis, na Nueva España, quer dizer, no México. Cria-se uma ponte entre os Ming e os Habsburgo, -a casa de Áustria como a chamam os espanhóis- para resolver esta questão. De um lado os imperadores da China, do outro Felipe II, a quem por sinal, devem seu nome as Ilhas Filipinas (algo que, comprovei, nem todo o mundo sabe).

Após Colombo chegar na América -as Indias ocidentais- , e tendo sido avistado o Pacífico por Núñez de Balboa, Magalhães consegue entrar no novo oceano, através do estreito que leva seu nome. E de lá até Asia -Filipinas, Polinésia, Índia- e retornar contornando o cabo de Boa Esperança, para a península Ibérica. Houve tentativas de fazer o caminho de volta pela mesma  que se utilizou para chegar na Ásia, -das Filipinas até América, e de lá cruzar o Atlântico-, mas todas infrutuosas por conta das correntes. Somente em 1578, um frade estudioso -Urdaneta- e um navegador espanhol -Legazpi- conseguem acertar com a rota que saindo de Filipinas, regressa até Acapulco. Está feita a ligação, através do Pacifico, entre as necessidades da China, e a prata espanhola, convertendo-se Manila no centro das transações comerciais. E, nesse mesmo momento, Felipe II reivindica por direito sucessório que lhe cabe a coroa Portuguesa; quer dizer, o senhor de meio mundo.

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Elsa Morante: A História

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Ed. Record. Círculo do Livro. São Paulo. 634 págs. Editora ‏ : ‎ Relógio d” Água”. 2018) Lumen- Random.  Barcelona 2018. 775 págs. Record, 2009, 700 págs,

Tinha este livro em vista há tempo, desde uma leitura de Fabrice Hadjadj onde cita a Morante. Não lembro em qual dos livros dele o faz, porque o autor é instigante, polifacético, desconcertante. Talvez foi naquele sobre a família,  ou sobre a mística dos sexos. Em qualquer caso, estava com vontade de ler, tomei nota e agora lhe chega o momento, a propósito de nossa Tertúlia Literária mensal.

Abro o livro (edição em espanhol que tinha à mão), e me encontro com estes comentários que já me espicaçam: “Elsa Morante foi minha professora. É fascinante. Tentei aprender com seus livros, mas os considero insuperáveis”-diz Elena Ferrante. E outro, de uma autora que conheço, Natalia Ginzburg: “Como romancista e como leitora, o que senti ao ler A História é um sentimento de profunda gratidão para com Elsa Morante”.

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Eça de Queiroz: A Ilustre Casa de Ramires

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Eça de Queiroz: A Ilustre Casa de Ramires (em Obras completas- Centaurus Editora 2015, págs.  2810- 3140).

A Tertúlia Literária mensal me faz voltar sobre esta obra de Eça de Queiroz, após mais de três décadas de tê-la descoberto. E confesso que é um privilégio, uma necessidade -mormente nestes tempos de emojis, grunhidos, acrônimos e outras variedades que beiram o analfabetismo- , como uma lufada de ar fresco, descobrir a riqueza da língua portuguesa. Reaprender a se exprimir, a encontra a palavra adequada, le mot juste- como dizia Flaubert.

Gonçalo Mendes Ramires, um fidalgo de estirpe mais velha que o próprio Portugal, pois sua casa ultrapassa os mil anos, é o companheiro desse passeio onde degustamos o prazer do bem falar, da boa escrita. Os fidalgos decadentes, também como o próprio Portugal a quem Eça rende tributo. “Castanheiro fundara um semanário, a Pátria — com o alevantado intento (afirmava sonoramente o Prospeto) de despertar, não só na mocidade académica, mas em todo o País, do cabo Sileiro ao cabo de Santa Maria, o amor tão arrefecido das belezas, das grandezas e das glórias de Portugal! Devorado por essa ideia, a sua Ideia, sentindo nela uma carreira, quase uma missão, Castanheiro incessantemente, com ardor teimoso de apóstolo, clamava pelos botequins da Sofia, pelos claustros da Universidade, pelos quartos dos amigos entre a fumaça dos cigarros, — a necessidade, caramba, de reatar a tradição! de desatulhar, caramba, Portugal da aluvião do estrangeirismo!”.

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João Guimarães Rosa: Noites do Sertão.

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João Guimarães Rosa: Noites do Sertão. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2013. 10 Ed. 304 págs.

É sempre um prazer -e uma necessidade para entender o Brasil profundo- a leitura de Guimarães Rosa. Desta vez, é o momento de Noites de Sertão, na edição magnificamente coordenada por Paulo Rónai, um húngaro que desvendou como ninguém os segredos do escritor mineiro, com quem teve uma sólida amizade e de quem já falamos em  outra ocasião neste espaço. Por isso, o prefácio que antecede os dois contos, é de leitura imprescindível.

Assim escreve Rónai sobre seu amigo médico e escritor: “Inventor de abismos, o autor de Corpo de baile localiza-os em broncas almas de sertanejos, inseparavelmente ligadas à natureza ambiente, fechadas ao raciocínio, mas acessíveis a toda espécie de impulsos vagos, sonhos, premonições, crendices, vivendo a séculos de distância da nossa civilização urbana e niveladora. São almas ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o milagre. O escritor enfrenta-as em geral num momento de crise, quando, acuadas pelo amor, pela doença ou pela morte, procuram desesperadamente tomar consciência de si mesmas e buscam o sentido de sua vida. Esses abismos inventados dão reais calafrios. No fundo deles se vislumbram os grandes medos atávicos do homem, sua sede de amor e seu horror à solidão, seus vãos esforços de segurar o passado e dirigir o futuro (….) Essa figura mal esboçada grava-se entre todas na alma do leitor: do mesmo modo que ela, o próprio autor, feiticeiro disfarçado em diplomata, em escritor, em homem de sociedade, encerrado entre as paredes da sua repartição, da sua casa, da sua classe, delega para o cenário de sua adolescência não um emissário, mas cem — a turba multicor das personagens de Corpo de baile —, a fim de que lhe tragam os ingredientes indispensáveis à recomposição daquela paisagem. Já sabemos que, graças aos milagres constantes de uma memória excepcionalmente fecunda e criadora, elas se desincumbem a contento de sua difícil tarefa, a busca do tempo perdido, causa e fim de toda poesia verdadeira”.

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Mariano Fazio: De Benedicto XV a Benedicto XVI.

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Rialp, Madrid, 2009. 228 págs.

Tinha este libro na minha lista de pendências. Finalmente, aproveitando um final de semana longo, consigo decolar, passo pelas páginas com rapidez -por vezes quase em diagonal, já explico o motivo- e finalizo com algumas anotações, como é habitual nas minhas leituras. Leio o original em espanhol, escrevo estas linhas em português -em atenção à maioria dos meus leitores-e traduzo, em versão livre, algumas citações que extrai do livro.

A primeira advertência é que não se trata de um livro de História da Igreja, o que seria uma enorme pretensão, nessa ponte de um século entre os dois Papas Bento, o XV e o XVI. Assim o explica o autor na introdução que, parece-me ser essencial, porque contém a chave para entender o que se escreve a continuação: “O lugar que a religião tem a ocupar na esfera pública tem sido alvo de inúmeras reflexões nos últimos anos. Na nova perspectiva que a revelação inaugura, a sociedade política deve ajudar a alcançar a felicidade temporal, mas o cristão sabe que acima dessa felicidade está a esperança de uma Pátria eterna definitiva. Diante do dualismo cristão, baseado na distinção entre as duas ordens, sem confundi-las, mas também sem confrontá-las, surgem duas posições extremas, que assumirão diferentes formas nas mutáveis ​​circunstâncias históricas: o clericalismo e o secularismo (…) Se examinarmos as principais correntes culturais e ideológicas da Modernidade, constatamos de imediato que elas absolutizam um elemento relativo da realidade, transformado em chave explicativa do mundo, da história e da existência humana. Este livro pretende expor os marcos centrais da postura da Igreja no mundo contemporâneo —e em particular no processo de secularização—, por meio da voz autorizada dos Romanos Pontífices”.

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The Lost King (and the Gut feelings): As intuições e a busca da verdade.

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The Lost King. Diretor: Stephen Frears. Sally Hawkins Steve Coogan, James Fleet, , Harry Lloyd, Robert Jack, Jessica Hardwick, Sinead MacInnes, John-Paul Hurley, Phoebe Pryce. Reino Unido, 2022. 108 min.

Tinha lido o comentário deste filme numa revista de Cinema, mas li em diagonal. Primeira equivocação. Pensei tratar-se de uma reportagem sobre questões históricas da Inglaterra profunda, com reis que entram e saem, uns matando os outros, e por trás uma obra de Shakespeare que era a minha única referência de ouvido. Questões monárquicas inglesas cantadas pelo Bardo, mas não é Henrique V, que essa sim conhecia bem. Releguei, por tanto, a um lugar comum. Esse foi o segundo erro e agora, pensando enquanto escrevo, lembrei daquela frase de subida ignorância no magnífico filme de Mel Gibson, O homem sem face que a frívola mãe do garoto aprendiz, pronuncia com desprezo: “deve morrer alguém….sempre é assim em Shakespeare”.

Senti-me essa mãe quando comecei a assistir, sem pretensões, num tempo que me restava no final do dia. Não consegui parar. Fui sendo cativado pelo argumento -sim, uma reportagem da vida da protagonista, a história dela como adverte o diretor no início- alavancada pela soberba interpretação. A busca da verdade histórica, apoiada numa intuição qualificada.

E ai sim, as conexões do que lemos, ensinamos, falamos e proclamamos nos cenários educacionais diários em que estamos envolvidos, começaram a emitir faíscas, como arcos voltaicos, onde a trama do filme -e a criatividade do diretor, colocando a um imaginário Ricardo III como interlocutor de Philippa- desenhava já  um sentido profundo, magnífico, tocante.

Intuição qualificada, algo que tenho baralhado nas pautas de educação médica em que transito, sob um nome elegante, British: Gut feelings. Um sentimento das entranhas -uma “corazonada” se diz em espanhol- de que algo é de um jeito e não de outro. Explico. O paciente aparece na minha frente, os exames dele não apontam nada importante, mas algo me diz, lá no fundo, que temos coisa séria. São os anos de prática, a experiencia do muito já visto, que colaboram para essa intuição. É o mesmo recurso que os médicos veteranos utilizamos para enfrentar com serenidade e sem preocupação o caso contrário: paciente com exames alterados, sintomas floridos, mas sabemos que, no fundo, não é nada que comprometa a saúde de modo crítico. Isso é o Gut Feelings, a intuição qualificada, o mesmo que Philippa Langley sente em relação à vida e sepultura de Ricardo III.

Importante advertir da qualificação dessa intuição, sentimento que é precedido de muita experiência, de leituras de livros, de muitas horas de voo no caso profissional dos médicos experientes. Algo que funciona mas que parece não ser científico, porque não tem como ser provado. E por isso mesmo, ninguém fala em voz alta, dessas intuições que seriam de grande ajuda para os jovens que se iniciam profissionalmente nos caminhos da medicina. Há como uma certa vergonha de explicitar essa intuição, que carece de apoio na literatura da medicina baseada em evidências. E, fosse pouco, enfrentará a oposição da academia, do “templo da ciência”. Por tanto, melhor deixar de lado, usar individualmente, mas não comentar com ninguém. Guarda-se “in pectore” e se utiliza para uso próprio. Uma perda para quem é educador, porque se pensasse em voz alta -se o exterioriza-se- talvez os aprendizes demorariam muito menos tempo do que ele em chegar nesse conhecimento peculiar. E não desprezariam as intuições como material não científico. No final, quem perde é, como sempre, o paciente que é atendido, mal atendido no caso.

Estendo-me nesta explicação profissional da prática médica porque é exatamente o que foi surgindo na minha frente com a aventura de Philippa na busca do verdadeiro Ricardo III. O descrédito dos espertos, as advertências dos acadêmicos que lhe têm simpatia -não fale das suas intuições, dos seus sentimentos, porque não pega bem; menos ainda sendo mulher. E ela, firme, decidida, vai virando o jogo, progredindo, juntando novamente a família a quem consegue entusiasmar com um projeto….baseado numa intuição, isso sim, qualificada. A colocação que faz em certo momento, opondo-se ao “que sempre se acreditou”, é contundente: Se ele assassinou os sobrinhos para tirar gente da frente no caminho do trono, como havia muitos outros, teria de ter matado a todos. Certo?

Intuição qualificada que não é um espasmo emocional de adolescente, ou algo que simplesmente não encaixa nos meus moldes mentais. As emoções, os sentimentos, colaboram sim para buscar a verdade; mas tem de ser apoiadas, para terem credibilidade, pelo esforço do estudo, da prática, das horas na trincheira de vida profissional. Como no caso de Philippa que, indo até a biblioteca, compra todos os livros sobre Ricardo III e seguidamente os devora.

Não há como resumir o filme, e também não é a proposta dos comentários neste espaço. Neste caso particular, é preciso assistir e viver a aventura de Philippa, em experiência quase fenomenológica. Passar pelo sentimento de incapacidade, reerguer-se agarrado a uma ideia que vai tomando corpo, fundamentar a ideia para entender que não é um capricho, dar passo à intuição, nessa altura, já com base, qualificada. E, sem dúvida, enfrentar a oposição do establishment académico, superar os entraves do politicamente correto, marcar presença na liderança. E, também, contemplar como as instituições cometem os erros -os mesmos erros!!!- que atribuem às personagens que lhes antecederam. O pensar comum de Ricardo III como um usurpador do trono, não é capaz de vacinar a própria academia na hora de usurpar o mérito de Philippa como propulsora absoluta do projeto.

Afinal, a intuição qualificada, o Gut Feelings é recurso de patrimônio individual, nunca uma metodologia para mudar as instituições que permanecerão sempre na sombra do conforto, evitando qualquer incerteza que possa ameaçar o trono….acadêmico. Esse tem sido sempre o caminho do progresso da ciência: alguns que arriscam e quando tudo está estabelecido, chega a monarquia acadêmica para chancelar o progresso e colocar o selo de qualidade. O selo da academia, entende-se.

Fleming tropeçou com a Penicilina por acaso, e depois a academia -e os laboratórios farmacêuticos- desenvolveram aquele tropeço casual, produzindo benefícios, e polpudos lucros. No magnífico livro de Jurgen Thorwald, “O século dos cirurgiões”,  conta-se a verdadeira história das primeiras luvas cirúrgicas: William Halsted, professor de cirurgia em John Hopkins, não querendo prescindir da presença da enfermeira Caroline Hampton na sala de operações, encomendou à  Goodyear Rubber Company umas luvas de borracha para protegê-la da alergia que Caroline tinha aos desinfetantes. As luvas ficaram para sempre, e Halsted acabou casando com Caroline. O capítulo do livro onde se recolhe o relato intitula-se Luvas de Amor.

Abraham Flexner, autor do famoso informe que em 1910 provocou a reforma nas escolas de medicina, buscando sistematizar os ensinamentos e ordenar o conhecimento, escreve quase 30 anos depois, um opúsculo que se recolhe naquele ótimo livro de Nuccio Ordine, A utilidade do inútil, onde pode ler-se: “A maioria dos descobrimentos importantes da humanidade devem-se a pessoas que não se guiaram pelo afã da utilidade, mas pela curiosidade. ….Defendo a conveniência de abolir a palavra utilidade (nos laboratórios) e liberar o espirito humano”.

Após comentar minha surpresa com um amigo, professor de História,  fui ver o Filme ensaio de Al Pacino, que ele comentou no momento. E mergulhei na peça de Shakespeare, enfim, tentei qualificar a minha intuição…..de que tinha diante de mim um filme contundente, luminoso, esclarecedor.

A leitura de Shakespeare -buscando qualificar-me na intuição- é também esclarecedora. A figura de Ricardo é repulsiva: “Eu, que fui deserdado de belas proporções, roubado de uma forma exterior por natureza dissimuladora, foi com deformidades, inacabado e antes do tempo que me puseram neste mundo que respira, feito mal e mal pela metade, e esta metade tão imperfeita, informe e tosca que os cachorros começam a latir para mim se me paro ao lado deles. Portanto, uma vez que não posso e não sei agir como um amante, a fim de me ocupar nestes dias de elegância e de eloquência, estou decidido a agir como um canalha e detestar os prazeres fáceis dos dias de hoje (…) E assim vou vestindo minha canalhice nua com antigos clichês daqui e dali, roubados dos textos sagrados, e fico parecendo um santo, quando na maior parte do tempo faço o papel do diabo”.

Mas é bom advertir que os dramas históricos de Shakespeare, mais do que apresentar um estudo apurado dos fatos, são a ocasião para que o bardo inglês nos sirva, com elegância ímpar, os porões da alma humana, onde transitam misérias e grandezas. É isso o que faz de Shakespeare um clássico, -seja o argumento ficção pura ou tenha base histórica. Vale copiar, a modo e exemplo, este diálogo de dois assassinos contratados por Ricardo para eliminar um dos seus oponentes, aliás, seu próprio irmão Clarence:

Primeiro Assassino – Mas, onde está a sua consciência agora?

Segundo Assassino – Ah, na bolsa do Duque de Gloucester.

Primeiro Assassino – Quando ele abrir a bolsa para nos entregar a nossa recompensa, a sua consciência vai simplesmente voar para longe?

Segundo Assassino – Não tem problema, a gente deixa ela ir embora. Poucos vão querer acolhê-la, e talvez ninguém queira.

Primeiro Assassino – E se ela volta para você?

Segundo Assassino – Não vou me meter em seus assuntos; ela faz, dos homens, covardes. O sujeito não pode roubar, que ela o acusa; o sujeito não pode soltar palavrões, que ela o censura; o sujeito não pode se deitar com a mulher do vizinho, que ela fica sabendo. É um espírito que fica vermelho de vergonha, um tímido que se amotina contra o coração de um homem. Deixa o vivente cheio de impedimentos. Uma vez, ela me fez devolver uma bolsa de ouro que encontrei por acaso. Ela faz mendigos dos homens que a acolhem. É tida como perigosa nas cidades, de onde a expulsam. Todo homem que deseja viver bem empenha-se em confiar em si mesmo, dispensando-a de sua vida.

Essa é a força imensa de Shakespeare: verdades contundentes como essa apologia da consciência….e de como os homens se livram dela. O que nada subtrai do marco histórico, e das conhecidas frases que a tradição nos legou: “Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo” É Ricardo, ferido, caído, a pé, na batalha final, que encerra o reinado dos Plantagenetas abrindo passo à dinastia dos Tudor.

O que ficou de tudo isto? O que aprendi? História, narrativas, o que nos contam, o que deixam de contar, mesmo sendo Shakespeare, e a intuição que busca a verdade, e conserta a própria vida e a doença. O que o leitor destas linhas pode aprender? Faça a experiência, deixe-se levar pelas intuições, torne elas sólidas, Gut feelings de qualidade, e não tenha vergonha de compartilhar com os outros. É um caminho para a verdade.