Um herói: Honra e Integridade perante a indiferença.

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Ghahreman – Irán, 2021 Diretor: Asghar Farhadi. Amir Jadidi, Abolfazl Ebrahimi, Mohsen Tanabandeh, Sarina Farhadi, Fereshteh Sadrorafaei 127 min.

Devo confessar que o estímulo para assistir este filme foi o nome do diretor, Asghar Farhadi. Não porque eu tenha uma especial sensibilidade pelo cinema do oriente médio, mas porque já comprovei que o diretor iraniano sempre faz filmes sérios, que aprofundam e tocam a sensibilidade ocidental -a minha, sem dúvida- e imagino que também a oriental. E tudo sem perder a elegância, a classe, sem apelações, convidando o espectador a ler nas entrelinhas, sem desdobrar-se em palavreado inútil, ou em reações histriónicas, sendo seus dramas de inegável profundidade.

Deste modo Farhadi consegue pilotar atores franceses misturados com os iranianos, como em O Passado; constrói dramas de fundo oriental mas com valores universais como em A Separação, e até comanda um elenco de atores espanhóis -todos fetiche de Almodóvar, quem diria- para entregar aquele drama superior, Todos já sabem. Enfim, um diretor que prestigia suas raízes mas consegue atingir o público ocidental, e até com um cruzado de esquerda, porque te faz pensar.

Um herói, é um filme aparentemente sem pretensões. Ou melhor, um micro drama familiar que, imagino, deve ser situação não incomum na sociedade iraniana. Um homem preso porque não consegue pagar a dívida. O credor tem suas razões -afinal, cadê o dinheiro que ele me deve? – e o presidiário tem as suas, e os seus sonhos. O protagonista, Soltani, tem  também um filho, doce, gago, esforçado que é um recurso delicado com o qual o diretor conecta com a compaixão ocidental. “Não quero me projetar nem instrumentalizar a gagueira do meu filho” -diz ele a certa altura.

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Heinrich Von Kleist: Michael Kohlhaas.

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Heinrich Von Kleist: Michael Kohlhaas. Grua Livros, São Paulo, 2014. 155 págs.

Eis um livro, pequeno e surpreendente, que repousava na minha prateleira e que por algum motivo decidi tirar do seu repouso e li em dois tempos. Breve, direto, um pouco barroco na sua narrativa. Escrito por um autor que também teve um final trágico, saturado como estava do espírito romântico na transição dos séculos XVIII ao XIX. Parece que se converteu num clássico, e conforme avançava na leitura perguntei-me o motivo desse predicado. A resposta, certamente, reside no conteúdo mais do que na forma que, insisto, pareceu-me pouco atrativa.

O autor relata a trágica história de um comerciante de cavalos, honesto, íntegro, que ganha a vida com o seu negócio.  Michael Kohlhaas, o criador de cavalos, injustiçado, lesado nas suas propriedades pela arbitrariedade de senhores aristocratas nobres, que faltam à palavra, e exigem uma lealdade que eles nunca souberam dar. Busca a reparação, bate em todas as portas infatigavelmente, e comprovando que nada funciona, e que ninguém liga, decide tomar a justiça pelas suas mãos. Um romance breve, inspirado em fatos reais -até Lutero aparece nele- que faz a ponte de literatura romântica para o realismo alemão.

Assim descreve o escritor ao protagonista, e explica a tragédia que se cerne sobre ele: “Temente de Deus, criava os filhos que a mulher lhe dera para serem trabalhadores e leais; não havia um entre seus vizinhos que não tivesse desfrutado de sua bondade ou de sua justiça; em resumo, o mundo haveria de abençoar a memória daquele homem, não tivesse ele exacerbado numa virtude. O senso de justiça, porém, fez dele um bandoleiro e assassino”.

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Salvador de Madariaga: Hernán Cortes.

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Ed. Espasa. Madrid 1948. 739 págs. Português: Ed. Ibrasa São Paulo. 1961. 425 págs..

Uma recente viagem, passando pela Cidade de México, por conta de uma conferência sobre Humanismo Médico em Tempos de Crise, foi um dos estopins para voltar sobre este livro, que já tinha lido há mais de três décadas. Mas houve outro: o recente musical, Malinche, criado por Nacho Cano, um roqueiro dos anos 80 na Espanha, que após 12 anos de pesquisa, reedita a história de Cortés e da mulher que, do seu lado, foi a ponte das culturas hispânica e mexicana. Melhor do que falar do musical, vale ler a entrevista que o compositor deu há um par de meses. E ainda, assistir o making-off da produção que é magnífico. 

A biografia de Cortés é um dos trabalhos mais consagrados de Salvador de Madariaga: profunda, séria, repleta de bibliografia. Um retrato -externo e interno-  do conquistador espanhol. Uma história que, com frequência, se desfoca e se reconta com narrativas variadas, todas elas carentes de rigor científico. Por isso, após ver Malinche, e admirar o trabalho investigativo do compositor, não consegui evitar reler a obra de Madariaga.

Está fora de propósito fazer nestas linhas um resumo desta obra, até porque a leitura, pausada e atenta, é necessária para entender Cortés e seu entorno Vale sim, apontar alguns aspectos a modo de destaque, pois são muitas vezes os que se tergiversam em narrativas recontadas e superficiais.

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G. K. Chesterton: “O Segredo do Padre Brown”

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Publicações Europa-América. Portugal, 192 págs.

A Tertúlia Literária deste mês de Dezembro, nos preâmbulos do Natal, leva-nos até Chesterton, o homem que sabia dizer grandes verdades, sem perder a compostura e a elegância. E, com Chesterton, uma das suas personagens preferidas para dar esses recados: o Padre Brown. Vale lembrar antes a trajetória pessoal de G. K. Chesterton, seu itinerário de conversão, já comentado antes neste espaço, num livro excelente.

O livro atual é o quarto de uma série de entregas onde o protagonista é interrogado a propósito de seu método de investigação para desvendar os crimes que outros não conseguiram elucidar. Seu interlocutor é um antigo delinquente, convertido para o lado bom da vida. Um homem curioso a quem “a carreira do crime tornara-o, segundo alguns, escrupuloso demais para se dedicar à investigação”, que diz ao Pe. Brown, de cara: “Tem-se especulado sobre se essa diferença de método não seria antes uma ausência de método”.

Vale dizer que o tal método -o segredo do Padre Brown- é simples: colocar-se no lugar do bandido, quer dizer, entender que o bandido fez o que qualquer um de nós poderia fazer. Algo simples de enunciar, mas na prática uma postura que a maioria dos mortais reputa como impossível, como aponta o protagonista: “Vocês todos são pessoas muito importantes e seguras, não seriam capazes, dizem a si mesmos, de cair tão baixo. Mas digam-me uma coisa: se algum de vocês tivesse caído teria coragem de um dia, já velho, rico, bem instalado na vida, de contar sua história, levado por sua própria consciência ou aconselhado por um confessor? Vocês se consideram incapazes de um crime tão baixo. Mas, tendo cometido, seriam capazes de confessá-lo?”.  E continua descortinando a cegueira moral do ser humano: “Por vezes há coisas que estão tão perto de nós que nem sequer damos por elas. Como aquela história do homem que tinha uma mosca dentro do olho no momento em que estava a espreitar por um telescópio e declarou imediatamente que havia um dragão enorme na lua. E, segundo ouvi dizer, se ouvirmos a reprodução exata da nossa própria voz, ela soa-nos como se pertencesse a um estranho”. Um recado com sabor bíblico, a trave no próprio olho e a palha no olho de outrem.

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Crise: Integridade, verdade… afinal, qual é o seu preço?

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(Crisis) Diretor: Nicholas Jarecki. Gary Oldman,  Evangeline Lilly, Armie Hammer.  USA. 2021. 1 h 58 min

Assisti este filme há mais de 1 ano. E, tal como o protagonista -um Gary Oldman magnífico- o dever de escrever rondava minha cabeça ao longo deste tempo. Assisti de novo, agora com um grupo de amigos, e comprovei o que já tinha suspeitado na primeira vez. Um filme necessário, que toca em vários registros -a modo de sinfonia, nem sempre agradável- o tema central e suas variações: os medicamentos analgésicos de última geração -também transformações sofisticadas dos opiáceos- que podem ajudar a alguns e, quando fora de controle, são a perdição de muitos.

As variações que discorrem pelo mundo do crime, e que conferem ao filme a ação necessária, não captaram minha atenção. Bandidos e traficantes de um lado, famílias sofrendo do outro; vingança e acordos espúrios enquanto a força pública se esforça por desarticular as redes dos delinquentes. Um tema batido -infelizmente real e frequente- que tem sido apresentado no cinema inúmeras vezes. Pelo menos desde aquela inesquecível Operação França, da década de 70, que atesouro na minha lembrança.

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Thomas Hardy: “Tess dos D’Urbervilles”

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Editora Pedrazul. Vitória. 2016. 465 págs.

Quando li este livro por primeira vez, há quase 30 anos, penso que cometi uma injustiça com Thomas Hardy e com a protagonista. Explico. Estava eu na época envolvido na docência na faculdade de medicina, e um dos tópicos das minhas aulas era o estudo dos temperamentos: nada mais importante para um médico do que conhecer-se para também conhecer os outros; saber navegar nos diversos modos de perceber o mundo, e de reagir perante o que o mundo nos apresenta.

Lembro perfeitamente que quando abordávamos o temperamento assim denominado nervoso, quer dizer, alguém que é por natureza pura emoção, uma antena parabólica -hoje diríamos uma fonte de 5G- que capta tudo, mas não processa nada, sempre citava Tess como exemplo desse temperamento. A frase que Hardy coloca para apresentá-la é contundente: “Nessa altura da vida, Tess Durbeyfield não passava de um recipiente de emoções ainda não afetadas pela experiência”. A definição pareceu-me tão precisa -emoções não trabalhadas- que não avalie a temporalidade, quer dizer, a referência ao momento de uma adolescente nascendo para a vida.

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Card. Robert Sarah: “A Força do Silêncio”

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Card. Robert Sarah: “A Força do Silêncio” Ed. Fons Sapientia. São Paulo. 2016. 296 pgs.

O título é do mais sugestivo: a força do silencio, contra a ditadura do ruido. O autor, um Cardeal Africano que foi Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a disciplina dos sacramentos, também me provocou. Decidi ler o livro sabendo que encontraria, sem dúvida, conselhos de índole espiritual mas também muitos outros aspectos aplicáveis na vida quotidiana, na trincheira. Não me enganei, li, gostei. Tanto que não posso evitar fazer alguns comentários -sem pretensão de resumir um livro que deve ser lido e meditado- a modo de instigação, e como matéria de reflexão: pessoal, em primeiro lugar, e que talvez possa ajudar outros.

Logo no início, Sarah situa o tema da necessidade do silêncio perante o tumulto em que vivemos: “ Nosso mundo deixou de ouvir a Deus, porque não para de falar em ritmo letal e velocidade para não dizer nada. A civilização moderna não sabe calar. Vive em monólogo permanente. A sociedade pós-moderna rejeita o passado e considera o presente um vil objeto de consumo: contempla o futuro entre os raios de um progresso quase obsessivo. Seu sonho, transformado em triste realidade, foi trancar o silêncio em um calabouço úmido e escuro. A partir de então, instaurou-se uma ditadura da palavra, uma ditadura da ênfase verbal. Naquele cenário sombrio, resta apenas uma chaga purulenta de palavras mecânicas, sem alívio, sem verdade e sem fundamento. Muitas vezes a verdade não passa de uma criação midiática enganosa e consolidada por imagens e testemunhos inventados”.

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José Ortega y Gasset: A Rebelião das Massas

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Em Español: J. Ortega y Gasset: La Rebelión de las Masas.  (1930). Ed. Digital Titivillus, Epublivre 2019. 270 págs..
Em Português : J. Ortega y Gasset. A Rebelião das Massas.  Ed. Eletrônica . Ed Ridendo Castigat Mores. 279 páginas.

Por uma série de circunstâncias -os desafios académicos, os atritos quase diários com a mediocridade representada por uma medicina cada vez mais sucateada- volto sobre a obra magna de Ortega após 30 anos da primeira leitura. Leio, me emociono, confirmo o que há tanto tempo venho pensando, tentando praticar e ensinar aos outros: como escapar do homem massa, que nos cerca, aliás, que está dentro de nós à espreita de baixarmos a guarda.

Longe de mim tentar neste espaço um resumo do emblemático livro do filósofo espanhol. Não é um livro para ser resumido, mas lido, pensado, meditado. Não existe “short version”, leitura facilitada, porque seria incorrer na postura do homem massa, protagonista dessas páginas. O esboço destas linhas é apenas uma tentativa de, em certa maneira,  saldar a dívida que tenho com o pensador. Pagar os royalties intelectuais a quem muito me inspirou ao longo destas décadas,  em aulas, conferencias e muitos dos escritos que me atrevo a produzir.

E como se trata de oferecer um aperitivo convidativo a uma leitura profunda, eis que na edição digital que obtive, me deparo com um Prefacio de Julián Marías, discípulo de Ortega, outro pensador a quem tenho uma admiração enorme. Deixo, pois, a Marías a palavra que esboça com mestria as grandes linhas desta obra do seu mentor.

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Fred Vargas: “Um Lugar incerto”.

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Fred Vargas: “Um Lugar incerto”. Companhia das Letras. São Paulo 2011. 368 págs.

A tertúlia literária deste mês, leva-nos até uma autora francesa, historiadora, especialista na primeira guerra mundial…..que gosta de escrever romances policiais. Evidentemente, sobre gostos não há nada escrito, cada um tem suas manias, mas confesso que me surpreendeu o curriculum acadêmico da escritora que, aliás, tem imenso sucesso de vendas, sendo traduzida para mais de 30 idiomas. Um velho amigo já falecido, grande leitor,  tinha me comentado sobre ela. Os comentários dos bibliófilos sempre devem ser levados em consideração.

A livro agradou a todos. Um sucesso. Mas os motivos do apreço coletivo foram diferentes. Quer dizer, é possível ler um livro, gostar dele, e ver coisas completamente diferentes, ser captado por aspectos variados. Por tanto um sucesso em duplo. Esse é o cerne da tertúlia literária, saber apreciar a literatura, permitir-se interpretar, gostar, parar de ler, voltar sobre o lido, ou simplesmente deixar nas entrelinhas, e continuar  contemplando outras nuances.

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Revisitando The Crown: De volta ás reflexões, com novos aprendizados.

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A recente morte da Rainha Elizabeth II, levou-me de volta até esta grande série. Mas não foi uma decisão nostálgica, e sim um acordar para uma responsabilidade, uma pendência que se arrastava há algum tempo, vários meses, quase anos. Tempos atrás, assisti as duas primeiras temporadas, e comentei amplamente  o muito que aprendi.  Assisti também as temporadas seguintes, aprendi, tomei notas….mas não escrevi. Deixei em compasso de espera, e agora surge como um débito a resolver. Voltei até o início da série, assisti novamente os 40 episódios, não como diletantismo, mas com um olhar de aluno sedento de aprendizado. E, finalizada essa revisitação, sento na frente do computador para rascunhar estas linhas, para captar as reflexões -muitas- que inundaram novamente a minha mente. Com luz nova, com sabor de aprendizados magníficos.

Pontos altos? Muitos;  e todos, como aulas pontuais, decantam em sabedoria e estimulam a incorporar atitudes. Foi assim que contemplei, com sabor novo, cada uma destas aulas, que isso são para mim, e por isso escrevo -para eu não esquecer- e por se aproveitam a outros.

O episódio trágico em Gales, Aberfan, uma mina afundando, um descolamento de terras, muitos mortos, a maioria crianças de uma escola. A Rainha hesita em visitar o local, confortar as famílias. Finalmente se decide, mas sente que lhe falta emoção. O diálogo com Harold Wilson -primeiro ministro do partido trabalhista- é uma pérola. A rainha confia a ele sua falta de empatia, de emoção prática. Wilson esclarece: “Sou o líder do partido trabalhista, mas nunca fiz trabalho manual, nem um só dia. Sou um académico, um professor de economia de Oxford. Gosto de charuto e de comer steak. Mas quando estou com o partido, permito-me fumar cachimbo -não charuto- e comer outras coisas. Majestade, se queremos ser tudo para todos a todo momento, deixamos de ser nós mesmos, perdemos a identidade. A senhora fez o que tinha de fazer, não importa o que sentiu ou deixou de sentir. Fazemos o que temos de fazer como líderes, é o nosso trabalho, acalmar mais crises das que criamos. Em certo modo, sua falta de emoção é uma benção: ninguém quer uma chefe de estado histérica”. Fazer o que se deve, sem importar-se com o sentimento, mas estar focado nos outros, aos que temos de servir. Essa é a função da monarquia, que um ministro trabalhista vem lembrar à soberana.

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